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Do lêmure ao dodô: por que as ilhas têm animais tão estranhos?

Elefantes em miniatura, hobbits da vida real, lêmures que fazem cosplay de bicho-preguiça: as ilhas são os universos paralelos da biologia, laboratórios a céu aberto para a seleção natural. E o maior inimigo dessa biodiversidade somos nós.

Texto: Maria Clara Rossini | Edição: Bruno Vaiano | Ilustração: Thiago Corrêa Mellado | Design: Juliana Briani


Os besouros do arquipélago da Madeira não são muito fãs de asas. Das 550 espécies presentes nessas ilhas portuguesas, 200 não conseguem voar. O naturalista Thomas Wollaston registrou essa peculiaridade em 1856, em um livro dedicado a seu amigo Charles Darwin. O dado chamou tanto a atenção do barbudo inglês que três anos depois, em A Origem das Espécies, ele propôs uma hipótese baseada na seleção natural. Escreveu que a culpa era dos fortes ventos nas ilhas: os insetos voadores tendem a ser varridos para o mar e morrem, enquanto os pedestres sobrevivem no chão e conseguem se reproduzir.

160 anos depois, em 2020, um estudo deu razão a Darwin. As asas de insetos atrofiam ao longo das gerações em várias ilhas por essa exata razão; Madeira não tem nada de especial. Em outras porçõezinhas de terra cercadas de água, bizarrices diferentes acontecem. Nas Galápagos, tartarugas de 400 kg vivem 150 anos; nas Ilhas Maurício, o dócil pombo gigante dodô vagava pelas praias até ser extinto por nós. Todas as ilhas sofrem da mesma síndrome: são universos paralelos, ecossistemas isolados em que a evolução pode tomar caminhos inviáveis no continente.

Estudar a seleção natural experimentalmente é um desafio para os biólogos até hoje. Ela é um processo lento, que dá frutos em escalas de tempo geológicas. Já é possível editar DNA com precisão altíssima, mas forçar uma espécie a evoluir em condições controladas, embora possível, é algo demorado e trabalhoso. Felizmente, o  isolamento insular escancara e acelera a seleção natural. As ilhas são maquetes, simulações de computador geradas pela natureza onde elefantinhos tamanho pet, papagaios sanguinários e até humanos de 1,10 m são possíveis. Nas próximas páginas, vamos explorar essas realidades alternativas.

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Lêmures na fossa

Os lêmures são endêmicos da ilha de Madagascar – ou seja, não existem em nenhum outro lugar do mundo. Eles fazem parte dos Strepsirrhini, uma subordem de primatas caracterizada pelo focinho alongado e úmido (o que os deixa parecendo uma mistura de macaco com cachorro). Ao longo da história, grande parte dos Strepsirrhini do continente foram substituídos pelos Haplorrhini, o grupo de primatas de nariz curto do qual fazemos parte.

Seria o fim dos lêmures se uma pequena população não tivesse ficado ilhada em Madagascar. Eles provavelmente chegaram lá flutuando em troncos de árvore há 50 milhões de anos. Enquanto seus parentes do continente eram extintos, os náufragos puderam colonizar a ilha sem se preocupar com predadores ou competição por comida.

Assim, evoluíram para ocupar os mais diversos nichos ecológicos. O maior deles foi o Archaeoindris fontoynontii, um lêmure extinto com porte e hábitos de gorila. Também havia o Palaeopropithecus, que se pendurava nas árvores com garras alongadas como se fosse um bicho-preguiça gigante. Já os lêmures-ratos (que existem até hoje) são os menores primatas do planeta, com 10 cm. Em um lugar sem ratos, chimpanzés ou preguiças, um bicho único pode se tornar todos eles sem ser incomodado.

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(Ilustração: Thiago Corrêa Mellado | Infográfico: Juliana Briani/Superinteressante)

Madagascar se tornou um mundo-lêmure, mas esses primatas não reinam sozinhos. Por lá, a cadeia alimentar inteira tem medo da… fossa. Se você visse esse animal de nome deprê na rua, poderia levá-lo para casa achando que é um gatinho. Mas as fossas, na verdade, são parentes mais próximas dos suricatos (o Timão de O Rei Leão).

Os animais tendem a ser mais homogêneos nos continentes. Com poucas barreiras ao deslocamento, eles podem deixar descendentes em todo lugar. Os ancestrais dos gatos deram origem aos leões na África, às onças na América e aos tigres na Ásia. O corpo ágil e os dentes afiados permitiram aos felinos ocupar o posto de carnívoro mainstream em todo o planeta, com ligeiras adaptações a cada região que colonizavam.

