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Querido obituário

9.266 caracteres de literatura

Por Andrea Nunes
Atualizado em 23 out 2020, 17h02 - Publicado em 18 out 2017, 13h23

O nome dela era Talita, e ontem foi seu aniversário. Ela estava sentada agora no batente que dá para o jardim da casa, tentando parecer circunspecta, como convém a moças lidando com seus sérios problemas existenciais.

Talita sempre foi precoce, e achava que já podia se dar ao luxo de ter problemas existenciais, pois completara 11 anos. Já era quase pré-adolescente.

Estava um pouco acima do peso, se sentia desajeitada, não era popular na escola, e tinha medo das amigas mais velhas descobrirem que ainda brincava de boneca. Ela gostava de brincar com elas principalmente quando tinha de se trancar no quarto para não escutar as discussões da sua mãe com Biro.

Biro era o padrasto, e ele e a mãe andavam se desentendendo. Desde que ele tinha vindo morar na casa delas, havia dois anos, a menina nunca tinha visto eles brigarem tanto.

A mãe dizia que Biro seria muito legal com Talita, e que com o tempo ela poderia chamá-lo de pai, se quisesse, pois ela nunca havia conhecido o pai de verdade. Mas, na cabeça de Talita, um pai precisaria ter chinelos barulhentos, costeletas grisalhas e cheiro de colônia de barbear. Biro era silencioso, um pouco rude, e sua boca às vezes fedia. Mas, quando chegou, deixou sua mãe de ombros retos de novo, e Talita resolveu gostar por isso.

Apesar disso, os ombros da mãe tinham voltado a definhar nos últimos meses, porque Biro não a abraçava mais como antes. Talita contava todas essas coisas para as bonecas, que eram ótimas ouvintes. A mais companheira era Gertrudes, uma boneca linda que Vó Sônia trouxera da Alemanha, no tempo em que ainda viajava sozinha. Gertrudes tinha olhos azuis impressionantes e a menina gostava de fazer tranças nos seus cabelos. Passeava com ela e, às vezes, compartilhava seus espantos e dilemas de menina-moça: Como o dia estava lindo! Será que ela deveria fazer balé para parecer mais graciosa? Ou era muito gordinha para colocar um collant?

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Gertrudes era boa ouvinte. Sempre serena, acatava as ideias mais absurdas da menina sem nunca recriminá-la, devolvendo em troca apenas aquela placidez azul de seus olhos de boneca. Aquilo acalmava Talita até mesmo quando ela se sentia só. Nesses dias, ela punha Gertrudes no colo e a abraçava com força.

Agora a mãe estava chorando de novo, ela escutou, emergindo de suas divagações. Vó Sônia estava tentando consolá-la. Talita respirou fundo tentando sentir o cheiro da grama recém-cortada do jardim à sua frente. Pena que ainda não era tempo de as primaveras botarem flor, observou. Mas havia um poço artesiano abandonado, construído pelo antigo morador no canto direito do terreno, em cuja murada as trepadeiras plantadas pela mãe estavam se espalhando viçosamente. Era bonito de ver. A mãe o mantinha sempre tampado, com medo de acidentes.

Talita ouviu mais um lamento da mãe e desistiu de se distrair com o jardim e com os pensamentos existenciais. Achou que seria melhor subir para o quarto, brincar um pouco. As bonecas deviam estar loucas para saber os detalhes da festa. E conhecer os outros brinquedos que ela tinha ganhado.

(Gabriela Marchioro/Superinteressante)

***
Quinta-feira, 25 de maio

Querido Diário,

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Já se passaram duas semanas da festa de aniversário. As brigas da Mami e do Biro só fizeram aumentar. Vó Sônia diz à Mami que ela tem de fazer terapia, ou viajar. Mas Mami não parece animada para fazer coisa alguma. Está tão exausta que a pessoa fica cansada só de olhar para ela.

Hoje fomos de carro para o parque. Era para ser um piquenique feliz, mas Biro ficou reclamando o tempo todo porque não tinham trazido cerveja na maldita cesta de piquenique. Vó Sônia estava ao meu lado no banco de trás, e segurava a cesta com muita força, como se ela fosse sair voando a qualquer momento pela janela. Mami tentou argumentar com ele que tinha outras coisas ótimas na cesta, inclusive o bolo de cenoura que ele tanto gosta. Aí, Diário, ele mandou ela fazer uma coisa muito feia com o bolo de cenoura, porque tudo o que ele queria era uma cerveja gelada. Mami ficou furiosa e subiu a calçada, quase atropelando um homem. Puxou o freio de mão e mandou Biro sair do carro. Ele desceu e ela jogou pela janela uma nota de vinte reais, mandando ele ir comprar a porcaria da cerveja. Ele, se quisesse, poderia nos encontrar depois no parque. Ainda bem que ele não apareceu…

***

Quando Talita viu a mala grande em cima da cama da mãe, ficou animada, pensando que haveria uma viagem. Talvez a mãe finalmente tivesse conseguido juntar algum dinheiro para levá-la a algum lugar distante. Outro país, quem sabe? Imaginou como sua Gertrudes ficaria feliz em fazer uma viagem de avião. Não levaria a boneca na mala, claro. Escolheria uma cadeira junto da janela para verem, juntas, os prédios e ruas diminuírem até virarem pecinhas de Lego.

