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Antes de Noé, a arca era redonda

O barco nasceu redondo na literatura mitológica. É o que mostra um texto escrito mil anos antes do Velho Testamento.

Por Reinaldo José Lopes
Atualizado em 12 mar 2018, 16h26 - Publicado em 17 jun 2016, 20h30

De livrinhos infantis a superproduções com Russell Crowe, todo mundo já se acostumou com a imagem da Arca de Noé como uma espécie de transatlântico de baixa tecnologia, com seu casco bojudo e aquela casinha triangular no alto. É realmente chato bagunçar memórias de infância, mas o mais provável é que a arca “original” tenha sido… redonda. E com diâmetro bem maior que a altura. Praticamente uma bolacha recheada gigante. Veja:

arca-de-noé
Enquanto corria a barca...

1 – De dois em dois

O texto mesopotâmico fala em pares de animais, mas não diz que teriam sido todas as espécies existentes no mundo.

2 – A inspiração
O formato arredondado derivaria de barcos simples usados nos rios Tigre e Eufrates.

3 – Capricha no betume
Esse derivado do petróleo (riqueza que sempre foi abundante na Mesopotâmia), serviria para impermeabilizar a arca.

Essa é a tese de um dos maiores especialistas do mundo em caracteres cuneiformes, principal forma de escrita da antiga Mesopotâmia. O nome do homem é Irving Finkel, do Departamento do Oriente Médio do Museu Britânico, em Londres. Veja bem, Finkel não está afirmando que achou um relato histórico contemporâneo da inundação que teria destruído a vida na Terra (temporariamente). Até onde sabemos, nada do tipo aconteceu historicamente, embora algumas catástrofes bem mais modestas possam ter inspirado a narrativa. Na verdade, as tabuletas de argila estudadas pelo pesquisador são mais uma prova importante do fenômeno que a gente já encontrou na primeira reportagem desta revista: os autores da Bíblia usaram temas e histórias que circulavam há séculos pelas culturas do Oriente Médio como base de suas narrativas. Mas deram uma interpretação renovada a esse caldo de cultura, introduzindo uma série de ideias diferentes, ligadas à crença num Deus único. Em resumo, a narrativa da Arca de Noé, tal como a da criação, é teologia, e não história.

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Esses humanos são uns chatos

Para entender melhor isso, vamos fazer um pequeno flashback. Você deve estar lembrado de que, segundo o Gênesis, o primeiro casal de humanos foi criado “à imagem e semelhança” de Deus, com o direito de governar sobre todos os outros seres vivos e com inteligência e autonomia moral semelhantes às do Criador. Mas eles desobedecem à ordem de não comer do fruto proibido do Éden e, por isso, são expulsos do Paraíso.

Começam a ter filhos-o mais velho, Caim, mata o segundo, Abel, aliás-e a humanidade se multiplica pelo planeta. Só que o “jeito Caim de ser” parece que acaba predominando, e Deus fica tão desgostoso com os descendentes dele, extremamente violentos e sanguinários, que decide varrer a humanidade do mapa-com exceção do único homem “íntegro entre seus contemporâneos”,  nosso amigo Noé.

A ideia de que os seres humanos estavam proliferando sobre a Terra também é um ponto importantíssimo das histórias sobre o Dilúvio anteriores à narrativa bíblica. Só que, nos textos mesopotâmicos, como a Epopeia de Gilgamesh ou o Épico de Atrahasis, o problema não era a sanguinolência humana, mas sim… o barulho causado por tanta gente. É sério: segundo essa visão, o Dilúvio teria sido apenas uma forma extremamente draconiana de aplicar a Lei do Silêncio. No Épico de Atrahasis, por exemplo, o deus Enlil diz aos seus companheiros divinos: “O barulho da raça humana se tornou intenso demais para mim/Com a balbúrdia deles sou privado do sono”.

Esse texto é justamente o estudado por Finkel-já se conheciam várias versões dele, mas as novas tabuletas de argila analisadas pelo britânico trazem dados mais precisos sobre a construção da arca. “A ideia do barulho no Épico de Atrahasis provavelmente reflete a superpopulação que, segundo a imaginação do autor, teria surgido antes que os deuses impusessem a mortalidade ao homem”, explica. “É uma decisão racional por parte dos deuses, digamos, e não uma decisão moral.”

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Essa é a principal diferença entre a concepção bíblica e a visão mesopotâmica do Dilúvio. “A preocupação característica dos pensadores judeus que escreveram o Antigo Testamento é com a moralidade. Não que a compreensão das diferenças entre o bom e o mau comportamento não existisse na antiga Mesopotâmia, mas eles não faziam tanto barulho em relação a isso quanto as religiões que surgiram depois”, conta Finkel.

Na narrativa de Atrahasis, os deuses seguem o conselho de Enlil-menos um deles, Enki, que decide dar uma mãozinha para o herói-título da história, cujo nome quer dizer “extremamente sábio”. Falando através de um muro de juncos (para não dar na cara que ele estava dedurando o plano dos demais deuses), Enki instrui o humano Atrahasis a construir a arca, dando a entender que ela deveria ser redonda.

As medidas exatas, segundo o texto, seriam 67,7 metros de diâmetro por 6 m de altura. A matéria-prima: madeira e cordas feitas de fibra de palmeira, recobertas com betume (que é basicamente petróleo que aflora naturalmente no Iraque). Você deve estar pensando que esse treco não ia ser capaz de navegar nem aqui nem na China. De fato, mas a ideia é que ele só precisaria flutuar nas águas revoltas do Dilúvio, então a navegabilidade não seria um grande problema.

A sequência dos eventos daí para a frente é quase idêntica nos textos da Mesopotâmia e na Bíblia: os animais subindo a rampa da arca de dois em dois, a entrada de Atrahasis e sua família na embarcação e, conforme as águas baixam, tem até a ideia de mandar aves por uma abertura no teto da arca para ver se achavam terra firme.

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Na hora de descer da arca, no entanto, há mais uma diferença importante: na história mesopotâmica, os próprios deuses ficam morrendo de medo da chuvona que causaram, e com fome porque não havia mais humanos para fazer sacrifícios de animais para eles. Por isso, ficam um bocado aliviados quando Atrahasis sai do barco e faz esse favor para eles. No texto bíblico, após o sacrifício, Deus, de forma magnânima, “inventa” o arco-íris como sinal de que não mais destruiria o mundo com água.

Memórias genuínas?

Apesar de tanta motivação teológica por trás do texto, Finkel diz que deve haver algum fato real remotamente refletido por ele. “A história do Dilúvio, na minha visão, é extremamente antiga e deriva de um dilúvio real que aconteceu muito tempo antes da invenção da escrita.”

Uma possibilidade é que seja simplesmente uma memória muito distante de alguma grande enchente causada pelos grandes rios da Mesopotâmia, o Tigre e o Eufrates, ou até da formação do Mar Negro, a Leste do Mediterrâneo.

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