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A guerra que o Brasil esqueceu

Os últimos sobreviventes da Guerra do Contestado, em Santa Catarina, contam à SUPER o que viram numa das rebeliões mais sangrentas e desconhecidas do Brasil

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 17 nov 2016, 16h53 - Publicado em 30 abr 2000, 22h00

Raulino Corrêa de Souza tinha 9 anos quando as tropas do governo chegaram. Era fim de dezembro de 1915. A primeira coisa que se ouviu foram os tiros. “Parecia uma trovoada: bruuuumm!!!”, conta, imitando o barulho. Depois, os gritos e o alarido da fuga. Debilitado pela fome, ele mal conseguiu acompanhar a mãe e os primos, que escaparam da cidade da única maneira possível – atravessando um rio a nado. “Estava tão fraco que me joguei na correnteza de qualquer jeito”, recorda-se. “Achei que fosse me afogar, mas, de tão magro, nem afundei.”

Hoje com 94 anos, Raulino é uma das últimas testemunhas da Guerra do Contestado, o maior levante popular do Brasil e um dos menos conhecidos. Entre 1912 e 1916, os caboclos do sertão catarinense pegaram em armas contra tropas federais. O conflito, simultâneo à Primeira Guerra Mundial, foi esquecido pela imprensa da época e minimizado pelos livros de História. Ninguém sabe sequer quantos morreram. Podem ter sido 10 000 ou 20 000 indivíduos.

O estopim do confronto foi uma disputa por limites da chamada região do Contestado – um território maior que o do Espírito Santo, rico em florestas de araucária e pés de erva-mate –, que era reclamado por Santa Catarina e Paraná. “Mas a revolta teve sobretudo um caráter social e religioso”, disse à SUPER a historiadora Ivone Gallo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O que manteve os caboclos unidos foi a crença em um profeta conhecido como monge José Maria, um guerreiro místico como Antônio Conselheiro, que em 1896 liderou os camponeses de Canudos, na Bahia.

O Contestado foi um movimento milenarista, ou seja, impregnado de temores apocalípticos e esperanças de salvação para os iniciados. Os caboclos acreditavam no fim deste mundo e no surgimento de outro melhor, sem fome nem miséria. “Até hoje a população local se refere ao episódio como a guerra dos fanáticos”, diz o historiador Paulo Pinheiro Machado, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ele está estudando o período final da contenda e há dois anos percorre a região atrás dos últimos “fanáticos”. É se valendo da memória deles – e de seus filhos – que os pesquisadores reconstroem a história do Contestado.

A SUPER acompanhou Pinheiro Machado em uma dessas buscas.

Profetas, posseiros e multinacionais

Os camponeses do planalto catarinense não se espantaram quando, em 1911, um peregrino chamado José Maria apareceu por ali fazendo rezas e curando doentes com ervas. Desde meados do século XIX a região era visitada por monges errantes. O mais famoso deles foi João Maria de Agostini, um milagreiro até hoje venerado como santo no Sul do país. Apresentando-se como irmão desse, José Maria alertava os caboclos para os males causados pela República, profetizava o fim da era de sofrimento e anunciava o início de muitos séculos de felicidade, com a volta da Monarquia.

O recado do monge empolgava os caboclos. Primeiros colonizadores do Contestado, eles haviam se estabelecido como posseiros nas terras devolutas – territórios desocupados pertencentes à União – do planalto, vindos, muitos, do Rio Grande do Sul, em meados do século XIX. Desde o início da República, em 1889, esses pioneiros foram sendo expulsos por latifundiários que apresentavam falsos títulos de propriedade.

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O processo se agravou em 1908, com a construção da ferrovia São Paulo–Rio Grande do Sul, que atravessava a região. Ao construir a linha, a empresa americana Brazil Railway Company ganhou do governo uma área de 15 quilômetros de cada lado dos trilhos para explorar a madeira dos pinheirais nativos. Todos os colonos instalados naquela área foram enxotados pelo corpo de segurança da ferrovia. O ressentimento aumentou.

