ERA CONTEMPORÂNEA
Kant pôs fim na pretensão filosófica de tentar conhecer as coisas tais como elas são, a realidade em si. Depois dele, a filosofia passou a ser basicamente uma grande teoria do conhecimento: o que é possível conhecer verdadeiramente tendo em vista os limites da nossa razão?
Aos poucos, a corte da “rainha das ciências” começou a se desgarrar e criar seus próprios reinos. As ciências humanas, como a psicologia, a sociologia, a antropologia, a história e a geografia, foram ganhando independência e passaram a ser encaradas como campos de conhecimentos específicos, com métodos e resultados próprios. O segundo a minar o poderio filosófico foi Auguste Comte e seu positivismo. O pensador francês achava que a filosofia deveria ser apenas uma reflexão sobre os resultados e o significado dos avanços científicos. Com isso, a filosofia se resignou a estudar o conhecimento adquirido por vias mais sólidas do que o pensamento puro e a ética, que nunca deixou de ser um tema essencialmente dela.
O século 19 também aproximou alguns pensadores da realidade. A crítica de Karl Marx ao modo de produção que, segundo ele, sistematicamente explora os trabalhadores e enriquece os ricos, teve reflexos no mundo real assim que seu Manifesto do Partido Comunista ganhou as ruas. Marx, no entanto, foi uma exceção. O interesse pelas estruturas do conhecimento e pela consciência e seus modos de expressão direcionou a filosofia para recantos herméticos, como os estudos da linguagem — corrente conhecida como filosofia analítica, iniciada pelo austríaco Ludwig Wittgenstein. O movimento ficou conhecido como a “virada linguística”. Outra vertente, conhecida como fenomenologia, se debruçou sobre os fenômenos que se manifestam para a consciência, a partir da ideia kantiana de que a razão é uma estrutura da consciência. Seu criador, Edmund Husserl, considera a realidade como um conjunto de significações ou sentidos produzidos pela nossa razão.
Foi preciso chegar o século 20, com suas grandes guerras e agitações sociais, para colocar a política por fim de volta à pauta dos pensadores, que se tornaram críticos das ideologias e da ideia de progresso. Os filósofos tentaram frear o delírio científico-tecnológico e o otimismo revolucionário que cooptou grande parte dos intelectuais. Passaram a se questionar se o homem, imerso em uma vida acelerada e soterrado pela burocracia, conseguiria ter uma vida feliz e almejar uma sociedade justa. O primeiro a lançar essa dúvida foi o alemão Theodor Adorno, um dos fundadores da Escola de Frankfurt, que buscou inspiração em Marx. Será o homem realmente livre ou uma marionete da sua condição psiquíca e social?
KARL MARX
Karl Marx morreu pobre, esquecido e sem pátria: exilado em Londres, foi velado por apenas 11 pessoas, incluindo o coveiro. Suas ideias, porém, se refletiriam na vida de bilhões durante o século 20. Poucos pensadores exerceram influência política tão clara quanto Marx. Certamente, nenhum foi discutido com tanta paixão — mesmo por leigos. Um pouco disso se deve à missão que Marx julgava ter, hoje estampada em sua lápide: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias formas. A questão, no entanto, é mudar o mundo”. Foi com espírito revolucionário que o alemão, junto de seu amigo e financiador Friedrich Engels, lançou o Manifesto do Partido Comunista, em 1848 — texto curto que ainda hoje ofusca sua obra máxima, o muito mais complexo O Capital.
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O panfleto conclamava os trabalhadores a se levantar contra a classe dominante, e se afinou com o sentimento da época. Após o Manifesto, no mesmo ano, várias revoluções sociais eclodiriam pela Europa. Quase todas foram esmagadas, mas ajudaram a pavimentar o caminho para reformas sociais. Marx diagnosticou que as mudanças históricas resultam do conflito entre a classe dominante e a dominada. Em sua época, tal antagonismo seria entre a “burguesia” (dona dos meios de produção) e o “proletariado” (que, sem os equipamentos e o dinheiro para produzir, precisa vender sua mão de obra para sobreviver). No pensamento marxista, o capitalismo geraria crises cíclicas que elevariam a pobreza, pois dela se alimentava. Marx acreditava que precisamente isso seria a ruína do sistema: o desenvolvimento aumentava o número de explorados, que por fim se uniriam pela revolução. A consequência seria uma sociedade sem classes, na qual os meios de produção se tornariam propriedade comum.
