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A onda das cervejas artesanais

A explosão da oferta de cervejas especiais trouxe junto uma enxurrada de novas informações e fez bebedor trocar o boteco pela escola. O cervejeiro já não é o tiozinho de barriga protuberante ‒ é o geek tatuado e barbudo, obcecado por rótulos artesanais.

Texto: Marcos Nogueira | Edição de Arte: Faz Faz Faz Design | Design: Andy Faria | Imagens: Tomás Arthuzzi


Não muito tempo atrás, tudo o que uma pessoa precisava saber sobre cerveja se resumia a duas coisas: 1) se ela era da marca A, B ou C; 2) se ela estava gelada. Hoje, pedir uma cerveja requer conhecimento sobre estilos, procedências, fabricantes, grau de álcool e amargor. O movimento da cerveja artesanal pegou com força no Brasil. A bebida tem se descolado velozmente da imagem que usava para vender a si mesma no século 20: um líquido leve, refrescante, feito para se beber aos litros na praia, no churrasco ou na balada.

Em questão de dez anos ou menos, passou a ser bacana tomar cervejas feitas na menor escala possível, percebendo nuances aromáticas e gustativas, servida a uma temperatura bastante superior aos -3 ºC exibidos no visor das geladeiras patrocinadas pelas grandes marcas.

É claro que as artesanais estão a anos-luz de ameaçar o domínio da cerveja genérica, vendida em garrafas de 600 ml, latinha ou latão. Dos 14 bilhões de litros que a indústria esperava vender em 2014, apenas 0,4% correspondem às chamadas cervejas especiais. Apenas? Coloquemos assim: em números absolutos, essa pequena porcentagem significa 56 milhões de litros. Ou 160 milhões de garrafas de 350 mililitros, quase uma long neck para cada habitante do Brasil.

Se você considerar ainda que nenhuma cerveja especial custa menos de R$ 15 e que esse valor atinge facilmente algumas dezenas de reais, temos um negócio atraente. Tão atraente que já seduziu o maior player do setor: a belgo-brasileira AB Inbev. Nos Estados Unidos, a gigante adquiriu três cervejarias muito prezadas pelos fãs das artesanais: a 10 Barrel, do Oregon, a Goose Island, de Chicago, e a Blue Point, do Estado de Nova York. No Brasil, a subsidiária Ambev converteu em 2014 as antigas instalações da Bohemia, em Petrópolis, numa fábrica-laboratório para lançar rótulos que vão concorrer diretamente com as invenções das microcervejarias.

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A AB Inbev percebeu uma tendência nada auspiciosa para seus carros-chefes. Cada vez menos o público consumidor de cerveja se deixa levar por campanhas publicitárias engraçadinhas, com slogans vazios para produtos sem atributos vendáveis. Com tanta variedade à disposição, o bebedor quer saber exatamente o que está no seu copo — e exatamente em que está sendo gasto o seu rico dinheirinho.

Formou-se uma comunidade ávida por adquirir, compartilhar e ostentar conhecimento. A chamada cultura cervejeira chegou até à aristocrática revista The New Yorker: a ilustração da capa da edição de 3 de novembro de 2014 sugere que o consumidor de cerveja está ficando tão afetado quanto o de vinho. Não sem alguma razão.

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Um subgrupo dentro da subcultura hipster adotou o saber enciclopédico sobre cerveja como traço de identidade: são os beer geeks, assim chamados em paródia aos nerds tecnológicos dos anos 2000. A carta de cervejas se tornou comum em restaurantes caros. Os cursos de sommelier de cerveja se multiplicam.

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O Instituto da Cerveja, uma das escolas que emitem o certificado, formou em quatro anos cerca de 1.500 alunos, divididos em 25 turmas em quatro cidades. Estácio Rodrigues, sócio do instituto, diz que três tipos de pessoas procuram as aulas. O primeiro time é composto de profissionais do setor. O segundo, de cervejeiros caseiros, beer geeks por excelência. O terceiro, daqueles que Estácio chama de beer lovers. “É gente apaixonada por esse universo, que sonha empreender na área.”

E o que se aprende num curso de sommelier de cerveja? Todo o básico para entender o processo de produção da bebida, conhecer sua taxonomia, servir e degustar tecnicamente. O beer geek pode ainda fazer uma especialização – existe um curso que versa unicamente sobre os defeitos sensoriais da cerveja, como a presença do ácido isovalérico, que dá cheiro de chulé.

Ou aprender a produzir a própria cerveja. Para quem se interessa somente por beber e falar sobre cerveja na mesa do bar, ler um pouco sobre o assunto já é o suficiente. A comunidade cervejeira usa a informação como instrumento de evangelização. A conversão de um cidadão comum em um beer geek passa, em seu primeiro estágio, por renegar as cervejas que ele bebia anteriormente.

Para isso, o neófito deve aprender que os fabricantes brasileiros aplicam a denominação “pilsen” com liberalidade. A pilsen original, também chamada de pilsner ou pils, é a mãe de todas as cervejas loiras e cristalinas. Foi criada em Plzeň, na Boêmia (hoje parte da República Tcheca), no século 19. Sua receita tem maltes claros e uma quantidade razoável de lúpulos.

