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Eldorado de barro

A Amazônia foi o berço de culturas avançadas. Hoje, o que resta desses povos é uma cerâmica sem igual.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h13 - Publicado em 31 mar 1999, 22h00

Claudio Angelo

A Amazônia hoje é um deserto verde – mas já foi o lugar mais desenvolvido do Brasil. Na época de sua descoberta pelos europeus, no meio do século XVI, ela pode ter chegado a reunir 7 milhões de habitantes – o equivalente à população atual dos Estados do Pará e do Amazonas. O navegador português Bento da Costa, um dos primeiros brancos a percorrer o Rio Amazonas de ponta a ponta, escreveu em 1637 que “se do ar deixassem cair uma agulha, há de dar em cabeça de índio e não no solo”. Descobertas arqueológicas dos últimos quinze anos mostram que a Floresta Amazônica era ocupada por tribos muito mais avançadas que os indígenas atuais. Elas comerciavam a grandes distâncias e construíam aldeias que se estendiam por quilômetros.

Duas nações sobressaíram: a marajoara, na Ilha de Marajó, e a tapajônica, na região da atual cidade de Santarém. Quase nada sobrou desses povos, que começaram a se desenvolver mais de 1 000 anos antes do desembarque de Cabral. O vandalismo dos conquistadores e a umidade da selva apagaram quase todos os vestígios de sua existência. Só ficou a cerâmica, reveladora de uma cultura de alto grau de refinamento estético.

Uma superpotência no meio da selva

Em 1662, o explorador português Maurício Heriarte descreveu uma aldeia na foz do Rio Tapajós, perto da atual cidade de Santarém, no Pará, como “a maior povoação que conhecemos até agora”. O cronista ficou assombrado com o poderio dos tapajós, que, por serem numerosos, “são temidos dos mais índios e assim se têm feito soberanos”.

Mesmo depois dos primeiros contatos com os europeus, ainda eram uma das maiores nações indígenas da Amazônia (veja o mapa à esquerda). Objetos de cerâmica em estilo Santarém achados em lugares distantes entre si indicam que havia um contato intenso entre os tapajós e as tribos vizinhas, seja pelo comércio, seja pela dominação direta. “É possível que houvesse um poder central exercido por um chefe tapajó, reunindo tribos vizinhas – inclusive de etnias e línguas diferentes”, sugere o arqueólogo Eduardo Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo(MAE-USP). Esse modelo de chefia é o que os antropólogos chamam de “cacicado”.

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Grande império

Até ser aniquilada pelos conquistadores europeus, a cultura tapajônica exerceu sua influência em uma extensão de 600 quilômetros ao longo dos rios Tapajós e Amazonas. Sua cerâmica foi encontrada em uma área maior que a da Bélgica.

Vasilhas que contam histórias

A cerâmica oferece aos arqueólogos pistas sobre o dia-a-dia dos tapajós.

Santo urubu

O urubu-rei, uma das maiores aves da Amazônia, era sagrado para os tapajós. Aparece com freqüência na cerâmica deles.

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Pajés doidões

Essas figurinhas que sustentam o vaso, chamadas cariátides, podem representar sacerdotes sob o efeito de alucinógenos. Repare nos olhos.

Graça e resistência

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A cerâmica é feita com argila e cauixi, uma esponja de rio. A mistura fica dura e leve, como porcelana chinesa.

Toque de mestre

Os apliques dos vasos, como esta anta, eram modelados a mão, um a um, por artesãos especializados.

Guerreiros temidos, artistas talentosos

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Os tapajós viviam em guerra com outras tribos. Eles lançavam contra os inimigos flechas com a ponta embebida em curare, um veneno tirado de um cipó que mata em menos de 24 horas. Algumas aldeias eram tão populosas que seus caciques mobilizavam até 60 000 homens para uma batalha. As mulheres também tomavam parte nos combates, o que pode ter alimentado a lenda das amazonas na imaginação fértil dos primeiros exploradores.

Mas foi pela arte, e não pela guerra, que os tapajós ficaram famosos. Suas cerâmicas decoradas, leves e resistentes, atiçaram a cobiça de colecionadores do mundo inteiro. Essas peças são praticamente os únicos vestígios que restam daquele povo. “Elas são tão elaboradas que deve ter havido entre os tapajós uma classe especializada em produzir cerâmica”, disse à SUPER a historiadora Denise Cavalcante Gomes, do MAE-USP, uma das poucas especialistas em arte Santarém em atividade no Brasil.

Os recipientes de formas exuberantes eram provavelmente usados em ocasiões especiais, como festas e rituais religiosos. Sabe-se que os tapajós misturavam as cinzas de seus mortos a bebidas fermentadas feitas com milho ou arroz-bravo, uma planta nativa da Amazônia. Nesse caso, alguns dos vasos seriam usados para, literalmente, beber os entes queridos. Outros seriam de uso exclusivo dos sacerdotes, para a ingestão de bebidas alucinógenas, como a ayahuasca. “É possível que algumas figuras representem visões induzidas por esses alucinógenos, como animais sagrados que os xamãs viam durante o transe”, afirma Eduardo Neves.

