Cachorros que fizeram história
Eles ajudaram a medicina a curar doenças, viraram astros milionários e foram até o espaço. Conheça os cães mais famosos de todos os tempos.
Ele esteve nas ruínas de Machu Picchu, foi à Muralha da China, navegou pelo Rio Amazonas, voou de asa-delta no Rio de Janeiro e se esbaldou nas águas da Fontana di Trevi, em Roma. Durante oito meses, em 2009, o vira-lata Oscar e sua tutora, Joanne Lefson, passaram por 42 países e visitaram mais de 60 entidades protetoras dos animais. A jornada, registrada nas redes sociais, pretendia chamar atenção para os cães abandonados mundo afora – um número que beira os 500 milhões. Oscar, aliás, era um deles. Vivia num abrigo da Cidade do Cabo, na África do Sul, quando Joanne o adotou.
Ao se tornar o cachorro mais viajado do planeta, Oscar também ganhou a fama de embaixador internacional dos cães sem-teto. Em 2013, ele faleceu ao ser atropelado por um carro, mas sua história virou livro: Ahound the World: My Travels with Oscar, inédito no Brasil. Ex-jogadora de golfe e amante da natureza, Joanne lidera projetos de defesa dos animais. Em um deles, ela levou Rupee, um labrador que revirava lixões em Ladakh, na Índia, a se aventurar no acampamento-base do Everest – localizado a 5 mil metros de altitude. A imprensa noticiou o fato como se eles tivessem escalado os quase 9 mil metros da montanha mais alta do mundo – algo improvável para um cão. Mas isso não tira o valor da luta encampada por Joanne.
Vários cachorros já se notabilizavam por suas façanhas bem antes de a internet surgir. Um deles foi Smoky. A pequena yorkshire salvou a vida de 250 soldados americanos na 2ª Guerra. Sua missão foi relativamente simples – mas só ela poderia executá-la: transportar cabos telefônicos por dentro de canos apertados para conectar grupos de militares cercados por nazistas.
Outro herói dos EUA na guerra foi Chips. Mistura de collie, pastor-alemão e husky, o cão rendeu, sozinho, quatro atiradores do exército italiano. Eles haviam criado um bunker camuflado numa praia da Sicília, na Itália. Quando surgiram do chão e começaram a atirar contra um pelotão americano, Chips se desgarrou de seu tutor e pulou para dentro do falso bunker. Levou um tiro de raspão na cabeça, mas se engalfinhou com os soldados. Chegou a atacar a garganta de um deles. Os quatro italianos saíram da guarita com as mãos para cima.
As trajetórias de Oscar, Rupee, Smoky e Chips são notáveis, mas existiram cães com biografias ainda mais impressionantes. Alguns deles estão nas páginas a seguir. São cães que entraram para a história devido à sua participação no cinema, no auxílio a descobertas da ciência ou porque deram incríveis lições de fidelidade ao ser humano.
Rin-Tin-Tin, o astro de Hollywood
Quando a corneta toca, o pastor-alemão salta de cima de um telhado e corre para se perfilar ao lado dos soldados da Cavalaria no Velho Oeste americano. A abertura de As Aventuras de Rin-TinTin pode não ser familiar aos mais jovens, mas pergunte ao seu avô. Gravada na década de 1950, a série amplificou a fama de um cão que já fazia sucesso – ou melhor, de uma dinastia de cães. A história começa na 1ª Guerra Mundial, em Paris. Sob os escombros de um canil, o cabo Lee Duncan encontrou uma cadela com cinco filhotes e levou dois deles para os EUA. Nannette morreu no navio, mas Rin-Tin-Tin resistiu à viagem.
Duncan treinou Rinty para ser atleta, mas suas habilidades chamaram a atenção da Warner Brothers, um dos maiores estúdios de Hollywood. O cão virou astro de cinema nos anos 1920. Ganhava US$ 1 mil por semana, quatro vezes mais que os atores. Duncan e ele hospedavam-se em hotéis de luxo e chegavam a receber 50 mil cartas de fãs todo mês. O primeiro Rin-TinTin morreu em 1932, com 14 anos. Mas seus filhos, netos e bisnetos – entre eles, Rinty IV, que estrelou o seriado – levaram o legado familiar adiante, com direito até a uma estrela na Calçada da Fama.
Snuppy, o primeiro clone
Em 2005, a ciência já havia clonado gatos, porcos, coelhos e até um boi selvagem indiano. Cachorros, não. Até que veio Snuppy. Apresentado ao mundo por pesquisadores da Universidade Nacional de Seul, na Coreia do Sul, o filhote de galgo-afegão foi considerado uma das inovações daquele ano pela revista Time.
