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As democracias antes da Grécia

Arqueólogos e historiadores propõem uma nova teoria: a de que o conceito de regime democrático surgiu bem antes de Atenas. Civilizações do Oriente Médio, da América Central, da Europa e até da Amazônia teriam formulado sistemas mais igualitários antes e depois da ascensão das autocracias.

Por Reinaldo José Lopes
16 fev 2023, 14h10

Texto Reinaldo José Lopes | Edição Alexandre Versignassi | Ilustração Raquel Silveira | Design Luana Pillmann

Por volta do ano que, no nosso calendário, costumamos designar como 300 d.C., parece que um surpreendente movimento revolucionário tomou conta da metrópole de Teotihuacan, a 40 km da atual Cidade do México. O grande Templo da Serpente Emplumada foi profanado e saqueado; as gárgulas que o decoravam acabaram esmigalhadas. Nas Pirâmides do Sol e da Lua, que ainda hoje recebem visitas de turistas do mundo todo, os sacrifícios humanos pararam.

Em vez de bancar a construção de novas pirâmides, os consideráveis recursos de Teotihuacan passaram a ser investidos em… conjuntos habitacionais.

Os dados arqueológicos indicam que, nesse período, a maioria dos cerca de 100 mil habitantes da cidade passou a viver em grandes construções de um único andar, cada uma com um total de uma centena de moradores. Esses “condomínios” eram subdivididos em “apartamentos” que podiam abrigar uma família nuclear (pai, mãe e alguns filhos). Cada um deles tinha uma varanda própria que garantia a iluminação da casa, paredes e assoalho com acabamento de gesso e sistema de drenagem de água e resíduos. Em todos os complexos de moradias, com área média de 3.600 metros quadrados cada um, havia um pátio central, que incluía um pequeno altar de culto aos deuses da cidade e, muitas vezes, murais coloridos.

A forma de escrita que parece ter existido em Teotihuacan nessa época ainda não foi decifrada, e não sabemos ao certo nem a língua falada por seus habitantes – o nome hoje dado à cidade foi cunhado pelos astecas séculos depois que ela foi abandonada. Por causa de tudo isso, não temos como saber ao certo o que levou à destruição do Templo da Serpente Emplumada e à gigantesca “reforma habitacional” da metrópole. Mas os dados arqueológicos sugerem fortemente que algum tipo de mudança política com motivações democráticas afetou Teotihuacan naquela época.

E não se trata de algo propriamente isolado. Um novo olhar sobre a organização social e política de povos antigos, em especial os que viviam fora da esfera de influência da cultura ocidental no espaço e no tempo, sugere que instituições com “cara de democracia” são muito mais comuns do que se imaginava até pouco tempo atrás. Em diversos casos, elas podem ter surgido logo no começo da formação de sociedades complexas, e não como uma simples reação aos governos tirânicos ou hierárquicos que seriam a forma “natural” de organização dessas sociedades.

Em outras palavras, dizer que os gregos de Atenas inventaram a democracia é, no mínimo, um exagero considerável.

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O debate sobre essa reinterpretação de como teria sido o passado político profundo da humanidade esquentou nos últimos tempos com o lançamento de livros como O Despertar de Tudo, do antropólogo americano David Graeber e do arqueólogo britânico David Wengrow, e Sob os Tempos do Equinócio, do brasileiro Eduardo Góes Neves, um dos maiores especialistas na pré-história da Amazônia. Ambas as obras argumentam que a evolução das sociedades humanas foi mais complicada, e interessante – bem menos linear do que dizem os relatos mais populares sobre o tema.

Para propor esse novo relato sobre o passado da nossa espécie, Graeber e Wengrow já escolheram seu saco de pancadas preferido. Estamos falando de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, do historiador israelense Yuval Noah Harari, que já vendeu mais de 40 milhões de exemplares. Nenhum escritor atual chega aos pés de Harari quando o assunto é popularizar o que sabemos sobre a pré-história, ao menos em termos de alcance. O problema, diz a dupla, é que Sapiens e alguns de seus precursores, como os livros do biogeógrafo americano Jared Diamond, traçam um quadro simplista do nosso passado.

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Como eliminar seu chefe

Nossa espécie passou praticamente toda a sua história evolutiva seguindo um único estilo de vida, o dos caçadores-coletores móveis e igualitários. Isso significa que, até poucos milhares de anos antes do presente, os grupos de seres humanos, classificados como “bandos” na literatura antropológica, tinham no máximo algumas dezenas de membros, que vagavam por um grande território no qual obtinham seus recursos por meio da caça, da pesca e da coleta de vegetais.