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<strong>O novo bebedor de cerveja quer saber o que está em seu copo.</strong>
O novo bebedor de cerveja quer saber o que está em seu copo. (Annabelle Breakey/Getty Images)

A cerveja barata etiquetada como pilsen é bem diferente. Trata-se de um estilo que consta nos manuais como american standard lager, ou lager americana comum. Além de malte, leva grãos como milho e arroz, além de extratos e açúcares para acelerar a fermentação e baratear custos; o lúpulo, matéria-prima rara e preciosa, aparece em porções mínimas. Superada esta fase, é recomendável ao bebedor conhecer um bocadinho sobre tipos de cerveja – assunto infernalmente enrolado.

Uma noção anterior, entretanto, ajuda a compreender essa classificação. Todas as cervejas que existem no mundo pertencem a três grandes famílias, de acordo com o tipo de levedura usada na fabricação. As lambic seguem métodos ancestrais: a fermentação ocorre com micro-organismos “selvagens” – presentes nas matérias-primas e no ambiente.

São bebidas de acidez marcante e de sabor agreste. As cervejas da família ale são reconhecíveis pelo alto teor de ésteres, subprodutos da fermentação responsáveis por aromas frutados e de especiarias. Já as leveduras das lagers não produzem muitos ésteres: assim, o malte e o lúpulo predominam no sabor.

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O cervejeiro também deve estar atento às numerosas pegadinhas que confundem o bebedor. Um exemplo: a procedência da bebida não é tão importante para a cerveja quanto é para o vinho. Malte, lúpulo seco e fermento são ingredientes que viajam bem, e a água pode ser tratada ao gosto do cervejeiro. Assim, uma boa receita basta para reproduzir qualquer estilo de qualquer uma das quatro escolas principais – alemã, belga, britânica e americana – em qualquer lugar do mundo.

Se a procedência não é fundamental para o perfil da bebida, ela é crucial para a qualidade do líquido no ponto de venda. A maior parte das cervejas é muito perecível: o tempo e as condições de transporte alteram a cerveja importada — ou levada de caminhão, digamos, do Paraná ao Acre.

Assim, o movimento da cerveja artesanal valoriza a produção local. Nos Estados Unidos, existem cerca de 2.800 produtores micro, pequenos e médios. No Brasil, sem uma contagem oficial, estima-se que haja em torno de 300 microcervejarias. Microcervejaria, homebrewing, artesanal: estas palavras são muito caras aos beer geeks. Entre eles, está arraigada a ideia de que o nanico, o produtor caseiro e o artesão fazem melhor que os caras grandes. Só que nem sempre é assim.

Quando comprometido com o que faz, o pequeno cervejeiro vai trabalhar com muito mais afinco e capricho que o tecnólogo de uma grande empresa. As demandas do mercado também afetam o processo produtivo das corporações. “Minha pilsen demora um mês para ficar pronta”, diz Alexandre Bazzo, dono da cervejaria paulista Bamberg.

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“Nas grandes, esse tempo é de uma semana, no máximo dez dias.” Para liberar os tanques rapidamente para o próximo lote, a indústria turbina a cerveja com aditivos químicos que catalisam reações e aceleram a maturação da bebida. Depois, acrescentam mais compostos para neutralizar os subprodutos dessa maturação forçada.

<strong>Beer lovers são apaixonados por esse universo e sonham empreender na área.</strong>
Beer lovers são apaixonados por esse universo e sonham empreender na área. (Givaga/iStock)

O outro lado da moeda é o controle da qualidade da produção, ou a falta dele. Muitos microcervejeiros se limitam a fabricar chope sofrível “tipo pilsen”. Outros fazem cervejas especiais geralmente boas, mas erram a mão aqui e ali – e mandam a bebida assim mesmo para o mercado, pois quebrariam se descartassem o lote defeituoso. Numa companhia mastodôntica, com diversas fábricas cozinhando a mesma cerveja para diferentes praças, manter o padrão é tudo: um desvio mínimo condena um tanque inteiro ao ralo.

O próprio conceito de artesanal, que já é vago, se dissipa no ar quando se consideram o crescimento do anões e a incorporação destes pelos gigantes. A americana Samuel Adams faz excelentes cervejas que são adoradas por todo beer geek que se preze. Ela produz 300 milhões de litros e fatura US$ 800 milhões ao ano – muito distante de qualquer definição de “artesanal”.

A Eisenbahn, pioneira na produção de cervejas especiais no Brasil, pertence hoje ao grupo de origem japonesa Kirin. A fábrica de Blumenau, no entanto, não expandiu a capacidade que tinha em 2008, quando foi vendida. É artesanal ou não é? Mais que um conceito palpável, a palavra “artesanal” se tornou um chamariz de vendas para uma série de produtos industrializados com aparência (autêntica ou não) de coisa feita em pequena escala.

A cerveja popularizou essa noção e trouxe na esteira o bacon artesanal, o ketchup artesanal, o refrigerante artesanal, o queijo artesanal. Ou seja: em breve talvez tenhamos bacon geeks, ketchup geeks, soda geeks e cheese geeks. Que Ninkasi, a deusa suméria da cerveja, nos proteja.

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