Não à toa: clonar cães é uma tarefa difícil. As cadelas costumam produzir muitos óvulos que ainda não estão prontos para gerar um filhote. No caso de Snuppy, foram 1.095 embriões para conseguir apenas três gestações. E só duas vingaram. Uma delas era a de Snuppy; a outra, de NT-2, que morreu de pneumonia aos 22 dias.
A experiência, no entanto, foi um sucesso: o DNA de Snuppy era idêntico ao de seu pai, Tai. O genitor, aliás, apenas doou células da orelha para a empreitada. Já a mãe, uma labrador caramelo, serviu exclusivamente de hospedeira. Ou seja, a genética dela não influenciou o filhote. Snuppy, cujo nome não tem nada a ver com o mascote de Charlie Brown, vem das iniciais de Seoul National University Puppy – algo como Cachorrinho da Universidade de Seul.
O primeiro cão clonado da história viveu no campus da instituição até os 10 anos, quando morreu de câncer. Antes disso, cientistas haviam colhido amostras de células-tronco de Snuppy e, a partir delas, criaram três novos clones. Sim, clones do clone – os chamados reclones. Atualmente, empresas especializadas oferecem esse tipo de serviço. Uma delas é a ViaGen, localizada no Texas.
Lassie, a cadela que era Macho
A cachorrinha Lassie só existiu na literatura, na TV e no cinema. Um dos personagens caninos mais populares do mundo, ela apareceu pela primeira vez no conto Lassie Come Home (Lassie vem para casa), publicado nos EUA em 1938. A jornada da collie que teve de ser vendida por uma família empobrecida pela Grande Depressão comoveu a todos e virou livro.
Daí vieram os filmes e a série de TV – com 19 temporadas. No primeiro longa, uma menina de 11 anos estreava no cinema. Era Elizabeth Taylor, que ganhava US$ 100 por semana, enquanto Pal levava US$ 250. Pal era o cão macho que interpretava Lassie, fato que até hoje surpreende muita gente. Ele foi inicialmente rejeitado pelos diretores, pois a produção queria uma fêmea para o papel. Mas Pal os impressionou com sua capacidade de fazer malabarismos e ganhou a vaga. O cachorro atuou por cinco anos, deixando como substitutos seus descendentes – todos eles machos.
Marjorie, a cadelinha do Nobel
Em 1921, a vira-lata Marjorie (foto acima) viveu 70 dias sem o pâncreas antes de morrer. E isso ajudou a mudar a história da ciência. A retirada do órgão da cachorrinha fez parte de um experimento para isolar a insulina. Produzido no pâncreas, o hormônio ajuda a regular os níveis de açúcar no sangue. Como os portadores de diabetes tipo 1 apresentam uma deficiência dessa substância, a única saída para eles levarem uma vida normal é repor o hormônio. Hoje, a insulina injetável é sintetizada em laboratório. No passado, porém, era retirada de animais, como porcos e bois.
E o processo começou com cães. O responsável por isso foi o médico canadense Frederick Banting. Ele e seu assistente, o estudante Charles Best, realizaram uma pesquisa para averiguar o efeito da insulina injetável em cachorros diabéticos. Primeiro, os cientistas criavam essa diabetes nos peludos, inutilizando o pâncreas deles. Depois, aplicavam insulina extraída de cães saudáveis para averiguar os resultados. Marjorie foi a cobaia que mais tempo resistiu, abrindo caminho para o desenvolvimento da medicação.
A eficácia da insulina injetável em humanos foi comprovada meses depois da morte da vira-lata. O garoto Leonard Thompson, de 14 anos, diabético desde os 12, recebeu uma injeção contendo insulina retirada de um boi. Os sintomas da falta do hormônio, como fraqueza e náuseas, melhoraram em poucos dias. Em 1923, Banting e o bioquímico John Macleod ganharam o prêmio Nobel de Medicina pelo feito. Macleod entrou de gaiato, pois o seu único mérito foi coordenar o laboratório em que as pesquisas ocorreram, na Universidade de Toronto.
Banting dividiu o dinheiro do prêmio com Best e transferiu a patente da insulina à universidade por US$ 1. Já Marjorie sequer é mencionada no site oficial do Nobel. Antes dela, outros dez cães morreram durante o experimento. Ainda hoje, o episódio divide opiniões sobre ética e direitos dos animais.