Para seus críticos, não há dúvidas de que Marx fracassou. A maioria dos países que tentou seguir a doutrina viu seus governos derrubados, como a União Soviética e as nações vizinhas, ou teve de mudar sua economia, como a China. Em nenhum lugar foi possível concluir a transição prevista por Marx, quando o “socialismo” orientado por um grupo de líderes revolucionários daria lugar ao “comunismo”, em que a própria ideia de Estado seria obsoleta. Os admiradores de Marx sustentam que, apesar dos muitos equívocos, algumas de suas análises foram precisas e seguem atuais. No Manifesto, por exemplo, ele havia apontado que a sociedade capitalista mudaria o formato familiar vigente até o século 19. Em 1998, o historiador inglês Eric Hobsbawm (um marxista convicto) escreveu: “Nos países ocidentais avançados, hoje quase metade das crianças é gerada ou educada por mães solteiras”.
FRIEDRICH NIETZSCHE
Aos 24 anos, Friedrich Nietzsche foi nomeado para lecionar Filosofia Clássica na Universidade da Basileia. O que podia ser o começo de uma promissora carreira acadêmica na verdade foi uma curta incursão, que durou apenas dez anos. Apesar da inclinação à rotina professoral, Nietzsche sofria com enxaquecas, problemas digestivos e respiratórios crônicos, que o fizeram abandonar o cargo na universidade. Na década seguinte, com ajuda de amigos e vivendo de uma minguada pensão, o filósofo realizou diversas viagens para outros países, atrás de climas mais amenos. Enquanto viajava, escrevia. Seus textos fizeram pouco sucesso na época. Assim Falou Zaratustra, por exemplo, só saiu porque o autor pagou parte da publicação do próprio bolso. Até que, em 1889, Nietzsche sofreu um colapso mental do qual nunca se recuperou.
O filósofo passou os últimos anos de sua vida entre manicômios e os cuidados de sua família. Faleceu 11 anos mais tarde, sem ter escrito mais nada. O que ele havia dito até ali? Valendo-se de textos romanceados e de personagens por meio dos quais manifestava algumas de suas ideias, ele se propôs a discutir o futuro de nossos valores morais. Quando escreveu “Deus está morto”, o filósofo não queria dizer que a entidade divina tinha deixado de existir — e sim questionar se ainda era razoável ter fé em Deus e basear nossas atitudes nisso. Nietzsche propunha que, recusando Deus, podemos também nos livrar de valores que nos são impostos. A maneira de fazer isso seria questionando a origem dessas ideias. Ele se definia como um “imoralista”, não porque pregasse o mal, mas por entender que o correto seria superar a moral nascida da religião.
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De acordo com seus textos, tanto o pensamento cristão quanto certas doutrinas filosóficas (em especial a de Platão) davam a entender que o mundo em que vivemos é apenas “aparente”, havendo um outro mundo “real”, mais importante. No caso da religião, esse outro mundo só seria acessível após a morte. Para Nietzsche, essa ideia nos impedia de aproveitar a vida em prol de um objetivo imaginário. Ele dizia haver apenas um mundo — e afirmava que, quando percebemos isso, somos obrigados a rever nossos valores e aquilo que entendemos como humano. Influenciado pelo evolucionismo de Charles Darwin, Nietzsche sugere, em Assim Falou Zaratustra, o surgimento de um “super-homem” — um homem futuro, superior aos códigos morais da época do texto. Mais tarde, esse conceito seria distorcido e usado pelos nazistas para justificar sua ideia de uma raça superior e dominante.
EFEITO EXPLOSIVO
Nietzsche construiu sua filosofia juntando várias perspectivas sobre o mesmo tema. Ele não estava interessado em criar uma teoria fechada ou receitas acabadas, mas em experimentar. Toda a sua filosofia foi oferecer hipóteses interpretativas.
