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Como a Primeira Guerra mudou para sempre as relações entre povos e países

A Primeira Guerra Mundial acabou com um dos períodos de paz mais pujantes da Europa e deixou como resultados mortes, pestes e a ruína de grandes impérios

Por Ernani Fagundes e Beto Gomes
Atualizado em 9 nov 2018, 16h37 - Publicado em 9 nov 2018, 16h35

O turista que hoje pede um café no centenário La Taverne du Croissant talvez não imagine que o tradicional bistrô parisiense foi palco do assassinato do líder socialista Jean Jaurès, uma das poucas vozes que defendiam uma solução pacífica para o iminente conflito que espreitava a Europa.

Há exatos cem anos, Jaurès foi baleado duas vezes na cabeça e morreu ali mesmo, no salão do restaurante, enquanto jantava. O calendário marcava 31 de julho de 1914. Três dias depois, a Alemanha declarou guerra à França e deu início à Primeira Guerra Mundial. O autor dos disparos, tão francês quanto Jaurès, era um jovem de 29 anos chamado Raoul Villain. Anos depois, ele seria preso e justificaria seu ato, acusando o socialista de traição à pátria.

Naquele verão europeu, muita gente queria a guerra. As relações entre as grandes potências já estavam desgastadas, e o desejo de um confronto armado havia contaminado os gabinetes dos principais líderes mundiais. Nos campos e nas cidades, a apreensão da população se misturava a discursos nacionalistas, quase infantis, mas todos estavam confiantes na vitória e contagiados pela falsa ideia de que seria um conflito rápido, com poucas perdas.

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Milhões de soldados foram mobilizados em todo o continente e partiram para o front como se estivessem saindo para um fim de semana no campo. Mas não foi bem isso o que o tempo mostrou. A Primeira Guerra terminou quatro anos depois com números assombrosos. Batalhas violentas, perseguições étnicas, pestes e conflitos civis dizimaram a vida de 17 milhões de pessoas, incluindo 7 milhões de civis.

Os combates se espalharam pelo mundo e envolveram 28 países (veja os principais no quadro abaixo). Grandes impérios foram à ruína. Moderno e arcaico ao mesmo tempo, o conflito também impulsionou um fantástico salto tecnológico em termos de armamentos militares. Misturou mulas, jegues e cavalos com os primeiros tanques a entrar em combate na história. O avião, recém-criado, consagrou-se como máquina de guerra. E os submarinos, embora já tivessem sido utilizados em conflitos anteriores, receberam grandes inovações.

paises da primeira guerra
(Superinteressante/Superinteressante)

Esse imenso laboratório com experiências de todos os gêneros criou o ambiente perfeito para um conflito de grandes proporções, capaz de produzir cenas repugnantes, mas também histórias inimagináveis para um campo de batalha, como as tréguas informais que levaram inimigos a trocar presentes em plena véspera de Natal.

Ao final do confronto, o mundo já não era o mesmo. Fronteiras foram alteradas, colônias conquistaram independência, e os Estados Unidos surgiram como grande potência econômica e militar. Esses e outros fatores até hoje repercutem nas relações internacionais. O conflito entre árabes e judeus, por exemplo, aflorou depois da partilha do Império Otomano entre franceses e britânicos, em 1919. Nos Bálcãs, o desmembramento do Império Austro-Húngaro deu origem ao Reino da Sérvia, Croácia e Eslovênia, um caldeirão étnico que ficaria escondido durante décadas sob o manto do socialismo, explodindo em violentas guerras civis nos anos 1990 – foi o único conflito em solo europeu nos últimos 70 anos.

Do outro lado do mundo, Japão e China seguem disputando ilhotas estratégicas como Senkaku, de apenas 6 quilômetros quadrados. O primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, comparou a atual relação com a China com aquela que britânicos e alemães mascaravam em 1914 – mantinham relações comerciais enquanto fortaleciam suas forças armadas.

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O francês Jean Jaurès não foi a primeira vítima da guerra nem o estopim que levou alemães, austro-húngaros e turcos-otomanos, nos, também chamados de Potências Centrais, a lutarem contra as tropas da França, Grã-Bretanha e Rússia, as forças aliadas. No início de julho de 1914, milhões de europeus já vestiam fardas e aguardavam o primeiro sinal para entrar em combate. Os interesses em jogo eram os mais variados. A França ansiava pela restituição da Alsácia-Lorena, região perdida na humilhante derrota de 1870, durante a guerra franco-prussiana. A Grã-Bretanha esperava destruir uma nova ameaça a sua supremacia marítima, a frota naval alemã. Já o sultão otomano Mehmed V, além de interessado em honrar sua aliança com germânicos e austríacos, queria mandar um recado à Rússia, que estava de olho no estreito de Dardanelos.

Nesse balaio de gatos, sobrou primeiro para o mais fraco. A 3 de agosto de 1914, os alemães cruzaram a fronteira com a Bélgica e deram início aos primeiros combates da frente ocidental. Soldados eram despejados próximos dos campos de batalha por meio de uma extensa rede de ferrovias, marcando um importante avanço de logística: eles desciam dos vagões – cada homem com 30 quilos de suprimentos nas costas – e caminhavam alguns quilômetros até o front. Munições ficavam a cargo de cavalos.

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Belle Époque

A Primeira Guerra pôs fim a um dos períodos de paz mais pujantes da Europa, a Belle Époque. Nos primeiros anos do século passado, as indústrias britânica e alemã se rivalizavam em inovações tecnológicas, enquanto as cidades de Paris e Viena experimentavam uma fantástica efervescência cultural.

A pujança era bancada pela expansão de colônias em todos os continentes e se apoiava em tratados comerciais com fornecedores de matérias-primas de nações independentes, como o Brasil e a Argentina. Uma extensa rede de comunicação, que atravessava fronteiras e oceanos cada vez mais rápido, completava o cenário favorável ao desenvolvimento. Foi justamente essa globalização que acabou levando ao envolvimento do mundo inteiro no conflito.

Em maio de 1915, os italianos romperam o tratado com os impérios centrais e subiram os Alpes para lutar contra os austro-húngaros. Dois anos depois, cansados de ver seus navios mercantes afundados por submarinos alemães, os EUA entraram na refrega e turbinaram as forças aliadas – fator decisivo para o rumo das batalhas que se seguiriam.

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Em setembro e outubro de 1918, enfraquecidos pela contraofensiva aliada, austríacos e turcos se renderam. No dia 11 de novembro, foi a vez dos alemães.

“O fato de a Alemanha ter sido a derrotada foi quase fortuito, poderia ter sido qualquer um de seus inimigos. A guerra não se resolveu pela descoberta ou aplicação de uma nova técnica militar, mas pelo desgaste dos efetivos de produção industrial”, escreve John Keegan no livro Uma História da Guerra.

 

No final, sobrou pouca coisa para contar, além dos amontoados de corpos . Os impérios da Alemanha e da Áustria-Hungria haviam entrado em colapso. Falida e faminta, a Rússia fez sua revolução e acabou com a era dos czares. Enquanto juntavam os cacos, França e Grã-Bretanha perderam a hegemonia nas relações internacionais. E os EUA estabeleceram uma nova ordem econômica.

Ainda assim, o armistício de 1918 deixou muitas questões mal resolvidas. Questões que voltariam à tona 20 anos depois, quando os alemães enfrentariam o mundo novamente. Dessa vez, sob o comando de um ex-cabo da Primeira Guerra: Adolf Hitler. No fim, o mundo só voltaria a experimentar uma globalização equivalente à do período pré-Primeira Guerra quase um século depois, nos anos 1990, com o fim da URSS.

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