Em fevereiro de 1912, José Maria participou de uma festa religiosa em um lugar chamado Taquaruçu, no município de Curitibanos, em Santa Catarina. Mas, depois da festa, em vez de voltar para casa, 300 camponeses ficaram ali, cantando e rezando por dias. Davam vivas a São João Maria e à Monarquia. Para o prefeito de Curitibanos, Francisco de Albuquerque, aquilo cheirava a conspiração. Albuquerque mandou um telegrama a Florianópolis pedindo uma força policial para desbaratar o ajuntamento de caboclos que havia “proclamado a monarquia” no sertão. “Os caboclos não eram monarquistas”, explica Ivone Gallo, da Unicamp. “Para eles, monarquia significava oposição à República, o regime acusado pelas desigualdades sociais.” Quando a polícia chegou, os caboclos fugiram. Alguns seguiram José Maria até a vila de Irani, no município de Palmas, hoje oeste catarinense, então administrado pelo Paraná. O governo paranaense tomou aquilo como uma provocação do Estado vizinho e mandou um destacamento de 64 homens a Irani. A ordem era levar os “invasores” amarrados para Curitiba.

Acuados, os caboclos tiveram de lutar. “O José Maria mandou alguns de seus homens para espionar a movimentação da tropa. Então, preparou uma tocaia”, conta o historiador Vicente Telles, de Irani. Ao se aproximar da vila, num brejo, a tropa foi surpreendida por caboclos de facões em punho. Morreram 23 pessoas na batalha, incluindo José Maria. Mas ninguém ficou triste. “O monge havia profetizado sua morte”, afirma Paulo Pinheiro Machado, da UFSC. Só que havia, também, prometido o seu retorno. Os caboclos estavam tão certos disso que, em vez de enterrá-lo, só cobriram o corpo com algumas tábuas. A guerra havia começado.

Espíritos formavam tropa de elite

Depois da primeira batalha os fanáticos se dispersaram, para alívio do governo e da elite local. O sossego durou até outubro de 1913, quando uma menina de 11 anos, Teodora Alves Ferreira, começou a ter visões de José Maria em sonho. A “virgem” Teodora era neta de Eusébio dos Santos, um fazendeiro que havia combatido em Irani e acreditava na ressurreição do monge. “Nos sonhos, José Maria mandava os caboclos se juntarem de novo para criar uma cidade santa em Taquaruçu e esperar o fim do tempo de sofrimento”, diz Pinheiro Machado.

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O governo federal já havia visto aquele filme antes, em Canudos. Mandou uma tropa para combater o reduto dos “jagunços” e, como em Canudos, apanhou feio. Mais uma vez, a tropa foi surpreendida pelos caboclos escondidos no mato. A vitória deixou a sacrossanta Taquaruçu em estado de graça. Os caboclos se julgavam invencíveis e acreditavam ter a ajuda do Exército Encantado, um pelotão celeste invisível comandado por São Sebastião, o santo guerreiro, que tinha como combatentes João Maria e todos os rebeldes mortos em Irani. De tão confiantes, chegaram a queimar todas as armas tomadas dos inimigos, consideradas “impuras”.

Eram confiantes, mas não suicidas. Sabendo que não poderiam resistir por muito tempo, mudaram a cidade santa de lugar. A 30 quilômetros de Taquaruçu, surgiu o reduto de Caraguatá. Em fevereiro de 1914, quando o governo mandou canhões para bombardear Taquaruçu, a maioria dos caboclos já havia ido embora. Mesmo assim, o bombardeio deixou noventa mortos.

Em Caraguatá começou a contra-ofensiva jagunça. Pequenos comandos de caboclos armados, os piquetes, atacaram fazendas, estações de trem e cidades. A vila de Curitibanos foi ocupada em 26 de setembro de 1914. As casas do prefeito Francisco de Albuquerque e de seus partidários foram incendiadas. “O curioso é que eles avisaram a população antes, para que os homens pudessem fugir”, conta Pinheiro Machado. Conhecedores do sertão, os rebeldes usavam táticas de guerrilha contra os militares. “A diversão deles era atacar de dentro da mata as colunas do Exército, que só marchavam em fila e em terreno limpo”, afirma o historiador.

Para antecipar os movimentos do inimigo, usavam espiões. Chamados de “bombeiros”, eles se disfarçavam de tropeiros ou pedintes para poder entrar nos acampamentos das tropas. Depois, relatavam o que viam e ouviam aos chefes do reduto, que preparavam a defesa.