Mas seu experimentalismo dinamitou os alicerces da filosofia e do homem ao questionar a crença em Deus, as bases dos valores e a nossa própria forma de raciocinar amparada na dicotomia entre bem e mal ou certo e errado. Classificou os valores como “humanos, demasiado humanos” (nome de uma de suas obras) e não imutáveis como propôs Platão — o que os torna questionáveis.
HEGEL
Não foram poucos os que tropeçaram nas palavras de Georg Hegel, tentando decifrar o real sentido por trás de seus termos difíceis, sua linguagem abstrata e seu gosto por neologismos. Quando se recuperavam, seus leitores se dividiam em dois grupos: alguns consideravam as ideias geniais, outros não tinham dúvida de que ele escondia com a linguagem rebuscada sua incapacidade de compreender o que analisava. Mas nenhum filósofo vindo após o século 19 ficou imune a Hegel, nem que fosse para criticá-lo.
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Desde cedo, ele foi um leitor contumaz. Às vésperas de completar 19 anos, ficou impressionado pelos ventos da Revolução Francesa, que saudou como um “glorioso amanhecer”. Eram tempos em que mudar a ordem estabelecida parecia mais possível do que nunca, e esse sentimento acompanharia o alemão na tentativa de explicar a história. Para Hegel, a realidade é um processo histórico, mutável, com as ideias estabelecidas de acordo com o período em que vivemos. Embora nosso costume seja ver a história como uma sequência sem planejamento coerente, Hegel argumenta que existe um padrão para a forma como ela se desenvolve. O filósofo diz que a história caminha para uma conquista gradual de mais razão e liberdade, até a ascensão de um geist — termo que costuma ser traduzido como “espírito” ou “mente”.
Como um idealista, o pensador tinha o geist como algo fundamental para o mundo, contrariando os materialistas, para quem esse posto era da matéria física. Uma das formas de se chegar a esse estágio de pensamento mais evoluído seria pela discussão de uma ideia com o seu oposto: nos termos de Hegel, pela discussão de uma tese com sua antítese. Isso se daria com o método dialético proposto pelo filósofo, que faria surgir uma terceira ideia mais elaborada, formada pelas duas anteriores — a síntese.
Tal processo seria contínuo: a síntese viraria ela mesma uma nova tese, voltando a ser discutida com uma antítese, e formando um novo tipo de pensamento, e assim sucessivamente. Isso seguiria ocorrendo ao longo da história até que o geist alcançasse um pleno entendimento de si mesmo.Tantas abstrações fizeram o pensador colecionar críticos em todas as épocas. Mas os admiradores também foram muitos. Um de seus maiores legados, a visão da realidade como um processo histórico em desenvolvimento, ajudaria a fundamentar, pouco tempo após sua morte, o que viria a ser o pensamento marxista.
KIERKEGAARD
Para Kierkegaard, os filósofos de seu tempo estavam se perdendo em abstrações que se desconectavam da vida cotidiana. O dinamarquês foi em oposição aos colegas e procurou explicar de maneira palpável os dilemas morais, utilizando a noção de que nossas vidas são determinadas por ações, orientadas pelas nossas escolhas. O homem teria liberdade de fazer julgamentos de acordo com sua vontade, por vezes tendo de escolher entre aquilo que é melhor para si mesmo e aquilo que é mais ético. Essa liberdade seria a causa de nossa “angústia” diária. Isto é, cada escolha que fazemos é análoga ao medo de um homem diante de um penhasco, que teme tanto a ameaça da queda quanto o possível impulso de se atirar no vazio para ver no que dá. “O crucial é encontrar uma verdade que seja verdadeira para mim, encontrar a ideia pela qual eu possa viver e morrer”, escreveu.
