Ele está acima de nós?
Teorias sobre a existência ou a ausência de Deus existem aos montes e suscitam uma pergunta que precisa ser respondida primeiro: dá para levar alguma delas a sério?
Texto Reinaldo José Lopes
Quanto aos deuses, não tenho meios de saber se eles existem ou não, ou que aparência eles têm. Muitas coisas limitam o meu conhecimento, como a obscuridade do assunto, a brevidade da vida humana e o fato de que eles nunca aparecem.” A frase é do filósofo grego Protágoras de Abdera, que viveu há cerca de 2,5 mil anos, e virou uma espécie de advertência-padrão para os que tentam buscar indícios palpáveis do sobrenatural.
Não que isso tenha impedido as pes-soas de tentar ao longo dos séculos, claro. Argumentos favoráveis e contrários à existência de Deus podem ser encontrados aos montes, por todo lado – alguns baseados em puro raciocínio filosófico, outros escorados (ou supostamente escorados) em conhecimentos científicos. Fica a pergunta: será que realmente dá para levar algum deles a sério?
Como em quase tudo na vida, a resposta é “depende”. Depende, para começar, do tipo de Deus que se tem em mente. Como você está lendo esta revista em português, publicada no maior país católico do mundo, é inevitável que a nossa discussão se concentre em torno do Deus das grandes religiões monoteístas – cristianismo, judaísmo e islamismo. Independentemente dos detalhes dessas 3 crenças (e das variantes internas delas), esse Deus tem algumas coisas em comum. Ele é visto por todos os monoteístas como um ser supremamente poderoso, sábio e bondoso, responsável pela origem do Universo e de tudo que existe nele.
A maioria dos crentes também professa que essa deidade tem um interesse especial pelos seres humanos, sendo capaz de julgar suas ações para o bem e para o mal, de perdoar os pecados e de intervir no mundo. Os argumentos usados no Ocidente para discutir a existência ou a ausência de Deus sempre acabam levando esse perfil específico do divino em conta, embora outras maneiras de encarar a divindade sejam possíveis.
Pistas cósmicas
Com os conhecimentos científicos que temos neste começo do século 21, ninguém é capaz de contrariar seriamente a ideia de que processos naturais, agindo ao longo de bilhões de anos, deram origem ao Universo, ao sistema solar, à Terra e à vida que existe nela. Não há provas de que Deus tenha interferido diretamente em nenhuma dessas etapas. O buraco, no entanto, é mais embaixo. De onde vieram as leis que regem o Universo? E por que elas são do jeito que são?
O problema não é apenas a mera ordem do Cosmos. Todos os aspectos mais fundamentais do Universo – como a intensidade da força da gravidade, o tipo de interação que existe entre as partículas no núcleo dos átomos, e assim por diante – parecem ter sido minuciosamente “projetados” para tornar possíveis a química complexa e a vida.
Variações muito pequenas nesses parâmetros – da ordem de 2% ou menos, digamos – seriam suficientes para criar um Universo monótono, incapaz de evoluir e produzir seres vivos. Se uma variação dessa ordem ocorresse na força nuclear forte, que ajuda a “construir” e estabilizar os prótons e os nêutrons dos átomos, as estrelas seriam incapazes de produzir os elementos químicos essenciais à vida, como carbono e ferro.
A coincidência da “regulagem” de todos esses fatores cósmicos sugere, para alguns, uma inteligência que teria programado o Universo, de modo a que ele se tornasse campo fértil para a vida. Tais parâmetros só poderiam ter sido estabelecidos antes do nascimento do Cosmos, argumentam os defensores dessa tese. E esse seria mais um indício da existência de uma “mente primordial”. Em outras palavras: uma força que existe fora do Universo, mas é capaz de agir sobre ele. Esse conceito se parece um bocado com a definição tradicional de Deus.