Só que eles não chegaram em Madagascar. Sorte dos ancestrais da fossa, os euplerídeos, que atracaram na ilha há 20 milhões de anos. Sem nenhum gatinho ocupando o nicho de rei da floresta, a seleção natural transformou aquele arremedo de Timão no predador mais eficiente da ilha – e de quebra deu a ele porte e traços físicos de felino. Esse é um caso de evolução convergente: quando duas espécies distantes geneticamente se tornam semelhantes porque ganham a vida de maneira parecida. Essa é a prova de que o corpo dos felinos é a solução ideal para o modo de vida que levam.

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I believe I can walk

Assim como os insetos, não é raro que os pássaros percam as asas nas ilhas. Não porque eles sejam levados pelo vento – são pesados demais para isso –, mas porque não há mais vantagem em voar. Se uma população pousa em um local isolado em que ainda não há predadores, mas o chão está cheio de alimento, a seleção natural recompensa quem economiza a energia do voo para investir no nicho terrestre.

Assim surgiram aves únicas. Como o kiwi, endêmico da Nova Zelândia. Além de ter dois palitos no lugar das asas funcionais, ele também é o animal com o ovo mais desproporcional da natureza: um bólido com 20% do peso da fêmea. É como se as humanas dessem à luz bebês de 12 kg. Essa bizarrice só evoluiu devido à falta de predadores terrestres na ilha, já que qualquer gato ficaria feliz não só em fazer um omelete de kiwi como em caçar a mãe – lenta por causa do bucho imenso.

O mais peculiar nessa ave de 30 cm, porém, é sua família – revelada em um artigo de 2014. O kiwi é o parente mais próximo da maior ave que já existiu: o pássaro-elefante. Esse animal de 400 kg e 3 m de altura viveu em Madagascar (já virou piada) até mil anos atrás – e, assim como seu pequeno primo neozelandês, também não voava. O ancestral comum entre os dois viveu há cerca de 50 milhões de anos. Como Madagascar e Nova Zelândia estão separadas por 11,5 mil km de água, o mais provável é que a espécie ancestral, voadora, tenha perdido as asas duas vezes, uma em cada ilha.

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(Ilustração: Thiago Corrêa Mellado | Infográfico: Juliana Briani/Superinteressante)
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Ciclopes de tromba

As ilhas de Malta, Creta, Sicília e Chipre, pequenos paraísos mediterrâneos, foram o lar de elefantes em miniatura. Eles tinham de 10% a 2% do peso de seus ancestrais, o que significa que os adultos eram do tamanho de um cachorro fila. Eles teriam diminuído de forma independente, a partir de elefantes comuns que nadaram do continente para cada ilha.

Tudo indica que esses animais tenham encolhido para economizar combustível. Uma população de elefantes que começasse a se reproduzir exponencialmente, sem ameaças, consumiria rápido a vegetação de uma ilha como Malta, que tem apenas 27 km no ponto mais largo. Os elefantes que nasciam grandes demais acabavam passando fome, morriam cedo e não faziam tantos filhotes – aos poucos, os genes que incentivam o crescimento saíram de campo.

Essas miniaturas já estão extintas, mas alguns historiadores acreditam que seus fósseis tenham inspirado o ciclope, gigante de um olho só da mitologia grega. O crânio do minielefante é só um pouco maior que o dos humanos, e possui um grande buraco oval na altura dos olhos, bem no centro do rosto. Na realidade, essa é a saída da tromba do animal – mas a imagem pode ter impressionado os antigos moradores da península dos helênicos. Os buracos laterais, onde efetivamente se encaixavam os olhos, são pouco perceptíveis e se confundem com outras dobras e reentrâncias do osso.

Esqueleto do Palaeoloxodon falconeri, espécie extinta das ilhas mediterrâneas
Esqueleto do Palaeoloxodon falconeri, espécie extinta das ilhas mediterrâneas (Stefano Stabile/Creative Commons)

Elefantes tamanho pocket e aves de proporções mitológicas são faces da mesma moeda: animais que eram grandes no continente tendem a encolher nas ilhas pela menor disponibilidade de alimento. Já roedores, insetos e pássaros não comem tanto a ponto de passarem fome, mas saem na vantagem pela falta de predadores. Isso deu origem a ratos gigantes em ilhas próximas à Europa, e também aos insetos Weta da Nova Zelândia, que chegam a ter o tamanho de uma mão humana. É a Regra das Ilhas, ou Regra de Foster, batizada em homenagem a J. Bristol Foster, que estudou o fenômeno nos anos 1960.

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Criança que faz criança...