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SCHOPENHAUER
Schopenhauer era um opositor de Hegel — nas ideias e no ego. Quando foi convidado para lecionar em Berlim, marcou suas aulas para o mesmo horário daquelas ministradas pelo concorrente, a quem chamava de “charlatão”. Schopenhauer não ficou nada satisfeito ao ver que os alunos preferiam o rival — apenas cinco se matricularam em sua classe. Ainda assim, foi um dos pensadores mais importantes da época. Sustentou que o mundo e os homens são dirigidos por uma vontade irracional. Enquanto Hegel defendia a ideia de um geist, um “espírito guiando a consciência coletiva e as ações individuais, Schopenhauer era mais pessimista: nossos atos seriam guiados por desejos impossíveis de satisfazer. Tão logo realizássemos uma vontade, surgiria outra.
Para ele, o caminho para atingir a verdadeira felicidade seria justamente a castidade e a renúncia. Apesar da visão desiludida da existência, Schopenhauer dedicou parte da sua obra para tratar do amor — e buscar o amor. Não devemos nos culpar por sofrer de amor, dizia, porque nada na vida é mais importante do que amar. Mas sua visão não era propriamente romântica. Para o filósofo, o amor é um artifício biológico para garantir a sobrevivência da espécie — não amamos senão por um impulso inconsciente que chamou de a “vontade de viver” (ou de ter filhos). Antes de Darwin e Freud, foi o primeiro a apontar razões inconscientes e biológicas da paixão. Ele próprio não foi bem-sucedido no assunto e era um devotado criador de poodles.
AUGUSTE COMTE
Considerado o fundador da sociologia moderna, Auguste Comte direcionou suas reflexões na tentativa de remediar o caos social deixado pela Revolução Francesa. O filósofo desenvolveu a “lei dos três estados”, segundo a qual os homens explicam todos os fenômenos do Universo passando por três fases: a teológica, baseada na suposta vontade de seres sobrenaturais; a metafísica, em que se imagina a ação de forças ocultas; e, finalmente, a fase “positivista”, em que as explicações são decorrentes do conhecimento científico. Para Comte, os critérios das ciências biológicas e exatas ajudariam a explicar até mesmo a sociedade. Seu pensamento teve grande influência no movimento republicano brasileiro, que eternizou parte de uma das máximas de Comte no lema da bandeira nacional.
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WITTGENSTEIN
Herdeiro de um dos homens mais ricos da Europa, Ludwig Wittgenstein nasceu em Viena e viajou a Cambridge para concluir sua graduação em Engenharia. Mas se encantou pela lógica e resolveu ir a Manchester para estudar com Bertrand Russell. Seu único livro, Tratado Lógico-Filosófico, de 1921, se tornou um dos principais textos da história da filosofia e impactou todas as ciências ao impulsionar o movimento conhecido como positivismo lógico. O austríaco escreveu o livro enquanto era soldado, durante a 1ª Guerra. Nas 70 páginas de sua obra, empenha-se em definir os limites da linguagem e, consequentemente, de todo o pensamento. Ao concluí-lo, julgou ter resolvido todos os problemas da filosofia. Por considerar que não tinha nada mais a aportar à disciplina, resolveu se dedicar a outras atividades. Passados alguns anos, porém, começou a rever seu próprio pensamento, tornando-se um de seus principais críticos. Foi então que voltou a Cambridge, onde lecionou de 1929 a 1939.
BERTRAND RUSSELL
Nos 97 anos em que viveu, Bertrand Russell testemunhou um sem fim de acontecimentos históricos. Nunca impassível: chegou a passar seis meses na prisão por falar abertamente contra a 1ª Guerra, em 1916. Nascido em uma família aristocrática, o conde Russell formou-se em Matemática e, buscando os fatores que tornavam essa disciplina verdadeira, chegou à Filosofia, em que se fascinou pela Lógica. Russell dedicou grande parte de sua obra a desmembrar a linguagem comum para explicar a estrutura lógica existente sob ela. Acreditava que esse tipo de análise da linguagem, que traduz frases e expressões em termos mais precisos, seria uma ferramenta útil para desvendar segredos que levariam a avanços em todas as áreas da filosofia. Mas seus livros tratam de muitos assuntos, sempre com humor ácido e prosa fluida.
