Com a morte sob as asas: a queda do Fokker-100 da TAM em Congonhas
Segundos após decolar, o avião foi traído pelo reversor de uma das turbinas e caiu sobre um pacato bairro paulistano.
Reportagem originalmente publicada pela Super em 2015
Luís Orsini de Castro é uma rua íngreme e tranquila no Jabaquara, bairro de classe média da zona sul paulistana. De tempos em tempos, o latido dos cachorros nos pátios das casas é abafado pelo ronco dos gigantes jatos comercias que planam por cima do bairro. O limite sul do Aeroporto de Congonhas, um dos mais movimentados do País, está a 1,5 quilômetro de distância. Há 19 anos, a rua viveu um dia de horror insólito: a queda de um Fokker-100 da companhia aérea TAM bem em cima de suas casas. O acidente matou todas as 96 pessoas a bordo e outras três em terra.
Às cinco da madrugada de 31 de outubro de 1996 – Dia das Bruxas -, um Fokker-100 da TAM decolou do Aeroporto Regional Hugo Cantergiani, em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha. Segundo algumas testemunhas na cidade, o avião fazia ruídos suspeitos logo após a decolagem. O início da viagem, contudo, foi tranquilo. Após uma breve escala em Curitiba, conforme o planejado, a aeronave seguiu para São Paulo. Durante o trajeto, um alarme indicou uma falha no autothrottle, ou acelerador automático – o mecanismo ajuda o piloto a controlar a velocidade da aeronave, mas não é essencial para o voo. Sem pestanejar, o comandante Armando Luís Barbosa desligou o mecanismo aparentemente defeituoso e seguiu viagem.
Só que o verdadeiro problema não estava no autothrottle, mas no reversor de uma das turbinas – o alarme enganador era fruto de um mau contato. Com a morte escondida sob a asa, o Fokker da TAM aterrissou em Congonhas. A próxima decolagem, no entanto, seria desastrosa.
Tragédia no Jabaquara
Enquanto o Fokker-110 voava de Curitiba para São Paulo, o médico Abu Assali acordava, tomava café e se dirigia a Congonhas – era uma das dezenas de pessoas que embarcariam naquele dia no voo para o Rio de Janeiro.
O doutor Abu, como o conheciam os pacientes, era cardiologista e tinha 45 anos. Naquela tarde, tinha uma palestra marcada no Rio. Planejava voltar a São Paulo no mesmo dia. A esposa, Sandra, e um dos seus dois filhos, Almir, então com 7 anos, o acompanharam até o aeroporto. Enquanto Abu desaparecia na sala de embarque, Samir pediu que a mãe o levasse até um local onde pudesse ver alguma aeronave decolando. A mãe cedeu – por isso, os dois ficaram no aeroporto por mais alguns minutos. Em seguida, voltaram para o automóvel. Naquele dia, Samir tinha uma consulta agendada no dentista.
A essa altura, a tripulação do Fokker fora trocada. O novo comandante, José Antônio Moreno, foi informado por seu antecessor sobre uma falha no autothrottle – ninguém tinha percebido que o verdadeiro defeito estava na turbina. Pouco após as oito da manhã, os passageiros começaram a ocupar seus assentos. O avião pôs-se em movimento. Depois de cinco minutos taxiando, um bipe duplo soou na cabine. Achando que tudo não passasse do mesmo problema no acelerador automático, Moreno continuou a decolagem.
Com as turbinas girando, o Fokker começou a correr. Já estava em alta velocidade quando um novo bipe soou. “É isso que tá fora, viu?”, disse Moreno ao copiloto, referindo-se ao autothrottle. Foi então que o verdadeiro problema do Fokker veio à tona: o defeito da aeronave estava em um dispositivo chamado reversor. Quando um avião pousa, o reversor inverte o fluxo de ar na turbina: em vez de ser disparado para trás, impelindo a aeronave, o gás é lançado para a frente, fazendo com que a velocidade do avião diminua. Naquele dia, contudo, o reversor do Fokker acionou-se em plena decolagem.
A vibração da asa, nesse momento, foi sentida por todos os passageiros e comissários a bordo. Na cabine de comando, a abertura do reversor causou um pulo no manete – a haste que acelera ou reduz a velocidade da aeronave. Sem entender o que estava acontecendo, o copiloto forçou a alavanca para frente. Mas a haste insistia em recuar sempre. Em termos automobilísticos, era como se alguém tentasse acelerar e frear um carro ao mesmo tempo.
A essa altura, era impossível frear: o avião já estava a 240 quilômetros por hora e o fim da pista se aproximava. A aeronave saiu do solo. Mas a luta entre o copiloto e o manete acabou arrebentando o cabo que liga a haste à turbina. Enquanto um motor acelerava, o outro fazia o movimento contrário. Os passageiros no lado esquerdo ouviram a redução de potência em uma das turbinas – agora era claro para todos que algo terrível estava para acontecer.