Os humanos não foram apenas testemunhas da evolução em ilhas. Em 2003 descobrimos fósseis da nossa própria versão insular: o Homo floresiensis. Esse hominídeo de 1,1 m viveu na ilha de Flores, na Indonésia, até 50 mil anos atrás. A estatura diminuta e os pés desproporcionais lhes renderam a alcunha de hobbit, em referência aos pigmeus de Senhor dos Anéis.

De tudo que o floresiensis tem de incomum, o que mais chama a atenção é a rapidez com que ele evoluiu. Acredita-se que essas miniaturas descendam de um grupo de Homo erectus (ancestral dos sapiens e dos neandertais) que tenha chegado à ilha há 700 mil anos. O erectus media 1,7 m, e o floresiensis é 40% menor.

Um professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), José Alexandre Felizola, está interessado em saber se essa diminuição realmente seria possível em tão pouco tempo, e se ela foi condicionada pela regra de Foster. Usando simulações de computador, ele concluiu que provavelmente não foi apenas a falta de recursos que levou ao nanismo.

Siga o raciocínio: o cérebro drena 20% das nossas calorias. Ou seja, se o nanismo fosse condicionado principalmente pela falta de comida, seria de se esperar que o cérebro fosse o principal órgão atingido.Isso não ocorreu no floresiensis. Ele de fato tem um crânio menor que o erectus, mas proporcional ao corpo diminuto. Além disso, os hobbits usavam ferramentas e provavelmente sabiam assar alimentos. Não perderam muito em esperteza.

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Por isso, a pesquisa sugere que o floresiensis encolheu por outra razão: ele teria passado a atingir a maturidade sexual mais cedo – e o crescimento dos seres humanos desacelera após a puberdade. Isso seria uma consequência da falta de predadores naturais na ilha. Os hominídeos não precisavam mais se preocupar tanto em proteger a cria, o que abria a possibilidade de ter mais bebês. Quanto mais cedo eles atingissem a idade reprodutiva, mais filhos poderiam ter. Esses filhos passariam os genes da adolescência antecipada para ainda mais descendentes, e assim a espécie encolheria gradualmente para dar preferência à prole.

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(Ilustração: Thiago Corrêa Mellado | Infográfico: Juliana Briani/Superinteressante)

É possível que isso também tenha ocorrido com outras espécies, como os minicervos característicos de algumas ilhas. Esses bambis não só são menores como também possuem traços mais infantis. “Isso geraria o padrão da Regra das Ilhas por um processo diferente da questão dos recursos. As duas coisas provavelmente acontecem ao mesmo tempo, e algumas linhagens vão ser mais sensíveis a um ou outro mecanismo”, diz o pesquisador. Os elefantes, por exemplo, podem ter sido mais suscetíveis à falta de alimento do que à puberdade precoce.

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Fadados à extinção

Justamente porque foram feitas sob medida para um ecossistema miniatura, espécies insulares são particularmente vulneráveis a qualquer perturbação do habitat, de mudanças climáticas à introdução de novas espécies – em especial, o ser humano, seus pets e suas pragas. As ilhas representam apenas 5% da área terrestre do planeta, mas 60% das extinções recentes ocorreram nelas, pela caça indiscriminada ou de cachorros, gatos e ratos que chegaram de navio conosco.

Os dodôs são o caso mais célebre: devido à falta de predadores naturais, esses pombos de 1 metro eram extremamente dóceis e não tinham medo dos humanos. E os navegadores holandeses não se importavam com a consistência dura da carne de dodô assada. A ave foi descoberta em 1598 e extinta em menos de 70 anos, em 1662.

Menos conhecido é o do lobo-da-tasmânia. Apesar da aparência canina, ele foi um marsupial (sim, com bolsa para filhotes) carnívoro que viveu na pequena ilha ao sul da Austrália. Sua caça era incentivada com recompensas pelos fazendeiros do século 19, porque eles atacavam os rebanhos da região. O lobo-da-tasmânia foi declarado como uma espécie protegida em 1936, dois meses após a morte do último espécime em um zoológico.

As poucas espécies ainda existentes mencionadas ao longo deste texto estão vulneráveis à extinção. 37% dos animais altamente ameaçados vivem em ilhas. Se a Terra é só um pontinho azul especial na vastidão do espaço, então as ilhas são pontinhos verdes no meio do azul. Pequenos planetas em que tudo aconteceu diferente. Interferir nesses ecossistemas é um atentado à curiosidade: cada espécie insular é uma combinação de átomos original e insubstituível. Um acontecimento único no Universo, do qual não nos cabe privar as próximas gerações.

Fontes: Mark Lomolino, pesquisador em biogeografia de ilhas e professor da Universidade do Estado de Nova York; Livros O Canto do Dodô, de David Quammen; A Origem das Espécies, de Charles Darwin; Biogeography: A very short introduction, de Mark Lomolino

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