Esses bandos seriam ferrenhamente xenofóbicos, entrando em conflito frequente com seus vizinhos para proteger seu território, e igualitários até a medula entre seus membros. Nem “caciques” como os de grupos indígenas da Era dos Descobrimentos existiriam: as decisões seriam tomadas de forma coletiva por todos os membros adultos do grupo. Mais importante ainda, a literatura antropológica sobre grupos similares que ainda existem hoje (como os africanos !Kung, do deserto do Kalahari) indica que esse tipo de sociedade tem mecanismos cuidadosamente pensados para derrubar qualquer candidato a chefe supremo.

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Entre esses mecanismos estão coisas como tirar sarro de caçadores muito habilidosos que queiram contar vantagem (“Quer dizer que você matou esse elefante sozinho? Nossa, mas esse era meio magrinho, né?”) ou desfazer o acampamento às pressas na calada da noite com o objetivo de deixar para trás quem andou tentando impor sua vontade ao bando. Na pior das hipóteses, existe até uma espécie de execução judicial informal. Se alguém realmente passar dos limites (matando um companheiro de grupo a sangue frio, digamos), os membros do bando combinam de eliminar o cidadão coletivamente, à la Assassinato no Expresso do Oriente: disparam suas flechas contra ele ao mesmo tempo, de maneira a diluir a culpa. (Imagina-se que isso também seja útil para diminuir as chances de que algum parente do morto queira se vingar.)

Segundo a narrativa popularizada por Harari e outros autores que o inspiraram, esse estilo de vida e, principalmente, o igualitarismo que o acompanha começou a ser condenado à morte por volta de 10 mil anos atrás. Foi nessa época que a Era do Gelo terminou e diferentes grupos de Homo sapiens espalhados pelo planeta passaram a adotar a agricultura e a criação de animais como seu modo de vida. Em retrospecto, essa teria sido uma má ideia de proporções monumentais, comparável ao momento no qual, segundo a narrativa bíblica, Adão e Eva resolveram comer o fruto proibido no Éden. “A Revolução Agrícola foi a maior fraude da história”, escreve Harari.

Ilustração do templo Teotihuacan sendo incendiado e destruído.
Em 300 d.C., os habitantes de Teotihuacan destruíram o templo da cidade e voltaram seus esforços para a construção de conjuntos habitacionais. (Raquel Silveira/Superinteressante)

Acontece que o estilo de vida agropastoril consegue prover o sustento de muito mais pessoas em dado pedaço de terra – segundo o cálculo clássico, entre dez e cem vezes mais gente por hectare do que a caça e a coleta são capazes de sustentar. Com isso, os grupos que dominam essas técnicas passam por um crescimento populacional vigoroso e conseguem se expandir para novas áreas, desalojando ou assimilando os grupos de caçadores-coletores que estiverem no caminho. Parece bom para os novos agricultores, não? Bem, é aqui que a coisa começa a ficar mais sombria.

Primeiro, a produção agrícola tende a gerar um excedente de recursos que, dadas certas condições, pode ser monopolizado por poucos membros da comunidade. Uma vez de posse do excedente agrícola, eles podem usar algo que até então não existia – um negócio chamado “riqueza” – para atrair para o seu lado capangas armados, artesãos especializados capazes de construir armas e fortalezas mais uma série de outros “profissionais” (também é a primeira vez que algo desse tipo surge no mundo).

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O resultado disso tudo teria sido o aparecimento da desigualdade social, com uma pequena elite de governantes e guerreiros arrancando o couro de uma massa desvalida de produtores de alimentos. Uma massa de gente que, aliás, passou a ter um estado geral de saúde bem pior do que o de seus ancestrais caçadores-coletores. É o que acontece quando seres humanos deixam de consumir uma dieta balanceada, composta por vegetais variados, frutas e carnes magras, e passam a comer praticamente só trigo, ou arroz, ou milho, trabalhando de sol a sol sem parar.

Tudo isso soa como tragédia, sem dúvida, mas Harari, Jared Diamond e outros autores que formataram a narrativa acima dizem que seria muito difícil organizar uma sociedade complexa primitiva de outro jeito. “Grandes populações não conseguem funcionar sem líderes que tomem as decisões, executivos que ponham as decisões em prática e burocratas que administrem as decisões e as leis”, escreve Diamond em seu livro O Mundo Até Ontem. A desigualdade e a hierarquia seriam, de certo modo, o preço do progresso.

Agricultura não é mágica

Os pesquisadores que criticam essa narrativa linear apontam que ela retrata o processo de surgimento da agricultura e da criação de animais como uma espécie de força da natureza, um processo que se desenrola de um jeito quase matematicamente inevitável. Mas não é isso o que os dados arqueológicos sugerem em muitos casos.