Pedrinhas milagrosas

O muiraquitã (foto), pedra verde esculpida em forma de sapo, era usado pelas mulheres tapajós como amuleto para prevenir doenças e evitar a infertilidade. A crença se espalhou pelo Baixo Amazonas e chegou ao Caribe, onde foram achados muiraquitãs amazônicos. “Devem ter sido um objeto de troca entre as elites”, diz o arqueólogo Marcondes Lima da Costa, da Universidade Federal do Pará. A moda pegou até na Europa: no século XVIII, muiraquitãs eram levados para o Velho Continente. Acreditava-se que evitavam epilepsia e cálculos renais. Hoje são peças raras, que alcançam altos preços nos leilões.

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Uma ilha de tesouros, deuses e mistérios

A arqueóloga americana Anna Roosevelt, maior especialista mundial em pré-história amazônica, incluiu entre as grandes civilizações do mundo antigo os marajoaras, que habitaram a Ilha de Marajó entre os anos 400 e 1300 da Era Cristã. As escavações feitas por ela indicam que a sociedade marajoara tinha quase tudo o que caracteriza as grandes civilizações. Havia classes sociais. A agricultura, com base na mandioca e no arroz-bravo, era desenvolvida, o que favoreceu a vida sedentária. E as aldeias eram populosas. Algumas chegavam a 10 000 moradores – verdadeiras cidades, tão grandes quanto muitas das que há hoje na Amazônia.

Os marajoaras podiam não construir pirâmides, como os maias do México e da América Central, mas suas proezas de engenharia iam muito além das malocas indígenas que os portugueses encontraram no litoral. Marajó está coalhada de tesos, aterros enormes sobre os quais as aldeias eram erguidas (veja o desenho na página ao lado). Sua função primordial era proteger os moradores contra a água, já que a ilha fica alagada durante metade do ano. Mas, com o passar do tempo, é possível que os tesos tenham virado símbolos do poder dos caciques. “Construir um aterro mobilizava muita gente”, assinala Eduardo Neves, da USP. “Sem uma chefia forte, isso não seria possível.”

Essa grandeza se traduzia também na requintada cerâmica cerimonial (veja o quadro ao lado). O desenho mais comum é o da serpente, representada por espirais. “Acredito que esse animal seja o ser mais poderoso da cosmologia marajoara”, disse à SUPER a arqueóloga Denise Pahl Schaan, do Museu Paraense Emílio Goeldi. Segundo ela, as espirais estão associadas às visões dos xamãs durante transes induzidos por alucinógenos. As peças mais curiosas dessa arte sacra são as urnas funerárias, nas quais eram enterrados os figurões da tribo. Em algumas havia crânios deformados propositalmente, por meio de faixas amarradas à cabeça desde o nascimento. A prática indicava status e era comum nas culturas andinas.

Os marajoaras sumiram misteriosamente por volta de 1300, por causa de brigas internas ou do ataque de outros povos. Quando os portugueses chegaram, Marajó era habitada por índios aruaques. Seus antecessores, até onde se sabe, não deixaram descendentes.

O povo das águas

Os marajoaras construíram suas aldeias em uma área de 20 000 quilômetros quadrados da Ilha de Marajó.

No mapa ao lado, você vê a localização dos principais sítios arqueológicos desse povo.

Veneza equatorial

As aldeias marajoaras provavelmente eram constituídas por vários tesos – elevações artificiais como a da ilustração acima. Eles podiam ter até 12 metros de altura e 200 de comprimento. Os maiores eram capazes abrigar até 1 000 pessoas. Na época das cheias na Ilha de Marajó, a única maneira de ir de um teso a outro era de canoa

Hieroglifos na selva?

Arqueóloga identifica os símbolos marajoaras.

Há três anos, a arqueóloga gaúcha Denise Pahl Schaan se lançou ao desafio de entender os grafismos da cerâmica marajoara. Maravilhada, descobriu que havia uma série de símbolos que se combinavam e se repetiam em uma ordem lógica. Conseguiu identificar 52 signos estilizados, como animais e partes do corpo humano. “É uma linguagem que pode ser estudada e entendida a partir de sua lógica interna”, disse à SUPER.

Segundo a pesquisadora, as narrativas gravadas na cerâmica se referem à mitologia marajoara, marcada por animais como o lagarto, o escorpião e a jararaca, uma cobra venenosa. A descoberta não significa que os marajoaras tenham chegado perto da escrita. “Se teriam evoluído para ideogramas ou hieroglifos é algo que nunca saberemos”, explica Denise.

Decompondo o escorpião

1. Uma representação realista.

2. O animal é estilizado.

3. Uma estilização mais aprimorada deixa somente a estrutura do desenho.

4. Sobra uma parte mínima da figura, que será identificada como um escorpião onde quer que apareça. Como neste caco de cerâmica.

Cerâmica para vestir

Mais de 1 000 anos antes do biquíni, as mulheres marajoaras já usavam tanguinhas pra lá de sensuais (foto). Feitas de barro, elas eram pintadas de vermelho ou decoradas com padrões típicos. Os cordões que as prendiam passavam por três furos (veja o desenho acima), na parte da frente. A maioria dos especialistas acredita que tenham sido roupas de festa, exclusivas da elite. Mas a arqueóloga Denise Schaan desconfia que podiam ser parte do guarda-roupa diário. “Algumas têm os furos gastos, indicando uso freqüente”, diz ela.

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