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Como os imigrantes importaram a educação japonesa para o Brasil

Os primeiros japoneses que imigraram para o Brasil fundaram escolas para manter o estilo de educação que tinham em seu país. E algumas existem até hoje.

Por Giselle Hirata, editado por Tiago Jokura
Atualizado em 19 out 2020, 12h49 - Publicado em 26 jun 2018, 18h28

Em 1929, a família de Sanju Waragaya embarcou em Kobe para dar meia volta ao mundo em 60 dias. A bordo do Bingo Maru, atracaram em Santos (SP) 21 anos após o primeiro navio de imigrantes japoneses, o Kasato Maru, aportar por aqui. Com mulher e seis filhos, Sanju rumou para o interior paulista.

Foi em Nova Aliança que os Waragaya começaram a vida no Brasil, na lavoura de café. Quando chegaram à cidade, já havia uma colônia nipônica, assim como uma pequena escola japonesa (nihongakko), que recebeu os filhos de Sanju. Como ex-diretor de escola em Fukushima – sim, aquela do acidente nuclear em 2011 –, ele queria que todos tivessem uma boa formação para retornar ao Japão em pouco tempo, sem ficarem atrasados nos estudos.

Essas primeiras escolas comunitárias eram bem simples: casas de pau a pique, com paredes de barro e chão batido. E, se o número de alunos fosse pequeno, as aulas aconteciam na casa de alguém mesmo. Os professores eram os imigrantes mais escolarizados e educados na cultura japonesa. Era o caso de Sanju, que lecionava para as crianças da comunidade sem abandonar o trabalho na roça.

À época, não havia material didático. Os poucos livros eram os que couberam nas malas para a viagem até o Brasil. Por isso, as aulas eram basicamente sobre o idioma e a cultura japoneses.

A construção das escolas era questão de ordem, uma vez que as comunidades japonesas ficavam longe de centros urbanos e o governo brasileiro não se responsabilizava pela educação de imigrantes. Em 1938, inclusive, Getúlio Vargas proibiu o ensino de línguas estrangeiras no País e os japoneses foram obrigados a suspender as aulas. Mas Sanju e outros professores em dezenas de colônias espalhadas do Paraná ao Pará continuaram o ensino de forma clandestina, com aulas noturnas e deslocando professores até as residências dos alunos.

No começo dos anos 1930, os Waragaya foram para Mogi das Cruzes (SP). Lá, compraram um pedaço de terra para começar um cultivo de hortaliças. Não havia colônia e os filhos de Sanju tinham que andar 15 km para estudar. Para que os netos não sofressem o mesmo, Sanju e seus filhos construíram uma escola no sítio. Em 1960, o local já atendia mais de 40 alunos (entre descendentes de Sanju e vizinhos). Um dos filhos do Sr. Waragaya, Choju, virou professor (e, futuramente, herdeiro do sítio). Seguindo a tradição da família, os filhos de Choju foram educados, ao mesmo tempo, nas escolas brasileira e japonesa, além de ingressarem na universidade.

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Séculos de ensino

Você já deve ter ouvido na escola que “enquanto você dorme, tem um japonês estudando”. O clichê é herança da importância que o Japão dá para a educação desde o século 12. Ainda no período feudal (1187-1867), as crianças já eram obrigadas a ir para a escola. E não havia distinção social: filhos de comerciantes, de lavradores, de artesãos e de samurais tinham o mesmo ensino. O alvo era dar oportunidade de ascensão social a todos. Mais tarde, a meta de ensino passou a ser preparar o povo para o trabalho industrial. A preocupação com a educação, enfim, atravessou gerações, e hoje a taxa de alfabetização nipônica chega a 99%.

Entre os séculos 19 e 20, as condições de vida pioraram, principalmente na Era Meiji, que iniciou a industrialização e transformou o Japão em uma potência. O crescimento das cidades gerou êxodo rural – e mais pobreza urbana. Para evitar isso, o governo passou a incentivar a imigração. E o Brasil era um destino amplamente divulgado pelo governo japonês.