E o que talvez seja o exemplo mais gritante de que existiam caminhos alternativos para esse processo é bastante próximo dos brasileiros. De um lado, as últimas décadas de estudo têm revelado que a Amazônia está entre os mais antigos centros de desenvolvimento da agricultura no mundo. Indícios indiretos sugerem que a domesticação de plantas ali tem pelo menos 8.000 anos de idade, envolvendo o uso de tubérculos, como a mandioca e o cará, e frutos, como o cacau. Alguns milhares de anos mais tarde, rotas de comércio vindas da América Central trouxeram também o milho à região. Os cientistas calculam que mais de 80 espécies vegetais amazônicas foram domesticadas em algum grau.

No entanto, até onde sabemos, toda essa diversidade não se refletiu numa conversão completa e rápida dos povos da região à vida agrícola. Aquele processo descrito em Sapiens – uso cada vez mais intensivo do território, grande aumento populacional etc. – só parece decolar muito mais tarde na Amazônia, alguns séculos antes da Era Cristã no nosso calendário.

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E mesmo quando grandes aldeias e monumentos de terra batida começam a pipocar pelo território amazônico, atingindo seu ápice por volta do ano 1000 d.C., não há sinais claros de que isso esteja ligado ao surgimento de hierarquias sociais ou impérios, como no caso dos incas, nos Andes. Para Eduardo Góes Neves, isso não significa que houvesse alguma limitação intrínseca da Amazônia para o surgimento desse tipo de sociedade, ou que os indígenas da região não fossem capazes de desenvolver algo do tipo. Pode muito bem ser que eles tenham desenvolvido antídotos culturais contra governos despóticos, tal como ocorria no caso dos caçadores-coletores, mas de um jeito que funcionasse também em grupos que já tinham desenvolvido a agricultura.

Graeber e Wengrow identificam fenômenos parecidos em outros centros de origem da agricultura planeta afora, como o Oriente Médio, antes considerado o caso mais claro do “modelo Sapiens”. “A transição de uma subsistência baseada em recursos silvestres para uma vida baseada na produção de alimentos levou cerca de 3.000 anos”, escrevem eles. “E, embora a agricultura permitisse a possibilidade de concentrações de riqueza mais desiguais, na maioria dos casos isso só começou a acontecer milênios após seu surgimento.”

Para eles, algo muito parecido também parece se aplicar a algumas das mais antigas cidades da Terra. Quanto a isso, a velha história se repete. Muita gente achava impossível que aglomerações com milhares de pessoas, muitas das quais sem nenhum parentesco ou relação de amizade entre si, pudessem surgir sem algum tipo de controle governamental “de cima para baixo” que pudesse evitar pancadarias constantes.

No entanto, estudos sobre o que talvez sejam as cidades mais antigas da Europa – grandes sítios arqueológicos da atual Ucrânia, que podem ter surgido a partir de 4000 a.C. – mostram um sistema de moradias igualitárias que lembra uma versão mais rústica de Teotihuacan. São casas de madeira, palha e barro com fundações de pedra que se organizam em círculos concêntricos e que, somadas, podem ter abrigado cerca de 10 mil pessoas. Sinal de palácios? Nenhum. De templos? Também não.

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Ilustração de habitações concêntricas feitas de palha, pedra e barro.
Cidades europeias de 4000 a.C. na atual Ucrânia tinham moradias igualitárias para cerca de 10 mil pessoas. E nenhum sinal de templos ou palácios. (Raquel Silveira/Superinteressante)

As cidades invisíveis

Os autores de O Despertar de Tudo argumentam que, com base nos indícios disponíveis até agora, esses primeiros centros urbanos europeus podem ter se organizado de forma cooperativa, sem monarcas primitivos.

Aliás, um indício de que as cidades evoluíram originalmente por esse caminho pode estar presente na própria Mesopotâmia (atual Iraque), supostamente berço dos primeiros impérios da história, como a Babilônia e a Assíria. Acontece que, mesmo depois que reinos poderosos como os dos babilônios e assírios se espalharam por todo o Oriente Médio, as antigas cidades-Estado que foram incorporadas por eles mantiveram uma tradição de governo interno autônomo que remontava a tempos imemoriais.

Seguindo essa prática ancestral, os cidadãos se reuniam em conselhos para deliberar sobre problemas do cotidiano da localidade de forma relativamente democrática e realizar mutirões para obras públicas. E os governos imperiais parecem ter respeitado quase sempre essa prerrogativa. Segundo a dupla de pesquisadores, isso seria uma espécie de “fóssil” da governança original das cidades, que teria existido por muito tempo antes da origem dos governos despóticos.

A discussão sobre esses e outros detalhes da origem das sociedades complexas claramente ainda está longe de terminar – afinal, qualquer forma de reconstrução do passado, por mais cuidadosa que seja, envolve um elemento de interpretação e imaginação com base em dados fragmentados. De qualquer maneira, nunca é demais manter a mente aberta diante de novas possibilidades. Afinal de contas, a capacidade de repensar o passado é um dos melhores jeitos de imaginar o futuro.

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