WILLIAM JAMES
Criador do pragmatismo, o americano William James teve seu desenvolvimento intelectual moldado pelas constantes viagens à Europa. Aos 19 anos, o irmão mais velho do escritor Henry James já havia visitado o Velho Continente três vezes. Era fluente em alemão, italiano e francês. Ingressou no curso de Medicina de Harvard em 1864, mas no segundo semestre abandonou temporariamente as aulas para integrar uma expedição de oito meses à Amazônia. Quando finalmente se formou, em 1869, não tinha expectativas de exercer a medicina. Gastava seu tempo estudando psicologia e filosofia. Do pai, também filósofo, herdou um profundo interesse pelos valores morais e espirituais, a necessidade de uma fé. Defendeu que as teorias científicas e filosóficas devem ser julgadas por suas finalidades práticas. Fenômenos como a religião são verdadeiros se tiverem bons resultados. “Em princípios pragmáticos, se a hipótese de Deus funciona satisfatoriamente no sentido mais amplo da palavra, ela é verdadeira”.
EDMUND HUSSERL
O filósofo, astrônomo e matemático Edmund Husserl queria encontrar a certeza. Inspirado em Descartes, buscava libertar a filosofia da dúvida. Então, fundou a fenomenologia, abordagem que propunha olhar para as nossas experiências com uma postura científica. Segundo esse método, tudo o que é real é fenômeno — e aí está a essência das coisas. Diferentemente de Kant, que aceitava a existência de uma verdade incompreensível, Husserl não acreditava em uma realidade inacessível. Há somente o fenômeno ou a essência, que é a maneira como compreendemos as coisas materiais ou imateriais. A abordagem marcou a história da filosofia porque ofereceu um modo de pensar todos os tipos de realidade.
JEAN-PAUL SARTRE
Estamos condenados a ser livres. Essa é a sentença de Sartre para a humanidade. O filósofo e escritor francês, ao lado do argelino Albert Camus, foi um dos maiores representantes do existencialismo, corrente filosófica que nasceu com Kierkegaard e reflete sobre o sentido que o homem dá à própria vida. Para Sartre, a existência do ser humano vem antes da sua essência. Ou seja, não nascemos com uma função pré-definida, como uma tesoura, que foi feita para cortar, por exemplo.
Segundo o filósofo, antes de tomar qualquer decisão, não somos nada. Vamos nos moldando a partir das nossas escolhas. Toda essa liberdade resulta em muita angústia. Essa angústia é ainda maior quando percebemos que nossas ações são um espelho para a sociedade. Estamos constantemente pintando um quadro de como deveria ser a sociedade a partir das nossas ações — o curioso é que o próprio Sartre era viciado em anfetaminas, ou seja, não foi exatamente um exemplo de conduta. Defendia que temos inteira liberdade para decidir o que queremos nos tornar ou fazer com nossa vida. A má-fé seria mentir para si mesmo, tentando nos convencer de que não somos livres. O problema é que nossos projetos pessoais entram em conflito com o projeto de vida dos outros. Eles, os outros, tiram parte de nossa autonomia. Por isso, temos de refletir sobre nossas escolhas para não sair por aí agindo sem rumo, deixando de realizar as coisas que vão definir a existência de cada um. Ao mesmo tempo, é pelo olhar do outro que reconhecemos a nós mesmos, com erros e acertos. Já que a convivência expõe nossas fraquezas, os outros são o “inferno” — daí a origem da célebre frase do pensador francês.
Em uma França devastada após o final da 2ª Guerra, liberdade não era exatamente a palavra do momento. Mas as ideias de Sartre inspiraram toda uma geração de ativistas, como os revolucionários de Paris em maio de 1968, que ajudaram a derrubar o governo conservador francês. O filósofo ficou conhecido também pela sua relação com Simone de Beauvoir, outra ilustre filósofa existencialista. Ela foi sua companheira de toda a vida, apesar de nunca terem firmado um compromisso. Sartre morreu como um filósofo pop. Em 15 de abril de 1980, mais de 50 mil pessoas foram ao seu funeral.