Laika, a primeira Astronauta
Em 1957, o primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchev queria celebrar os 40 anos da revolução comunista com um feito impactante: enviar um cachorro à órbita da Terra para testar como um ser vivo toleraria a gravidade zero. A seleção incluiu mais de 20 cães abandonados – os de raça eram considerados incapazes de resistir a situações extremas.
Três deles se destacaram nas provas. Como Albina estava grávida e Mukhu não era fotogênica, sobrou para Laika – uma mescla de husky com vira-lata, muito esperta. O Sputnik 2 era um satélite em forma de cilindro, pouco maior do que um carro – diferente do antecessor, Sputnik 1, uma esfera com 50 cm de diâmetro.
Laika pesava 6 kg e teve de se acomodar numa cápsula do tamanho de uma máquina de lavar. Lá dentro, havia um alimentador automático que liberava ração à cachorrinha. Laika tinha sensores no corpo para medir os sinais vitais. O Sputnik 2 foi lançado em 3 de novembro. Nos dias seguintes, os jornais soviéticos trouxeram boletins sobre a missão e a saúde de Laika, que parecia passar bem. Uma semana depois, porém, sua morte foi divulgada, causando indignação mundo afora.
Nos anos 2000, integrantes do projeto revelaram que a cadela aguentou apenas cinco horas e que eles sabiam não ser possível trazê-la de volta. O barulho e o calor da cápsula fizeram o coração de Laika disparar. Ela morreu após atingir a atmosfera. Apesar de tudo, a experiência abriu caminho para que, em 1961, o soviético Yuri Gagarin se tornasse o primeiro homem a ir ao espaço.
Pickles, o salvador da Copa
Entre chuteiras e camisas usadas por estrelas como Maradona e Pelé está a coleira de um cão. A peça vermelha, de couro e com duas medalhinhas na ponta, é atração no maior museu de futebol do planeta – o National Football Museum, em Manchester, na Inglaterra. O item pertenceu ao border collie Pickles, que encontrou a Taça Jules Rimet – o troféu entregue ao vencedor da Copa do Mundo até 1970.
Em março de 1966, a taça havia sido roubada de uma exposição. Pickles a achou uma semana depois, enrolada em um jornal, quando passeava com seu dono por um parque de Londres. O Brasil ficou com a Jules Rimet em definitivo ao conquistar o tricampeonato mundial, em 1970. Hoje, porém, o País só tem uma réplica da taça. É que a original foi novamente roubada, em 1983. E aí, não houve cachorro que conseguisse encontrá-la.
O melhor amigo de Stallone
Uma das cenas mais bonitas de Rocky – Um Lutador (1976) é quando Adrien, a namorada de Rocky Balboa, dá a ele um simpático bullmastiff caramelado de 65 quilos (os cães da raça são pesadões mesmo, com média de 55 quilos). “É para te fazer companhia quando você corre”, ela diz. A sintonia entre os dois grandalhões é perfeita. Mas havia motivos para isso. Butkus já pertencia a Sylvester Stallone. Fora das telas, eles protagonizaram uma história que, se fosse filmada, levaria o público às lágrimas. É que o ator, um ilustre desconhecido no começo dos anos 1970, foi obrigado a vender o cachorro por US$ 40 ao dono de uma loja de conveniência de Nova York.
Sly estava quebrado, sem um tostão no bolso. Semanas depois, a luta entre Muhammad Ali e Chuck Wepner serviu de inspiração para ele escrever o roteiro de Rocky – Wepner, um boxeador de 37 anos, resistiu até o último round contra o campeão mundial. Bastaram 20 horas para que o texto ficasse pronto. Stallone contatou diversos produtores de Hollywood e impôs uma condição: ele estrelaria o filme. Depois de relutarem, dois executivos aceitaram pagar US$ 35 mil pela história. Agora, era hora de recuperar Butkus.
O novo dono, porém, quis lucrar alto em cima do remorso alheio. E conseguiu: o ator aceitou comprar o cão de volta por US$ 15 mil. Anos depois, quando Rocky era filmado, Stallone teve a ideia de colocá-lo em cena. O bullmastiff fez sucesso e acabou chamado para atuar também em Rocky II – A Revanche (1979). Nos créditos dos filmes, ele aparece como Butkus Stallone. Em março de 2017, o eterno Balboa se lembrou do melhor amigo em sua conta no Instagram. “Ele valeu cada centavo!”, escreveu. Butkus morreu do coração em 1981.