Gritos estouraram em todo o avião, que guinou para a direita, inclinando-se no espaço. Os passageiros sentados junto à janela no lado direito viram uma das asas apontar para o chão. Do outro lado, viram a asa apontar para o céu. Apenas 24 segundos após o início da decolagem, a um quilômetro e meio do ponto de partida, o avião chocou-se contra dois prédios, em sequência, e caiu sobre os telhados das casas. “Desde o início do acidente, os comissários e passageiros haviam visto, sentido e ouvido cada passo da tragédia”, escreve o pesquisador Ivan SantÁna no livro Perda Total. “Sentiram e ouviram os motores acelerando e desacelerando. Sentiram o avião girar no sentido horário. Aqueles que tiveram coragem de manter os olhos abertos viram a terra se aproximando. Provavelmente todos souberam que iriam morrer.”
Às 8 horas e 26 minutos, Sandra Assali se afastava do aeroporto, ao volante do automóvel, com o filho ao lado. “Vi pelo espelho retrovisor uma imensa bola de fogo. Na hora, achei que um posto de gasolina tinha explodido. Só mais tarde, ao chegar ao consultório do dentista, soube que era o avião em que meu marido estava”, relembra Sandra.
No Jabaquara, começou a chover fogo. A explosão deixou oito casas totalmente destruídas e causou danos em outras 12. Oito carros foram incinerados no dilúvio de chamas. Naquele instante, o pedreiro Tadao Funada trabalhava no telhado de uma residência: foi envolto pelo fogo e despencou, morrendo na queda. Em outra casa, o professor Marco Antônio Oliveira e o vendedor de autopeças Dirceu Barbosa Geraldo, amigos e sócios em um negócio de venda de papelão, carregavam o porta-malas do automóvel quando a laje da garagem despencou. Nenhum dos dois sobreviveu.
Além das 99 mortes que causou, a tragédia do Fokker teve uma importância crucial na história da aviação brasileira. “Naquela época, o Brasil não tinha um órgão de assistência para pessoas afetadas por desastres aéreos, como já existia na Europa e nos EUA”, conta Sandra. “Após o acidente, éramos 80 viúvas. Não contamos com assistência psicológica ou médica, não sabíamos a quem recorrer.” Seis meses após o acidente, surgia a Associação Brasileira de Parentes e Amigos de Vítimas de Acidentes Aéreos (Abrapava) – da qual Sandra até hoje é a presidente. De lá para cá, muita coisa mudou. Na época, familiares de vítimas tinham direito a um seguro obrigatório de R$ 14 mil – na Europa, eram 130 mil euros. Em 2009, após longa luta na justiça, a Abrapava conseguiu que o valor chegasse a R$ 41 mil. Agora, já são 53 mil. Além disso, o grupo presta assistência jurídica e psicológica a pessoas afetadas por desastres em todo o Brasil.
Prenúncios na madrugada
O caxiense Eronides Vargas Kuse sofria de insônia frequente. Naquele Dia das Bruxas, estava de pé bem antes do sol nascer. Pouco após as cinco da madrugada, ouviu o ruído do voo da TAM passando sobre sua casa, no centro de Caxias de Sul. “Ele achou que havia algo muito estranho no barulho daquele avião. Mais tarde, me disse que parecia uma serra esmerilhando uma lata”, conta Edite Ceconello, viúva de Kuse, falecido em 2010. “Eu não escutei nada porque durmo igual a uma pedra”, completa. Kuse não foi o único: na época, os jornais caxienses noticiaram que outros moradores ouviram estampidos esquisitos. A falha no reversor, por si só, não causaria esses ruídos. Questionada dias após o acidente, a TAM afirmou que aqueles relatos não passavam de “fantasia”.
A turbina fatídica
O reversor é um mecanismo em forma de guarda-chuva, cuja função é ajudar a frenagem do avião. No momento do pouso, o dispositivo se abre, desviando os gases da turbina e criando uma força de empuxo, contrária ao deslocamento. No dia da tragédia, contudo, o reversor se abriu na decolagem. Os pilotos do Fokker não haviam sido treinados para lidar com esse tipo de falha durante a decolagem.
Isso porque a fabricante do produto, a Northrop Grumman, considerava esse defeito raríssimo: para a empresa, a probabilidade desse tipo de falha era de uma em 100 bilhões. Além disso, um mau contato fez com que os alarmes da cabine apontassem um problema no autothrottle. Em 2001, a justiça americana decretou que a companhia aérea e as fabricantes do reversor e do Fokker pagassem de US$ 120 mil a US$ 1 milhão a cada família das vítimas.