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Democracia medieval

Em uma sociedade altamente estratificada, ainda assim havia espaço para eleições.

Por Fábio Marton
Atualizado em 7 Maio 2020, 17h57 - Publicado em 15 mar 2020, 12h30

Era 10 de julho de 1215 quando o rei João – tão infame que seria o único rei João da Inglaterra – e sua comitiva atravessaram o riacho para chegar a uma pequena ilha em Runnymede, um alagadiço agrícola à beira do Tâmisa. Em vista deles, estava o Castelo de Windsor, pronto a disparar caso algo desse errado, mas também as fortificações inimigas, em Staines. Diante deles, 25 cavaleiros – barões – prontos para a guerra. Traziam uma lista de exigências. Ambos os lados tinham seus exércitos acampados nas margens do rio. Depois de cinco dias de negociações, os barões conseguiram o que queriam: o selo real numa lista manuscrita com obrigações: a Magna Carta. Sob ameaça militar, o monarca havia aceitado uma humilhação: pela primeira vez, um rei europeu admitia que não podia fazer o que quisesse, estava abaixo das leis, e os indivíduos – todos os homens livres, não só os barões – tinham direitos inalienáveis.

A Magna Carta britânica está longe de ser uma Constituição democrática moderna, e foi imediatamente ignorada. João e os barões entrariam em guerra civil no mesmo ano. Mas é um exemplo de como a descentralização feudal exigia algum consenso. Ao menos daqueles que tinham armas: sob o feudalismo, cada senhor feudal tinha seu próprio exército. As forças eram unidas sob a bandeira do rei quando havia uma ameaça externa. O exército do próprio rei era apenas mais um.

Isso levava a coisas como as cortes espanholas. Em 1188, as Cortes de Leão se tornaram, pela definição da Unesco, o primeiro Parlamento moderno europeu. Diante de uma emergência militar, o rei pediu que as cidades mandassem seus representantes – plebeus livres.

A voz do povo

No caso mais extremo, essa divisão feudal levou a uma grande monarquia eletiva: o Sacro Império Romano (geralmente grafado como Romano-Germânico, mas isso não estava no nome oficial). Num vasto território entre a Alemanha e o norte da Itália, o imperador não passava o título aos filhos, mas era escolhido por “príncipes-eleitores”, grupo formado por três arcebispos e quatro nobres. (A Igreja Católica também era uma monarquia eletiva, mas isso deriva de papas não terem filhos.)

Países nórdicos tinham uma tradição democrática na thing, uma grande reunião de chefes de clãs e homens livres diante do rei. Não havia um poder formal nesses parlamentos, e o clima geral era mais de festa, com banquete e bebedeira, que o de um congresso. Mas problemas podiam ser trazidos à discussão pública e um rei que discordasse frontalmente de seus súditos poderia ter problemas. A Althing da Islândia, fundada em 930, é considerada o Parlamento mais antigo do mundo.

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Efeitos de Um Bom Governo na Cidade, 1338, adornando o palácio público da República de Siena. (Divulgação/Reprodução)

Havia ainda as repúblicas. Elas se formavam também num vácuo feudal. Não eram democracias no sentido moderno, e frequentemente descambavam em ditaduras eleitorais: seus líderes eram muitas vezes vitalícios, como se fossem reis. Ainda que tivessem que ser cuidadosos em suas maquinações políticas, podiam atingir o poder absoluto. Veneza, de longe, a mais poderosa de todas elas, formou um pequeno império naval. Conseguindo sua independência do Império Romano do Oriente em 697, inicialmente contava com uma tribuna com todos os homens livres. Gradualmente, como em vários outros casos, terminou como uma oligarquia de nobres e comerciantes ricos.

Repúblicas podiam nascer de forma democrática: uma comuna medieval era uma localização que decidia se fortificar por conta e criar uma força armada. A partir daí, buscava autorização dos reis para ser reconhecida como uma cidade-estado autônoma, sem domínio de nenhum nobre, se formalmente vassala do rei e com obrigação de colaborar militarmente. Mas esse “comunismo” custava muito dinheiro, e as comunas tinham que ser ricas. Genova e Florença começaram como comunas e se tornaram potências comerciais.

O ponto mais democrático da vida medieval não ficava no governo, mas nas guildas. Corporações de ofício, que exigiam o registro formal para trabalhar, elegiam suas lideranças e davam toda uma rede de proteção que hoje é relacionada ao Estado, como atendimento médico, moradia, pensões para viúvas. Em várias cidades livres, elas davam as cartas, e o voto era feito por meio delas. A Liga Hanseática foi uma grande organização de guildas que frequentemente é comparada a um Estado, pela forma como dominava as cidades em seu território.

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