THEODORE ADORNO
Em meados do século 20, meios de comunicação como rádio, jornais e revistas começavam a atingir grandes plateias, mas o fenômeno demorou para despertar atenção da filosofia — até que Adorno resolveu se debruçar sobre o assunto em um dos capítulos do clássico Dialética do Esclarecimento, escrito junto com o amigo Max Horkheimer. Na obra, a dupla mostra como o saber está ligado a processos de dominação na história da civilização. As críticas se tornaram fundamentais para compreender não só o impacto das novas tecnologias de comunicação na sociedade, mas como o poder está mascarado pelo saber na atualidade. Filósofo, sociólogo, compositor musical e crítico de arte, Theodor Adorno foi um dos fundadores da Escola de Frankfurt, grupo informal de pensadores de orientação marxista. Quando se formou em filosofia, em 1924, já era amigo de Walter Benjamin e de Horkheimer, que também se firmariam como grandes expoentes da Escola.
Sua fama intelectual surgiria quase uma década mais tarde, com a publicação de uma tese sobre Kierkegaard, em 1933. Era o ano em que Hitler assumia o poder na Alemanha, obrigando Adorno e vários intelectuais a abandonar o país. A primeira parada foi Londres, onde lecionou três anos em Oxford. Em 1938, um convite de Horkheimer para dirigir o projeto de investigação radiofônica da Universidade de Princeton o levou aos EUA. O filósofo não gostou do que viu na América, mas o contato com o ambiente no qual os meios de comunicação estavam em frenética expansão foi fundamental para o desenvolvimento de sua obra. A observação de um universo regido por interesses, lucro e conveniências o motivou a refletir atentamente sobre a massificação da cultura. Para ele, os meios de comunicação de massa eram parte fundamental da indústria cultural, uma criação do capitalismo que molda a mentalidade das pessoas que aderem a ela inconscientemente. Adorno considerava que o rádio, por exemplo, semeava o conformismo e a resignação, tornando a população inerte frente a um sistema que desfigura a essência do ser. E a televisão sequer havia chegado.
Em 1949, Adorno e outros colegas decidiram voltar à Alemanha e reconstruir em Frankfurt o Instituto para Pesquisa Social, que havia sido transferido para Nova York durante o nazismo. Rapidamente, chegou ao posto de diretor. O filósofo morreu em 1969, deixando incompleta sua Teoria Estética, em que defende a relevância do pensamento crítico. Cada ato profundamente crítico, dizia, é como uma garrafa lançada ao mar para futuros destinatários. Uma das mensagens dessa garrafa é de que a indústria da cultura engana constantemente seus consumidores ao prometer entregar-lhes uma felicidade plena que é irrevogavelmente ilusória.
HANNAH ARENDT
Autora inspirada pelos acontecimentos que a rodeavam e pela sua própria experiência, Hannah acompanhou o julgamento de um nazista duas décadas depois de ela mesma ter escapado de um campo de concentração. O homem no banco dos réus, em Jerusalém, era Adolph Eichmann, responsável por ajudar a transportar milhares de judeus para a morte durante o Holocausto. Hannah queria entender por que Eichmann fez coisas tão terríveis. Seus ensaios para a revista New Yorker revelavam que o réu era um homem comum que havia optado por não pensar sobre o que fazia. Não tinha ódio pelos judeus, nem a psicopatia de Hitler. Eichmann alegava que apenas cumpria ordens ao planejar como milhares de pessoas seriam levadas a campos de concentração. A filósofa usou o termo “banalidade do mal” para descrever o que viu em Eichmann, expressão que não procurava rebaixar a gravidade dos crimes, mas aumentá-los. Sua conclusão era de que o mal não nasce do desejo de praticar o mal, mas da rendição das pessoas a falhas de julgamento, por vezes incentivadas por sistemas opressivos. Nada disso, é claro, exime o mal praticado.
