Fantasmas da Antártida: os vestígios das primeiras expedições ao continente gelado
O gelo preserva há mais de cem anos vestígios das primeiras expedições à Antártida: cabanas repletas de roupas e comida do século 19 intacta, na embalagem.
Há poucos lugares no mundo em que, no início do inverno, o Sol se põe e só volta com a chegada da primavera. Um deles é a Noruega – onde, em 1864, nasceu Carsten Borchgrevink. Outro é a Antártida, onde ele e nove companheiros tornaram-se os primeiros seres humanos a experimentar o inverno nos arredores do Polo Sul.
Sua embarcação, o SS Southern Cross, partiu de Londres e chegou ao Cabo Adare em 17 de fevereiro de 1898, com 75 cães, trenós e duas cabanas pré-fabricadas de 35 m². Essas quitinetes polares estão lá até hoje – o que torna a Antártida o único continente em que os primeiros prédios construídos ainda estão de pé. A expedição, um suicídio pelas condições tecnológicas da época, foi financiada pelo magnata da imprensa George Newnes. Ele forneceu 40 mil libras – R$ 20 milhões em dinheiro de hoje.
Na latitude 71º20’ S, a célebre noite polar não é bem noite. O Sol se mantém algo entre 0º e 6º abaixo da linha do horizonte – o que oculta a circunferência do astro, mas não toda sua luz. O resultado é um crepúsculo de vários meses, em que parte do céu fica laranja, e o chão, mergulhado na penumbra. Em 1898, ano em que Borchgrevink passou o inverno no Cabo Adare, esse período de lusco-fusco foi de 15 de maio a 27 de julho.
“Filé de foca e carne de pinguim assada se tornam um repasto frequente conforme ficamos terrivelmente enjoados de comida enlatada”, lamenta o explorador em suas lembranças. “As refeições (…) não duravam mais de cinco minutos em dias normais.” Biscoitos, queijo, presunto, geleia, sardinha e bacon eram os itens mais comuns. A convivência era difícil: Borchgrevink era um líder recluso e de pavio curto; sua única diversão era uma partida de xadrez diária com o médico da expedição. Como uma das cabanas era usada só para guardar suprimentos, restavam 3,5 m² para cada homem na outra. O teto tinha 2,1 m de altura e o isolamento térmico era feito com papel machê.
Apesar da temperatura, que variava entre -15 ºC e -40 ºC, eles fizeram observações meteorológicas, estudaram o campo magnético, encontraram insetos e vegetais esparsos e traçaram mapas da região que seriam valiosos para as incursões posteriores. Não chegaram ao Polo Sul, mas alcançaram a latitude 78°50’ S – a mais extrema até então, a 1.240 km do Polo Sul – e inauguraram a idade heróica da exploração antártica; um empreendimento que, à época, teve um impacto equivalente ao da chegada do homem à Lua.
Freezer natural
Cinco toneladas de pão, uma tonelada de manteiga, 28 toneladas de óleo de fígado de bacalhau, 53 fogões de acampamento e biscoitos de aveia com 58% de gordura para os cães – que também ganharam botas e casacos. Essa é só uma amostra da lista de suprimentos levados por Borchgrevink e seu time.
E boa parte desse estoque continua intacto até hoje, sob responsabilidade da Antarctic Heritage Trust (AHT), organização neozelandesa sem fins lucrativos que faz viagens periódicas à Antártida oriental para preservar os objetos que os primeiros exploradores deixaram para trás. Nada pode ser retirado. Cada lata de comida é patrimônio da humanidade e, após passar por um delicado processo de preservação, é devolvida à prateleira ou caixa originais.
Além das cabanas pioneiras de 1898 – onde há mais de 1,5 mil itens inventariados –, há quatro acampamentos históricos preservados no litoral do Mar de Ross, a região da Antártida mais próxima da Austrália, que foi ponto de partida das primeiras incursões rumo ao Polo Sul.
Esses lugares são como cápsulas do tempo. Graças à temperatura e a embalagens reforçadas – decoradas com rótulos típicos da Era Vitoriana –, boa parte dos alimentos não só está preservada como mantém o aroma original. São potes de geleia, vidros de molho inglês e até bombons de limão, armazenados com xícaras e toalhas de chá, cachecóis e meias, carvão e pólvora.
Alguns itens rendem boas histórias: é o caso de uma lata com um pedaço de bolo de frutas secas de cerca de 1910, que passou incólume até hoje. “Tinha um cheiro de manteiga rançosa muito, muito leve; tirando isso, o bolo parecia comestível!”, comentou Lizzie Meek, especialista em preservação de itens históricos, ao abrir a embalagem um século depois.
A receita da vovó foi deixada na Antártida por outra missão famosa: a do britânico Robert Scott, que desembarcou por lá em 1912. Sua expedição de cinco homens foi a segunda da história a alcançar o Polo Sul geográfico – chegou lá só um mês depois de outro time, liderado por Roald Amundsen, fincar a bandeira da Noruega na latitude 90°00’ S, em dezembro de 1911.
A cabana da missão de Scott era bem maior e mais confortável que as de 1898. “A palavra ‘cabana’ é enganosa”, escreveu o britânico em seu diário. “Nossa residência é uma casa de tamanho considerável, para todos os efeitos a melhor já erguida nos polos. Tem 15 m de comprimento, 7,5 m de largura e 2,7 m de pé direito.”
Após a incursão, Scott e seus homens morreram tentando voltar para o litoral, e ele se tornou um herói nacional no Reino Unido. A próxima grande missão ao continente gelado só seria organizada 45 anos depois, em 1956, quando uma equipe liderada pelo britânico Vivian Fuchs desembarcou no litoral ocidental da Antártida – região mais próxima da América do Sul – e começou uma travessia de 3,4 mil km até a região do Mar de Ross, na ponta oposta. No caminho, eles passaram pelo Polo Sul.
O neozelandês Edmund Hillary deveria ficar nas redondezas de uma base no local de chegada, abrindo caminho para o grupo que se aproximava. Mas decidiu avançar até o Polo Sul também, e chegou lá antes de Fuchs – feito que, somado à sua escalada pioneira do Monte Everest, em 1953 (entre outros heroísmos), lhe rendeu o título de Sir.
Sua residência antártica, também preservada pelo AHT, é mais moderna – e atesta a evolução da tecnologia após a 2ª Guerra Mundial. A restauração, terminada em 2017, levou 237 dias – e devolveu às paredes externas a pintura original, laranja e amarela. Hoje ela não está mais isolada: virou o edíficio “A” da Base Scott, um complexo de pesquisa operado pela Nova Zelândia que tem dezenas de prédios e abriga 85 pesquisadores no verão. A vida na Antártida segue dura. Mas é quase tranquila à sombra do inverno pioneiro de Borchgrevink.
Fontes: Antartic Heritage Trust (AHT); Exploring Polar Frontiers: A Historical Encyclopedia, Vol. 1, de William J. Mills; First on the Antarctic Continent, de Carsten E. Borchgrevink.