Reconhecendo a inferioridade no terreno, o Exército passou a contratar vaqueanos, peões de fazenda ou capangas de coronéis armados para guiar as tropas e lutar contra os jagunços. “Acontecia muito de os vaqueanos terem parentes nos redutos e vice-versa”, comenta Pinheiro Machado. O fato de serem conhecedores do sertão tornava esses homens uma dor de cabeça para os jagunços. Mas os caboclos eram criativos. Infiltravam seus “bombeiros” entre os vaqueanos para guiar as tropas federais para emboscadas. Sabendo do pavor sertanejo de não ter um enterro cristão, desenterravam corpos de soldados mortos em combate e os deixavam pelo caminho, para aterrorizar os mercenários.

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Massacre e limpeza étnica

Com a destruição de Caraguatá por uma epidemia de tifo, os jagunços se espalharam por vários outros redutos. Para garantir a sobrevivência, roubavam gado em fazendas vizinhas. Famintos e desesperados, muitos começaram a desertar. Alguns saíam dos redutos para se alistar no Exército.

Em dezembro de 1914, formou-se a vila de Santa Maria. Ela abrigava mais de 5 000 moradores e tinha a proteção de uma serra íngreme e de uma floresta densa – além, é claro, de todos os santos. Era tida como impenetrável.

O Exército não estava mais disposto a levar desaforo para casa. No final do ano, o general Setembrino de Carvalho (depois ministro da Guerra, de 1922 a 1926) foi incumbido de destruir Santa Maria. Carvalho era um militar experiente e tinha 7 000 homens à sua disposição. Montou uma operação gigantesca e atacou os quatro lados do reduto após cortar o abastecimento dos jagunços.

Em Santa Maria o clima era de terror. O líder, Adeodato Manoel Ramos, executava quem ameaçasse desertar. Centenas morreram de fome. Em março de 1915, uma frente de 2 000 soldados, comandados pelo coronel Tertuliano Potyguara, entrou na cidade. Todas as 5 000 casas foram queimadas e mais de 600 caboclos morreram.

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Os sobreviventes de Santa Maria se juntaram outra vez, ainda sob o comando de Adeodato, nos redutos de São Miguel e São Pedro, e resistiram até o final de 1915. Mas foram finalmente derrotados por um piquete de 1 000 vaqueanos.

Desde 1914 começara uma “operação limpeza” na região. Sob o comando do capitão José Vieira da Rosa, os vaqueanos iniciaram uma caçada aos jagunços remanescentes no mato. “Muitos deles eram executados por esses civis, mesmo depois de rendidos”, afirma o historiador Nilson Thomé, da Universidade do Contestado, em Caçador. Um desses mercenários, Pedro Ruivo, era conhecido por tirar fanáticos presos da cadeia de Canoinhas e degolá-los à beira do Rio Negro.

Com a resistência quebrada e os rebeldes desbaratados, o conflito foi formalmente encerrado em 1916, com a assinatura de um tratado entre Paraná e Santa Catarina, que dividiu o território litigioso entre os dois – acabando o “contestado”. Para os caboclos que sobreviveram, restou trabalhar nas fazendas dos coronéis. Muitos abjuraram o movimento. Hoje, os descendentes não gostam de falar do conflito e vêem o passado dos pais e tios com vergonha. O Contestado é a região mais pobre de Santa Catarina. Foi uma guerra perdida.

Tirano humanizado

Adeodato Manoel Ramos, o Leodato, foi o último líder jagunço. Implantou o terror para inibir a deserção dos redutos e matou até a mulher.

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Seu nome ficou na memória dos sertanejos como sinônimo de tirano sanguinário. Mas, em sua pesquisa, Paulo Pinheiro Machado descobriu o lado humano do jagunço. “Ele tirou milhares de Santa Maria quando o cerco apertou, evitando um massacre maior”, afirma. “Era adorado pelas crianças do reduto, que espionavam a conduta dos pais para ele.”

Para saber mais

Messianismo e Conflito Social, Maurício Vinhas de Queiroz, Editora Ática, São Paulo, 1981.

Contestado: O Sonho do Milênio Igualitário, Ivone Gallo, Unicamp, Campinas, 1999.

Contestado, Editora Index, Rio de Janeiro, 1987.

cangelo@abril.com.br

Algo mais

Apesar do nome, quase todos os combates da Guerra do Contestado aconteceram em território catarinense, fora da região disputada com o Paraná. O limite entre os dois Estados era o Rio Caçador (abaixo), hoje incorporado a Santa Catarina.