HEIDEGGER
O alemão reabilitou a metafísica no século 20 depois da disciplina ter sido esquecida por três séculos. Mas, ao retomar a preocupação sobre o que é o ser, ele reposicionou radicalmente o pensamento sobre a existência. Da Antiguidade ao século 17, o ser e o ente (coisa) recebiam tratamentos iguais. Para o filósofo, o ser não é uma coisa. O ser tem um caráter histórico, é um movimento, logo não se pode determinar o que é a sua essência. O ser só pode ser pensado, não enunciado. Complexo? Sim, muito. Heidegger é conhecido pela hermetismo. Mas não só por isso. Um dos seus pensamentos mais originais foi sobre a tecnologia, que poderia exercer controle sobre a natureza. Só que esse controle seria uma ilusão. As mudanças climáticas, agravadas pela ação da tecnologia sobre a natureza, são um exemplo de como não temos total poder sobre a natureza. Escreveu tanto que, antes de morrer, deixou textos para alguns editores, e obras inéditas ainda chegam às livrarias desde a década de 1970.
KARL POPPER
Se o nazismo não tivesse desviado a história de seu curso natural, Popper provavelmente teria sido apenas um obscuro professor de filosofia da ciência em Viena. Mas Hitler motivou o filósofo a escrever A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, livro-chave para o pensamento liberal moderno. Nessa defesa da democracia, Popper cita o historicismo como um dos maiores advsersários da sociedade, pois isenta os homens do ônus de suas responsabilidades ao considerar que o futuro já está definido independentemente de suas ações. Depois da ocupação nazista, fixou residência na Inglaterra, onde foi professor da London School of Economics e da Universidade de Londres. Interessado no método pelo qual a ciência decifra o mundo, criou o conceito de falseabilidade. Para ele, o que torna uma teoria realmente científica é a possibilidade de provar que ela é falsa pela experiência. Por exemplo: por anos, os cientistas acreditavam que só existiam cisnes brancos, pois nunca haviam visto um cisne negro. A aparição de um cisne negro desmonta a tese. A única maneira de provar que todos os cisnes são brancos é vendo todos os cisnes. A ideia é usada para diferenciar alegações científicas e não científicas. Popper se tornou um dos filósofos da ciência mais destacados do século 20.
FOUCAULT
Inquieto e curioso em relação à existência, Michel Foucault frustrou uma família de médicos ao enveredar pelo caminho da filosofia e da psicologia. Nenhum desses títulos, porém, o satisfazia. Preferia ser definido como arqueólogo, por sua dedicação a reconstituir o que de mais profundo existe em uma cultura.
Inspirado no pensamento de Nietzsche, desenvolveu um método que coloca em cheque a compreensão linear da história. Para ele, a verdade histórica não é uma sequência rigorosa de causa e efeito facilmente compreensível em qualquer época, mas, sim, o resultado de um confronto entre forças antagônicas que fazem sentido em determinado tempo. Seu objetivo era compreender como antigos fenômenos podem ser reconstituídos da forma como foram vividos. Como é possível, em suas palavras, fazer uma “história do presente”? Por exemplo, a Lei Seca instituída nos EUA, em 1919, pode ser vista hoje como uma maluquice dos legisladores americanos, mas quem investigar a mentalidade do início do século 20 e os conflitos provocados pelo álcool vai entender melhor por que uma decisão tão radical foi tomada.
O pensador estava mais preocupado no modo como nosso discurso — isto é, como falamos e pensamos o mundo — é condicionado por regras, muitas vezes inconscientes, fixadas pelas condições históricas do momento. Essas regras mudam — daí viria a necessidade de se fazer uma “arqueologia” para desvendar como era no tempo antigo. Para Foucault, era errado supor que podemos falar de “homem” da mesma maneira como na Antiguidade. Segundo o pensador, o homem como objeto de estudo, por exemplo, surgiu no início do século 19 — o que explica sua célebre frase acima. Seu estudo que desvenda as formas de exercício de poder na sociedade também é notório. Foucault acreditava que a compreensão do que somos, pensamos e fazemos abre uma possibilidade de ser, pensar e fazer de outra forma.