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A CHEGADA: Os milhares de japoneses que vieram para cá de navio no início do século 19 plantaram café, milho, algodão… e escolas. (Guilherme Henrique/Superinteressante)

Em 1913, um rapaz de 18 anos se aventurou sozinho, partindo de Fukuoka rumo ao Brasil. Kizo Hirata terminou os estudos no Japão, deixou a família para trás e veio para a região de Bauru (SP) trabalhar em uma fazenda de algodão. Mudou-se para uma colônia em Gonzaga (SP) e lá formou uma família – seus cinco filhos estudaram no nihongakko da comunidade. Em 1940, a família migrou para a zona rural de Arapongas (PR) e iniciou uma plantação de café. Com a chegada de outras famílias nipônicas, fundaram a colônia Esperança. Adivinhe qual foi a primeira construção erguida depois das moradias? A escola, claro. Lá, a criançada de Kizo aprendia japonês com vizinhos e português com freiras, além de praticar atividades musicais e esportivas.

Ao terminar o primário, as crianças precisavam caminhar 11 km até a cidade para cursar o ginásio. Muitas desistiram. Para que os descendentes tivessem mais acesso à educação, os Hirata partiram do Paraná para o interior paulista em 1979. A família se instalou em Biritiba Mirim, começou um negócio de produtos agrícolas e, claro, se juntou à colônia japonesa local. Os netos de Kizo ingressaram na escola comunitária (fundada nos anos 1970), assim como todos os seus descendentes até hoje.

Entre os muros da escola

Sanju Waragaya, que abre esta reportagem, e Kizo Hirata são meus bisavôs. O legado de educação que eles construíram se estendeu a mim, à minha irmã, aos meus primos. Comecei o nihongakko com 5 anos e ia às aulas diariamente. Ao longo de minha vida escolar, me dividi entre o ensino da escola pública e o da escola japonesa – de 7h a 12h40 no ensino “brasileiro” e de 14h a 16h no nihongakko.

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No caminho entre as duas, pegava uma marmita (bentô) que minha mãe deixava na banca de jornal do meu pai. Comia bolinho de arroz (oniguiri), omelete em tiras (tamagô) e tirinhas de frango empanado (karaguê) antes das aulas da tarde começarem. Aprendi a ler e a escrever os ideogramas japoneses, mas as atividades artísticas e culturais foram as que mais me marcaram, talvez por me aproximar da origem de meus ancestrais.

As aulas de origami eram terapêuticas e desafiadoras. O mesmo posso dizer sobre a prática da caligrafia (shuji) com pincel e tinta preta em papel japonês (washi) – treinava por horas com meu avô para escrever sem rasgar o papel. Aprendíamos matemática com o ábaco (soroban) e percussão tocando tambor (taikô). E ainda tinha uma hora semanal de TV, com animações como Totoro e Chihiro, além de humorísticos japoneses.

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Nihongakko: algumas atividades das escolas japonesas. (Guilherme Henrique/Superinteressante)

Havia também os eventos anuais que mobilizavam não só a escola como toda a comunidade. Desses, o undokai – uma gincana para as famílias, com competições durante todo o dia – era um dos mais esperados. Além das corridas, tinha disputa de bola ao cesto (tamaire) e cabo de guerra (tsuna hiki). Nos intervalos, a atração era o bon-odori, ritual de dança apresentado pelos alunos com a participação das avós (batchans). Lembro também da ginástica de rádio (radio taiso), uma gravação que narra exercícios para serem realizados em sincronia por todos no início do undokai.

Em setembro sempre tem o keirokai, uma festividade em homenagem aos avôs (ditchans) e avós da comunidade. É um dia de comilança e de apresentações artísticas. Na minha época, durante os anos 1990, ensaiávamos por vários meses o teatro musical, o coral, as danças… Era ocasião, também, para expormos desenhos e caligrafias. O mais legal era a possibilidade de receber um prêmio das mãos do ditchan caso meu trabalho fosse contemplado.

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FESTAS: Competições esportivas e festivais artísticos anuais divertem e perpetuam a cultura e as tradições japonesas entre os descendentes. (Guilherme Henrique/Superinteressante)

Disciplina old school

Como estudei em uma escola de colônia bem tradicional, a agenda era cheia. Além das aulas regulares, também tinha o atletismo (rikujou) nas manhãs de sábado e domingo, e o karaokê sábado à noite. Fora as competições entre colônias, também aos fins de semana. Como a gente dava conta? Com empenho e disciplina – valores caros à cultura japonesa, assim como a ética, o respeito e a obediência.