Alguns críticos das ideias acima rebatem com um bom argumento: ok, não conseguimos conceber a existência de vida como a nossa em universos com parâmetros cósmicos diferentes; mas isso não significa que seres vivos de outra natureza não poderiam surgir se as leis básicas do Cosmos variassem. Um desses críticos é o físico americano Victor Stenger, autor de God – The Failed Hypothesis (“Deus – A Hipótese Fracassada”, inédito no Brasil). Para Stenger, é a falta de imaginação da nossa parte, e não a suposta “regulagem divina”, que nos leva a postular a existência de Deus.
Outros pensadores, principalmente físicos teóricos, tentam imaginar maneiras de explicar a sintonia fina do Universo sem apelar para uma intervenção divina. Uma ideia bastante popular é a do Multiverso – ou seja, a existência de múltiplos universos, ou de subdivisões do Cosmos tão distantes umas das outras que, na prática, estariam isoladas. Cada fatia do Multiverso, segundo essa tese, está exposta a infinitas variações das leis da natureza (algumas totalmente inóspitas para os seres vivos, outras ainda mais amigáveis que as nossas). Nós simplesmente fomos sortudos o suficiente para vir à existência num pedaço do Multiverso que permite o surgimento de seres vivos. Seria por isso – só por isso – que existimos e somos o que somos.
Seleção natural
Há pessoas, no entanto, que consideram essa proposta uma espécie de “truque sujo”, em parte porque ela não explica como cada fatia do Multiverso desenvolveu as características que tem hoje. O físico canadense Lee Smolin tentou achar uma saída para isso na ideia de seleção natural – curiosamente, o mesmo conceito que derrubou a impressão de que Deus tinha interferido diretamente no passado para criar os seres vivos.
O centro da hipótese de Smolin são os buracos negros, misteriosos astros resultantes da “morte” de estrelas muito grandes. O interior dos buracos negros parece ser uma região de gravidade e pressão quase infinitas, concentradas num espaço minúsculo – condições muito parecidas com as do big-bang, o evento “explosivo” que pode ter dado origem ao nosso Universo. Smolin propõe que cada buraco negro acaba criando um novo Cosmos, transmitindo as características de seu Universo “original” para o Universo “bebê” que surge dele.
A segunda parte dessa equação tem a ver com os parâmetros de cada Universo. É que, ao menos teoricamente, as características do nosso Cosmos que favorecem o aparecimento de vida também promovem o surgimento de buracos negros. Portanto, os universos que mais se “reproduzem” seriam justamente os mais propícios à ocorrência tanto de uma coisa quanto da outra. Resumindo: segundo a proposição de Smolin, nós existimos porque cosmos parecidos com o nosso são os mais favorecidos numa espécie de seleção natural cósmica.
Probabilidades
Todas essas ideias são instigantes, mas, por enquanto, ninguém conseguiu bolar um jeito de testá-las. É muito difícil – se não impossível – comprovar a existência de outro Universo. Portanto, as probabilidades de que a seleção natural cósmica esteja correta ou de que Deus seja o responsável pela harmonia do Universo são praticamente as mesmas. “Ou não”, diz o zoólogo britânico Richard Dawkins.
Autor do livro Deus – Um Delírio e ateu convicto, Dawkins também usa a seleção natural para concluir que a existência de uma divindade criadora e mantenedora é improvável. Mas ele faz isso de um jeito diferente. Sua crítica a Deus como o criador das leis do Universo tem a ver com complexidade e improbabilidade.
Segundo Dawkins, sabemos que o objeto mais complexo do Universo conhecido – a mente humana – surgiu por meio da seleção natural, e o mesmo vale para todas as incríveis adaptações dos seres vivos ao nosso redor (do voo das aves aos tentáculos dos polvos). Essa complexidade foi sendo construída aos pouquinhos, passo a passo, começando com moléculas orgânicas e células extremamente simples que se tornaram cada vez mais elaboradas ao longo do tempo. Portanto, seria absurdamente improvável que coisas tão sofisticadas surgissem de repente, sem antecedente nenhum – como se tivessem sido criadas pelo sopro divino narrado nas Escrituras.