Essa é a grande contribuição para a filosofia do trio rebelde, como ficaram conhecidos Foucault, Derrida e Deleuze, seus dois colegas franceses também badalados depois dos anos 60. Consagrado, Foucault foi convidado a lecionar no prestigiado Collège de France. Morreu aos 57 anos, em 1984, no ápice da sua produção intelectual. Deixou inacabada a sua História da Sexualidade, seu livro mais ambicioso, no qual pretendia mostrar como, por meio da expressão e não da repressão, a sociedade ocidental faz do sexo um instrumento de poder.
RAWLS
Tem lugar no hall da fama dos filósofos políticos. Abalado pela injustiça das bombas atômicas da 2ª Guerra, onde lutou pelo exército americano, encontrou na filosofia sua maneira de mudar a sociedade. Ao longo de 20 anos, maturou as reflexões que resultariam no best-seller Uma Teoria da Justiça. No livro, o professor de Harvard defende que as instituições políticas devem ser justas e propõe experimentos mentais inovadores para definir o que é justo ou não.
Sua teoria parte de uma situação hipotética: um grupo de pessoas na “posição original”, ou seja, sem saber seu lugar na sociedade, definiria as novas regras. Esses indivíduos estariam encobertos pelo “véu da ignorância” e assim decidiriam o que é mais justo para todo mundo. E como ninguém queria sair prejudicado, escolheriam as regras mais imparciais. A tese baseava-se em dois princípios caros: liberdade e igualdade. Casos de jogadores de futebol que ganham milhões eram considerados absurdos pelo pensador. Essa situação só era aceitável se o fato do jogador ser muito rico tornasse os miseráveis menos pobres. Para Rawls, não havia ligação direta entre ser bom em algo e merecer ganhar mais. Esse talento seria uma espécie de “loteria natural”, ou seja, seria injusto premiar o craque duas vezes.
DAWKINS
Dawkins não é e nem pretende ser filósofo. Mas, em 1976, quando era um biólogo ainda pouco conhecido, publicou O Gene Egoísta, e ajudou a redefinir a percepção sobre quem somos — uma tarefa que sempre coube aos filósofos. No livro, defende que não somos muito mais do que robôs comandados pelos genes para sobreviver a qualquer custo. E o que faz um gene prosperar em um ambiente altamente competitivo é seu egoísmo implacável. Apesar da visão desencantada, a obra se tornou um dos maiores best-sellers da ciência, e Dawkins, uma notoriedade. Mesmo sem querer, se colocou ao lado dos pensadores que ajudaram o homem a compreender melhor seu papel no planeta. Sua sacada foi perceber que o processo de evolução das espécies ocorre no nível genético (o gene é sua unidade fundamental ou multiplicador) e que a visão darwinista também pode ser útil para compreender o progresso cultural. Dawkins cunhou o termo meme, que seria um equivalente comportamental do gene, para levar a visão evolucionista para fora da biologia. O conceito deu origem à memética, que inspirou filosófos como Daniel Dennett. O cientista também é ateu declarado, autor de Deus, um Delírio.
BAUMAN
Zygmunt Bauman era sociólogo por formação, mas sua obra mais contundente faz uma crítica filosófica profunda da modernidade. Cunhou o conceito “modernidade líquida” para explicar como nada hoje em dia é feito para durar, do amor à profissão, tudo é líquido, muda de forma muito rapidamente e sob pouca pressão. Dessa instabilidade permanente, nasce uma angústia do homem diante do futuro e do progresso — e isso explica o boom do consumo de antidepressivos, anabolizantes e toda a ordem de entretenimento que ajude a afastar essa sensação. Modernidade Líquida é apenas uma das 40 obras (sendo 16 delas traduzidas para o português) do pensador, que foi professor emérito da Universidade de Leeds, na Inglaterra.
O PAI DO PÓS
Em 1979, o pensador francês Jean-François Lyotard lançou o livro A Condição Pós-Moderna, cujo principal mérito foi colocar a expressão pós-modernidade no vocabulário intelectual e popular. O conceito tem zilhões de definições, mas pode ser resumido como essa nova fase da humanidade em que a busca pelo progresso terminou, e os indivíduos estão livres para criar tudo novo (tudo mesmo), sem as amarras das forças do passado, como o capitalismo.