O Instituto de Virologia de Wuhan fazia pesquisas com coronavírus – incluindo o RaTG13, ancestral mais próximo do Sars-Cov-2. Não seguia todas as normas de segurança. E, em 2015, sua principal cientista inseriu a proteína spike num vírus de morcego para torná-lo capaz de infectar células humanas. Entenda por que a tese de que o Sars-CoV-2 surgiu num acidente de laboratório, inicialmente descartada, volta a ganhar força.
Texto Bruno Garattoni (colaborou Tiago Cordeiro)
Ilustração Gustavo Magalhães
Design Juliana Krauss
Texto originalmente publicado pela Super em junho de 2021
“Os estudos de ganho de função, ou pesquisas que aumentam a capacidade de um patógeno causar doenças, ajudam a definir (…) o potencial pandêmico de agentes infecciosos emergentes, orientando esforços de preparação e de saúde pública”, diz um documento (1) enviado pelo Ministério da Saúde dos EUA para 18 universidades e centros de pesquisa do país em outubro de 2014. Porém, continua o texto, “estudos de ganho de função podem envolver riscos de biossegurança”, e por isso “o Governo dos EUA irá interromper, com efeito imediato, o financiamento de pesquisas [do tipo] com vírus influenza, Mers ou Sars”.
Esse tipo de estudo era realizado havia décadas, mas começou a gerar polêmica em 2011, quando uma equipe de cientistas dos EUA, da Inglaterra e da Holanda, e um segundo grupo do Japão, criaram versões modificadas do vírus H5N1 com uma nova habilidade: infectar mamíferos (2) (não só aves, como ele normalmente faz). Se esse vírus escapasse do laboratório, poderia começar uma pandemia. Por isso, os EUA decidiram banir as experiências do tipo.
Mas também não queriam ficar por fora das pesquisas com vírus. Em maio de 2014, o National Institutes of Health (NIH) autorizou o projeto 2R01AI110964-06: “Entendendo o Risco da Emergência de Coronavírus de Morcegos”. Seu objetivo era identificar possíveis ameaças biológicas na China, onde “morcegos e outras espécies selvagens são caçadas, vendidas, sacrificadas e comidas”, o que gera “alto risco de emergência de novos CoVs [coronavírus]”.
Para tocar o projeto, o NIH contratou o virologista inglês Peter Daszak, dono da EcoHealth Alliance, empresa especializada em coordenar pesquisas científicas internacionais. Daszak recebeu US$ 3,7 milhões – e repassou US$ 600 mil para um laboratório que ficaria encarregado de coletar e estudar coronavírus. Uma quantia quase simbólica, que serviu apenas para formalizar a cooperação científica entre EUA e China. O tal laboratório era o Instituto de Virologia de Wuhan.
Wuhan. Foi lá que o Sars-CoV-2 surgiu e infectou os primeiros humanos – depois de eles terem comido ou manuseado carne de algum animal selvagem vendido no mercado Huanan, na zona oeste da cidade. Essa é a teoria mais aceita para a gênese da pandemia. Mas não a única. Nos últimos meses, a tese de que o vírus teria se originado após um vazamento acidental no instituto de Wuhan deixou de ser uma teoria conspiratória e despertou o interesse de cientistas e governos – inclusive o dos EUA, que pretende realizar sua própria investigação a respeito.
Isso aconteceu por três motivos. O primeiro é o fim do governo Donald Trump. A tese do mercado Huanan nunca foi plenamente satisfatória (em janeiro de 2020, um estudo chinês que analisou os primeiros 41 internados com Covid constatou que 13 deles não tinham qualquer relação com o mercado (3)). Mesmo assim, poucos cientistas se atreviam a questioná-la – pois Trump costumava fazer isso de forma tresloucada e sem argumentos, o que politizava a questão e inibia uma discussão racional.
Segundo, o relatório oficial da OMS sobre as origens do vírus (4), finalmente publicado em fevereiro – e mal recebido pela comunidade científica. “As duas teorias [origem natural x vazamento de laboratório] não foram abordadas de forma equilibrada”, diz uma carta assinada por 18 pesquisadores das universidades mais importantes do mundo (MIT, Harvard, Stanford, Yale, Califórnia e Chicago, entre outras) e publicada em maio (5).
Das 120 páginas do relatório da OMS – que classifica a teoria do mercado Huanan como a mais plausível, e o vazamento como “extremamente improvável” – apenas oito efetivamente discutem as possíveis origens do vírus, de forma superficial. “Uma investigação crível deveria exigir acesso a arquivos, amostras, pessoas e instalações do Instituto de Virologia de Wuhan. A OMS não fez nada disso”, ataca o biólogo molecular Richard Ebright, da Universidade Rutgers. De fato. A própria OMS acabou admitindo, após a má repercussão do relatório, que não podia descartar a tese de vazamento. “Todas as hipóteses continuam na mesa”, disse seu diretor-geral, Tedros Adhanom.
A terceira razão para a mudança é que foram surgindo novas informações, e elas contam uma nova história. Segundo o Wall Street Journal, agências de inteligência do governo americano teriam descoberto que três cientistas do instituto de Wuhan foram a um hospital da cidade, com sintomas gripais, em novembro de 2019. Eles poderiam, portanto, ter começado a pandemia, ao contrair o Sars-CoV-2 e carregá-lo para fora do laboratório. A virologista Marion Koopmans, da OMS, disse ter sido informada pelo governo chinês que os três cientistas testaram negativo para o vírus. Mas a China nunca revelou os nomes dessas pessoas, nem apresentou os resultados dos testes.
Esse episódio é apenas um de vários envolvendo o Instituto de Virologia de Wuhan. Nos casos que você conhecerá a seguir, há elementos ainda mais intrigantes. Antes de começar, que uma coisa fique clara: nenhum deles é suficiente para dizer que o Sars-CoV-2 tenha surgido em laboratório. O que permitem afirmar, com segurança, é que essa hipótese precisa ser investigada – algo que 14 países, incluindo EUA, Reino Unido, Canadá, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Israel, defendem (6).