“Ora”, argumenta o evolucionista. “Supondo que Deus fosse capaz de projetar intencionalmente os detalhes das leis do Universo, Ele precisaria ser um prodígio de complexidade, muito superior ao mais sofisticado dos cientistas humanos. Para Dawkins, a ideia de que Deus sempre existiu, tendo emergido por si só de alguma forma, é tão improvável “quanto uma rocha se transformar instantaneamente numa pessoa”.
Desnecessário dizer que esse tipo de argumento é incapaz de convencer os bilhões de pessoas que acreditam em algum Deus. De brincadeira, o astrônomo americano Carl Sagan (1934-1996), que se autodefinia como agnóstico, perguntou-se certa vez por que o Todo-Poderoso não quis deixar provas mais claras de sua existência, como uma inscrição gigante dos 10 Mandamentos na Lua, por exemplo. Alguns dirão que a falta dessa prova demonstra que Deus não existe, ou pelo menos não está interessado na humanidade. Mas, como o próprio Sagan dizia, ausência de evidência nem sempre é evidência de ausência.
Debate sem fim
Alguns argumentos de quem tem fé em Deus ou prefere acreditar no que diz a ciência
FÉ
CAUSA NÃO CAUSADA
Se tudo que existe no Universo tem uma causa, o próprio Cosmos não pode ser exceção. A “causa não causada” que supostamente explica sua existência pode – ou deve – ser chamada de Deus.
MORALIDADE
Podemos discernir certo e errado. Essa moralidade, que às vezes nos leva a ações contrárias aos interesses biológicos (como adotar uma criança), seria uma marca deixada por Deus na natureza humana.
SINTONIA DO UNIVER
Detalhes do funcionamento da natureza, como a intensidade da força gravitacional, favorecem o desenvolvimento da vida. Deus seria o responsável por essa sintonia fina do mundo e do Universo.
LEIS DA NATUREZA
O Cosmos funciona de maneira supremamente ordenada. Como parece improvável que as leis da natureza tenham surgido sozinhas, haveria uma mente racional por trás de tudo – Deus.
RAZÃO
A racionalidade humana seria um “espelho” da razão divina que ordenou o Universo. Se não fosse assim, não teríamos motivo para acreditar que podemos compreender verdades essenciais sobre o Cosmos.
CIÊNCIA
O CRIADOR DE DEUS
Se Deus criou o Universo, quem criou Deus? Para os críticos da fé, a única coisa que se consegue ao postular um Criador é uma regressão infinita de causas – o que não acontece com a ideia de um Cosmos “autocriado”.
PROBLEMA DO MAL
Existe muito sofrimento no mundo.Se Deus não age para evitar guerras, epidemias ou tragédias naturais, não pode ser bondoso e onipotente, como dizem os religiosos – talvez porque Ele simplesmente não exista.
AUSÊNCIA DE MILAGRES
Apesar dos relatos bíblicos, não existiria “milagre” que a ciência não pudesse explicar ou classificar como fenômeno natural. Isso indicaria que o Universo funciona com base em leis que nada têm a ver com Deus.
MENTE ENGANADORA
Sendo produto da seleção natural, a mente humana não pode ser tomada como guia absoluto para a razão e a moral. Nosso senso de certo e errado só existe porque ajudou nossos ancestrais a sobreviver.
RTE CÓSMICA
Embora o Cosmos pareça ter sido “regulado”, pode-se postular que o Universo em que vivemos é apenas um entre infinitos. Estaríamos aqui só porque tivemos a sorte de existir num Universo “viável”.
Para saber mais
Deus – Um Delírio
Richard Dawkins, Companhia das Letras, 2007.
O Problema com Deus
Bart D. Ehrman, Agir, 2008.
Dez Provas da Existência de Deus
Plinio Junqueira Smith, Alameda, 2006.
God – The Failed Hypothesis (inglês)
Victor J. Stenger, Prometheus Books, 2007.