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Congo: o coração das trevas

Conheça a história de violência extrema que levou Moïse Kabagambe, assassinado por espancamento no Rio, a fugir do seu país na África.

Por Alexandre Carvalho
Atualizado em 3 fev 2022, 19h51 - Publicado em 3 fev 2022, 18h12

Hemorragia nos pulmões, broncoaspiração de sangue, traumatismo no tórax. Essa combinação fatal foi resultado de golpes com taco de beisebol e socos que tiraram a vida do congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos. Ele foi espancado até a morte por um grupo de homens, num quiosque da Barra da Tijuca, quando foi reclamar por não ter recebido o pagamento referente a alguns dias de trabalho. Um assassinato covarde que repercutiu no país inteiro, mas que é menos raro do que se imagina. Ao cobrar explicações das autoridades brasileiras, a embaixada do Congo informou que, neste momento, ainda aguarda os resultados das investigações policiais relacionadas a outros quatro casos de congoleses brutalmente assassinados no Brasil. Dependendo da identidade dos assassinos, os diplomatas talvez nunca tenham essas explicações.

Moïse era um refugiado político. Chegou ao Rio de Janeiro ainda adolescente, fugindo do Congo. Dos 57 mil refugiados reconhecidos no Brasil, 1.050 são congoleses, o terceiro maior grupo entre os que procuram nosso país para se proteger de questões graves em sua terra natal – só a Venezuela (46.412) e a Síria (3.594) têm mais refugiados aqui. E olha que o Brasil nem é a primeira escolha desses africanos: a maioria dos que deixam o país procura abrigo em vizinhos do próprio continente. Só no começo de 2020, 400 mil congoleses fugiram para Uganda.

Mas por que tantos homens, mulheres e crianças deixam seus lares no Congo em troca da incerteza de recomeçar a vida no exterior – geralmente numa situação de extrema precariedade? A resposta passa por paz e alimento.

História marcada pelo terror

Poucas nações no mundo se igualam à República Democrática do Congo em riquezas naturais. O país é uma potência em minerais como cobalto e coltan, elementos essenciais para a fabricação de produtos de alta tecnologia, como smartphones e carros elétricos. Só que a instabilidade política que vigora entre os congoleses desde sempre impediu que essa abundância se convertesse em bem-estar social.

A história dessa nação africana é toda ela de violência, golpes de Estado e conflitos armados internos. A colonização belga durou de 1885 até 1960, num regime de exploração da borracha que só servia para enriquecer a monarquia da Bélgica, mantendo os congoleses sem direitos ou lideranças políticas. Mal a independência veio, e o primeiro-ministro foi deposto e executado pelo comandante do Exército, Mobutu Sese Seko, que se tornaria um ditador, governando de 1965 a 1997. Ah, nesse meio-tempo, em 1971, ele até mudou o nome do país, como demonstração de poder: o Congo virou Zaire. O que não mudou foram as condições de vida da população.

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As décadas de governo de Mobutu foram marcadas por violação aos direitos humanos e pela corrupção sistêmica – uma cleptocracia que tornou o ditador um dos homens mais ricos da África ao mesmo tempo em que manteve o povo na miséria. A ajuda internacional que o país recebia para auxílio aos pobres era toda embolsada por Mobutu e seus aliados.

Finalmente, nos anos 1990, seu domínio enfraqueceu. Em 1997, opositores locais se juntaram a forças armadas de Uganda e Ruanda para depor o ditador – que morreria no exílio, de câncer, nesse mesmo ano.

O revolucionário Laurent-Désiré Kabila assumiu o poder, e sua primeira providência foi recuperar o nome do país: o Zaire voltou a ser Congo. Mas o “Estado-violência” não mudou. O primeiro problema de Kabila foi livrar-se daqueles que o apoiaram. Afinal, Uganda e Ruanda não tinham ajudado a derrubar Mobutu por nada. Havia interesse nas riquezas minerais do Congo.

Quando Kabila exigiu a retirada das tropas desses países, Ruanda partiu para a guerra contra o Congo, tendo ao lado tropas de Uganda, Burundi e milícias locais. Com os congoleses, lutaram Angola, Zimbábue e Namíbia. Um conflito generalizado, mas em território congolês. E foi feio…

O conflito duraria cinco anos e seria comparado à Segunda Guerra Mundial, tamanhos foram os estragos e o número de mortos. Cerca de 3,8 milhões de africanos perderam a vida, muitos por inanição e doenças, já que os combates impediam que comida e remédios chegassem à população. O povo se deslocava de lá para cá no país, fugindo das áreas mais perigosas, e a anarquia reinou em grande parte do Congo. A barbárie, enfim.

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Capital mundial do estupro

Graças à intervenção da comunidade internacional, a guerra teve um fim oficial em 2003, com a retirada das tropas de Uganda e Ruanda, e o desarmamento das milícias. Parecia que ia ficar tudo bem, mas foi aí que começou a Guerra do Kivu, que opôs os congoleses ao grupo de supremacia étnica Hutu Power. Com fases distintas de selvageria, esse conflito dura até hoje, o que exige um empenho constante das forças de manutenção da paz da ONU na região. Isso ajuda, mas não resolve. Crianças ainda são recrutadas por grupos armados, virando soldados-mirins. Mulheres e meninas são violentadas rotineiramente, e muitas são sequestradas para se tornar escravas sexuais. 

Em 2012, as próprias Forças Armadas do Congo perpetraram estupros sistemáticos na cidade de Minova durante três dias inteiros. Mais de mil vítimas foram identificadas só nesse ataque. Um episódio tão abominável que gerou repercussão internacional, e um julgamento foi realizado, mas não deu em nada: o governo congolês interveio para que nenhum oficial fosse condenado. Resultado: os ataques sexuais continuaram. Minova ganhou a reputação de “capital mundial do estupro”. 

Para se ter uma ideia de como a violência está longe de terminar no país africano, agora mesmo, dia 2 de fevereiro, milicianos invadiram um acampamento feito para abrigar famílias deslocadas pelos conflitos, no leste do Congo, e mataram 60 pessoas – muitas delas mulheres e crianças – com tiros e golpes de faca.

Foi dessa bestialidade absurda e infindável que o congolês Moïse Kabagambe fugiu com sua família em 2011, quando chegou ao Rio de Janeiro em busca de paz e trabalho. Aqui, encontrou pobreza, subemprego, racismo, falta de apoio do Estado, mas algum alívio diante dos riscos de se permanecer no Congo. Um alívio que morreu com ele, a golpes de taco de beisebol.

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