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A autodisciplina está tão enraizada na educação japonesa quanto o sentimento de débito com os pais. Assim como os ancestrais que chegaram ao Brasil se esforçaram para construir escolas, os descendentes lutam para dar a melhor educação aos filhos. Por isso, as crianças são ensinadas a encarar o cumprimento das obrigações como forma de retribuição. Daí vem a dedicação (ou pressão) para tirar boas notas, ingressar em boas universidades e obter sucesso profissional.

Na escola, além do respeito e da pontualidade, os alunos devem manter a ordem dos materiais pessoais e de uso comum. Também é de responsabilidade deles preservar o espaço de estudo, com limpezas diárias (osouji) após o fim das aulas. Na minha escola, nos dividíamos em grupos e cada equipe tinha tarefas semanais: varrer a sala, limpar as mesas, cuidar do jardim e lavar os banheiros – no fim do ano ainda fazíamos uma faxina geral.

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DISCIPLINA: A limpeza diária da classe era rotina – em raros momentos, porém, rolavam castigos físicos. (Guilherme Henrique/Superinteressante)

Mas a disciplina não era sempre, digamos, tão espontânea… Às vezes rolavam punições físicas – o que hoje já não ocorre mais. No Japão, aliás, elas foram proibidas após a 2a Guerra Mundial, mas alguns castigos leves ainda acontecem por lá de forma velada. Para alguns professores mais velhos que tínhamos, punir fisicamente certas negligências seria uma maneira de “fortalecer o espírito” ou “formar caráter”. Práticas como segurar um balde de água com os braços esticados, ficar em pé fora da sala de aula ou tomar um cascudo na cabeça (genkotsu) já chegaram a acontecer comigo e alguns colegas – ainda que fosse raro.

Atualmente, as escolas japonesas têm perdido força – embora resistam em algumas cidades do interior paulista que ainda abrigam colônias e associações de moradores japoneses. É o caso da minha escola, em Biritiba Mirim, que mantém mais de 40 alunos – eram quase cem alunos nos anos 1990. De lá para cá, muita coisa mudou.

Felipe Hijioka, 11 anos, conta que as aulas acontecem duas vezes por semana, com duração de uma hora – e a ênfase é o ensino de língua japonesa. “Na minha sala tem crianças e adolescentes, estudando o mesmo nível. Tem até ‘brasileiros’ estudando”, explica, referindo-se a colegas não descendentes de japoneses, o que não existia quando eu estudava. Caio Yoshida, 16 anos, também estuda no nihongakko em Biritiba Mirim e cita tradições que foram mantidas: “Participamos anualmente do keirokai e ensaiamos algumas apresentações. Até tem aula de caligrafia de vez em quando, mas o foco é estudar a gramática, a leitura e a pronúncia do idioma japonês”. As faxinas depois das aulas foram mantidas, assim como o origami.

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Desde que saí do nihongakko, aos 15 anos, me afastei da colônia – só mantive contato pelas redes sociais com antigos amigos. Depois de relembrar minha história e pesquisar sobre as origens da tradição escolar japonesa para escrever esta reportagem, deu vontade de voltar. Já recebi convites do meu pai, do meu tio Antônio (que me contou a saga do meu bisavô Sanju) e de minha tia-avó Paulina (que me falou sobre o biso Kizo) para participar de eventos da comunidade. Boa ideia. Seria uma forma de celebrar – e retribuir – a educação que tive.

Fontes: Leiko Matsubara Morales, Junko Ota e Lica Hashimoto, do departamento de Letras Orientais da USP; Literacy and Language Classes in Community Centers, da UNESCO; Bunkyo de São Paulo; Fundação Japão; Livros Resistência & Integração – 100 anos de Imigração Japonesa no Brasil, do IBGE e Educação e Cultura: Brasil e Japão, de Tizuko Morchida Kishimoto e Zeila de Brito Fabri Demartini

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