“Comemos até couro”

Raulino Corrêa morou na Cidade Santa de São Pedro, último reduto dos rebeldes caboclos, no noroeste de Santa Catarina. Fugiu com a família para o mato quando o Exército tomou a vila, em dezembro de 1915. Ele tinha 9 anos e não esquece a fome que sentiu nos meses finais da guerra. “A gente comia até broto de taquara pra não morrer”, conta. “Não tinha nenhum cinto de couro no reduto, porque comemos todos.” Depois de semanas escondida, a família se entregou aos militares.

Faroeste caboclo

Os combates se estenderam por um território de 28 000 quilômetros, maior que o Estado do Espírito Santo.

Oitenta e oito anos depois, o perfume das madressilvas é tudo o que se sente no campo de batalha de Irani. A marca sutil do combate são buracos de bala nos troncos das palmeiras

O monge José Maria, líder espiritual dos fanáticos, cercado por duas “virgens” em 1912, ano em que começou a guerra. Ele morreu na primeira batalha, mas os caboclos esperavam a sua ressurreição

Vingança sertaneja

As primeiras recordações de infância de Antônio Fabrício das Neves, 77 anos, são de longas caminhadas pela floresta no colo da mãe. “Ela ia visitar meu pai, que passou anos escondido no mato”, relata. O velho João Fabrício se escondia com razão. Ele havia combatido ao lado do monge José Maria na batalha de Irani. “Meu pai sempre contava que eles não queriam brigar. Mas o coronel João Gualberto (João Gualberto Gomes de Sá Filho, comandante da expedição derrotada) disse que ia levar todo mundo amarrado.” Suspeito de ter matado o chefe militar durante o combate, João Fabrício ficou com a cabeça a prêmio. Literalmente. “Mandaram um emissário de Curitiba para Palmas para acabar com ele”, conta Antônio, entre goles de chimarrão. Mas o velho era esperto. “Tinha um primo dele que foi bombear (espionar) o assassino, fingindo ser inimigo do meu pai. Ele perguntou pro sujeito como é que fazia pra dar um fim no Fabrício. Aí o cara disse: ‘Foi pra isso que eu vim’.” Mataram o dito-cujo ali mesmo. “Salgaram o corpo, meteram num caixote de madeira e mandaram no trem pra Curitiba.” Vingança cabocla.

“A gente lutava obrigado”

Firmino Martim é um gaúcho de 106 anos que até hoje carrega no corpo as lembranças do Contestado, onde lutou como vaqueano do Exército. Tem um ferimento de bala na testa que nunca cicatrizou e acabou virando uma enorme verruga. O braço, também ferido, é semiparalisado. Apesar disso, não sente raiva dos fanáticos. “Muitos nos redutos eram como irmãos pra mim.” Seu Firmino tinha 19 anos quando foi servir a um fazendeiro de cujo nome ele nem se lembra. “Eles chamavam e a gente era obrigado a lutar”, conta. O governo dava aos fazendeiros uma diária de 500 mil-réis para pagar os vaqueanos. Mas eles embolsavam tudo. “A gente passava até dois meses no mato caçando jagunço, com fome, comendo até broto de xaxim.” O ex-vaqueano conta que os combates eram corpo a corpo. “Morria-se de lado a lado. A gente passava a cavalo e encontrava uns com as tripas de fora, gritando por socorro. Matávamos, de misericórdia.” Esse veterano de guerra não ganhou nenhum prêmio. Hoje está cego, doente e mora em um casebre sem luz elétrica no município de Jaborá.

Infantaria cabocla

O uniforme dos jagunços.

Devoção

No chapéu era enrolada uma fita branca, com o comprimento exato de 1,70 metro. Era a altura do monge José Maria.

Pelados

Os soldados fanáticos raspavam a cabeça. Chamavam a si mesmos “pelados” e, aos governistas, “peludos”.

Bandeira branca

O estandarte com a cruz verde pintada era carregado sempre na mão esquerda. Muitas vezes era usado nos combates corpo a corpo para tapar a visão do inimigo.

Facão

Feito de ferro ou de madeira dura, como imbuia, capaz de adquirir fio, servia para cortar erva-mate nos tempos de paz. Era mortal na mão dos jagunços, que preferiam usá-lo a combater com armas de fogo.

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