As especulações deram lugar à perplexidade quando ela viu que não eram as roupas de nenhuma das duas que estavam jogadas dentro da mala: eram as roupas de Biro. Só as roupas dele.

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A mãe estava mandando Biro embora de casa!, ela concluiu. E então se deu conta que ele tinha sumido nos últimos dias. Tinha uma vaga noção de ouvir uns gritos de madrugada, dele discutindo com a mãe, mas só.

Talita sempre teve um pouco de medo das mãos de Biro, e não entendia bem por quê. Numa noite dessas, ela foi arrancada do sono pelo som de algo quebrando dentro do quarto, no meio das brigas do casal. Ela imaginou as mãos de Biro espatifando o abajur, e entendeu que o que a incomodava eram aqueles dedos tensionados dele, que não desmanchavam os nós nem quando ele andava com jeitão descontraído. Os dedos davam a impressão de um bicho segurando as próprias rédeas. Naquela noite, Talita encolheu-se debaixo dos lençóis com Gertrudes, com quem dividiu seus temores sobre bichos e garras. Protegeram uma à outra até o sono chegar. A menina adormeceu imaginando o que aconteceria se o bicho desembestasse.

(Gabriela Marchioro/Superinteressante)

***
Sexta-feira, 9 de junho

Querido Diário,

Hoje foi um dia estranho.

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Mami escolheu essa sexta chuvosa para avisar Biro que ele não moraria mais com a gente. Nem preciso dizer o quanto ele ficou furioso como isso: primeiro, gritou com ela como de costume. Sacudiu-a até ela perder o fôlego. Depois caiu de joelhos aos pés dela, pedindo perdão, dizendo que ia mudar, jurando que nunca mais faria nada que a desagradasse. Mami respondeu que ele já tinha dito isso mil vezes, mas não adiantava nada.

Depois de esbravejar e choramingar, Biro saiu de casa batendo a porta. Mami correu para a janela e avisou que, se ele não voltasse para pegar a mala, jogaria as roupas no meio da rua mesmo.

Depois daquilo tudo, se instalou um grande silêncio na casa. Mami sentou na poltrona e ficou ali de frente para mim, com os olhos duros, quase sem piscar, e a boca num esgar. Reparei também que a coluna dela estava muito ereta de novo, a altivez lutando contra o peso da dor. Depois de alguns minutos assim, ela se levantou e foi pegar sua toalha no varal, subindo as escadas em seguida. Mami sempre gostou de chorar no chuveiro.

Ela estava lá em cima, no banho, quando Biro voltou. Eu estava onde estive desde o começo daquela confusão, sentadinha no sofá. Ele entrou tão afobado que quase tropeçou na mala bem na entrada da casa. Os cabelos estavam mais assanhados do que de costume, os olhos meio vidrados e vermelhos. E os dedos assustadores de Biro se cravaram sobre a mala com uma fúria incontida. O bicho que desembestara dentro dele arrebentou os zíperes e sacudiu tudo no chão. Pulou em cima da mala como um alucinado. Depois, atirou na parede o jarro que Vó Sônia trouxera da Grécia, e eu vi aquele objeto amado virar um monte de caquinho no chão. Havia saliva nos cantos da boca, e eu estava com muito medo.

A partir daí tudo aconteceu muito rápido. Eu estava paralisada de pânico, Biro já quebrara dois quadros na parede e puxara as cortinas da janela, arrebentando os ilhós e rasgando o pano. As garras dele agora tateavam às cegas pelo ar. Aí ele me viu no sofá. Percebi um brilho estranho nos olhos dele nessa hora, como de bicho selvagem. O bicho. Ele me segurou pelas pernas sem a menor cerimônia. Sempre o achei forte, mas ele me puxou pela sala como se eu não pesasse absolutamente nada. Com uma das mãos me arrastou jardim afora, na outra levava a mala, quase vazia, mas ainda pesada. Caía uma chuva fina que molhava meu rosto enquanto ele me arrastava pela grama do jardim. Comecei a rezar. Ele soltou um pouco a mala para empurrar, quase sem esforço, a tampa do poço artesiano, onde cresciam as primaveras que eu achava tão bonitas.

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Biro me arremessou sem a menor cerimônia para o fundo do poço, e atirou a mala por cima, me esmagando e estraçalhando meus braços e pernas.

Foi então, querido Diário, que eu morri.

***

Talita não pôde acreditar quando chegou da escola e viu o carro da polícia em frente à casa de sua mãe. Ela ficou indignada quando descobriu que Biro havia trucidado sua boneca favorita dentro do poço artesiano. Chegou a sentir-se culpada por ter esquecido Gertrudes na sala. Acreditava que, se ela não estivesse ali, Biro pegaria outro objeto para dar vazão à raiva.

Mas Vó Sônia prometeu que levaria o brinquedo para uma moça consertar. E, se não desse certo, elas iriam à Alemanha de novo, as três, comprar outra boneca igualzinha à Gertrudes. Agora que o bicho estava preso na Maria da Penha, as três poderiam viajar à vontade.

Andrea Nunes é autora dos romances policiais A Corte Infiltrada e O Código Numerati. Fez parte do time de escritores brasileiros selecionados para a Primavera Literária Brasileira nas universidades europeias em 2015, 2016 e 2017, e é promotora de justiça de combate à corrupção em Pernambuco.

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