O perigo real de Enéas
Uma para ele e mais cinco para candidatos de seu partido ¿ quatro dos quais não tiveram mais de mil votos.
Fábio Peixoto
Um milhão, quinhentos e setenta e três mil, cento e doze. Com essa assombrosa quantidade de votos, os paulistas elegeram o deputado federal mais votado da história. Quando divulgado, o recorde não foi motivo de comemoração, mas de constrangimento. O cardiologista Enéas Carneiro, do Partido da Reedificação da Ordem Nacional (Prona), acabava de conseguir seis vagas na Câmara dos Deputados. Uma para ele e mais cinco para candidatos de seu partido – quatro dos quais não tiveram mais de mil votos.
Imediatamente, os críticos aproveitaram para vociferar contra o sistema proporcional de eleger parlamentares. Afinal, mesmo tendo recebido dezenas de milhares de votos, célebres políticos paulistas haviam ficado fora do Congresso. Enquanto isso, os desconhecidos do Prona tiveram apenas que pegar carona na esmagadora eleição de Enéas. Uma injustiça flagrante, não? Nada disso.
Nosso sistema proporcional foi concebido para dar prioridade aos partidos. Aqueles que recebem mais votos em seus candidatos têm direito a mais vagas em Brasília. Isso faz mais sentido que dar prioridade às votações individuais, fortalecendo grupos articulados em torno de propostas. Votar em alguém é, antes de tudo, votar nas idéias que a pessoa representa.
Se levassem isso em conta, talvez os jornalistas não tivessem ficado tão escandalizados com o caso do médico Vanderlei de Souza, do Prona. Um dos fundadores do partido, ele conseguiu chegar à Câmara dos Deputados com irrisórios 275 votos. Além disso, Vanderlei vive e trabalha no Rio de Janeiro, mas registrou sua candidatura na capital paulista. Não faltaram repórteres interrogando-o sobre quais eram suas “propostas para São Paulo”, nem comentaristas questionando como ele iria defender os interesses de um estado que mal conhece. Puro provincianismo. Não custa nada lembrar que a Câmara existe para representar o povo brasileiro. Não importa de que estado venha, o deputado deve se orientar pelo que é melhor para o país e não tentar favorecer sua região em particular.
Em vez de culpar o sistema político, o que deve ser questionado é a ressurreição do fenômeno Enéas. Em 1989, quando todos nós descobrimos qual era o nome dele, o então candidato à presidência recebeu 360 561 votos. Nas eleições de 1994, disputando o mesmo cargo, ele foi o escolhido por 4,6 milhões de eleitores (ficou em terceiro, atrás apenas de Fernando Henrique e Lula). O resultado bem inferior obtido por Enéas em 1998, cerca de 1,4 milhão de votos, parecia demonstrar que ele se tornaria apenas uma figura pitoresca do nosso folclore eleitoral. O problema é que ele espertamente quebrou sua promessa (registrada em documento assinado) de só se candidatar a presidente. Resultado: foi conduzido em triunfo para o Congresso.
Entre as propostas mais notórias do Prona para o país estão romper com organismos como a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional e triplicar o efetivo das Forças Armadas. Para que sejamos respeitados pelas outras nações, uma arma infalível: fabricar a bomba atômica. Outras preocupações são a defesa da ordem, da moral e dos bons costumes, causas que sempre tiveram apelo considerável entre o eleitorado conservador paulista. Mas parece claro que a maioria dos que escolheram Enéas não se preocupou muito em saber qual seu projeto para o país. Alguns analistas classificaram sua eleição na categoria de “voto de protesto”, uma espécie de descontentamento generalizado na política. Nesse ponto, o eleitorado merece um esclarecimento: o protesto por excelência é feito com o voto nulo, que simboliza uma opção consciente por nenhum candidato.
Quem votou no Prona deu seu aval a um projeto conservador, militarista e moralista, que em alguns trechos repete os fascistas da primeira metade do século XX. Mesmo que seis deputados federais não possam mudar muita coisa no Brasil, foi aberto um precedente perigoso. Enéas nunca escondeu, por exemplo, seu ódio contra a imprensa, o que poderia facilmente caminhar para propostas de volta da censura.
Se a propaganda eleitoral de Enéas é uma das mais divertidas de se assistir, votar nele não tem graça nenhuma. O mínimo que se exige do eleitor é que ele pense sobre as possíveis conseqüências de seu voto. Há pouco mais de dois anos, entrevistei um grupo de Carecas do ABC, uma gangue da periferia de São Paulo. Naquela época, eles defendiam o voto em Enéas por ser ultranacionalista e defensor da “ordem”. Muitos deles devem ter ajudado a elegê-lo desta vez. Ao contrário de outros eleitores do Prona, eles, pelo menos, sabiam o que estavam fazendo.