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Escrita dos Maias, o fim do mistério

A escrita desse povo, agora quase toda decifrada, promete elucidar mais de 1000 anos de sua nebulosa história, mascarada por lendas e preconceitos no passado

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h09 - Publicado em 31 Maio 1991, 22h00

Flávio Dieguez

Os pântanos e florestas que cobrem boa parte da América Central abrigam, nos dias de hoje, alguns dos povos mais pobres e atrasados do mundo. O retrocesso dos últimos séculos, no entanto, é enganador. Ele interrompeu uma épica saga de nada menos que três milênios, ao longo dos quais ocorreu um dos raros momentos da história da humanidade em que inúmeros povos vizinhos subitamente despontam para a civilização. O testemunho mais impressionante desse fenômeno, na América, são as ruínas monumentais deixadas pelos maias.Em muitas histórias, ainda hoje, eles são pintados como uma gente meio mágica—que parecia ocupada apenas em adorar deuses terríveis ou em contemplar os astros, base do seu elaboradíssimo calendário. Chegou-se mesmo a especular que sua sociedade não era original da América; em vez disso, teria sido trazida por imigrantes da Antigüidade, vindos do Egito ou de algum outro lugar. 

Descobertas recentes, no entanto, põem por terra a mística vida maia, pois revelam que suas grandes obras não se limitavam a suntuosos templos e pirâmides, utilizados em rituais de sangue ou no culto aos governantes mortos. Havia também construções de finalidade prática, das quais as mais importantes eram vastos reservatórios que aproveitavam uma concavidade natural do terreno para coletar e armazenar a água da chuva.Tal tecnologia pode ter aberto uma inédita via para a civilização, pois era um meio de irrigar grandes parcelas de terra e, assim, ampliar a produção agrícola. Em outras palavras, significava alimento em quantidade suficiente para grandes populações. Isso foi essencial às grandes experiências históricas do passado—já que, nascidos da união de inúmeros povos, os impérios antigos deviam sua coesão, em grande parte, à capacidade de organizar a distribuição de água. Não por acaso, os faraós surgiram junto ao Rio Nilo; os reis sumérios, entre o Tigre e o Eufrates (onde é hoje o Iraque); e os monarcas chineses, às margens do Yang Tsé.Em diversas áreas da América, a ausência de grandes rios teria levado à bem-sucedida idéia dos reservatórios. 

Pelo menos é o que se deduz da densa população maia que, no auge, reunia dezenas de milhões de pessoas em povoados que superavam, em número, as antigas aldeias egípcias. Seus núcleos habitados, além disso, concentravam 130 pessoas por quilômetro quadrado —valor equivalente ao do Estado de São Paulo, nos dias de hoje. A expansão cultural desse povo teve inicio a partir do século I d.C.,na região de Tikal, na Guatemala. Aí se erigem as ruínas do mais portentoso conjunto cerimonial maia, dominado por uma monumental pirâmide de 70 metros, tão alta como um prédio de 23 andares.É possível que em torno dela tenha existido uma verdadeira cidade, talvez a maior que esse povo construiu. Atualmente, imagina-se que Tikal foi um mero centro administrativo e religioso, onde viviam, de fato, apenas os soberanos e sacerdotes, enquanto a população residia em aldeias agrícolas, mais ou menos distantes. Mas as ruínas incluem dezenas de construções avantajadas, que, além de santuários, podem ter sido mercados, palácios e residências. 

O conjunto principal ergue-se numa área de quase 100 quarteirões—em parte coberta por vastas plataformas de pedra de até 10 metros de espessura—, mas a cidade toda era dez vezes maior e cobria um quadrado de 3 quilômetros de lado.Além disso, Tikal possuía, pelo menos, seis grandes reservatórios pluviais, o maior deles com capacidade para armazenar 200 milhões de litros de água. No total, a capacidade era cinco vezes maior, isto é, 1 bilhão de litros ao ano. “Os reservatórios são um indício novo de urna forte urbanização”, sugerem os antropólogos americanos Vernon Scarborough e Gary Gallopin, o primeiro da Universidade de Cincinnati e o segundo da Universidade do Estado de Nova York, ambas nos Estados Unidos. O raciocínio dos cientistas é claro: obras dessa magnitude, com centenas de metros de extensão, não poderiam ter sido realizadas por simples camponeses, inteiramente ocupados com o trabalho na terra. Para planejá-las e construí-las, deve ter sido necessário alocar trabalhadores em regime de tempo integral —isto é, homens que viviam na própria Tikal com suas famílias.Alguns desses homens, por outro lado, devem ter formado uma numerosa elite urbana, tão importante na vida hierárquica dos maias quanto a elite dos guerreiros e a dos sacerdotes. Nada disso era sequer imaginado há algumas décadas, o que é compreensível. Na época de sua descoberta, logo após a chegada de Cristóvão Colombo, em 1492, os monumentos maias estavam soterrados por uma vegetação literalmente amazônica e, já então, haviam sido abandonados fazia mais de 1000 anos.
 
E certo que as construções estavam repletas de estranhas palavras, gravadas na pedra, onde poderia estar narrada a história dos seus construtores. Mas isso de pouco adiantava, já que ninguém conseguia decifrar os estranhos símbolos dessa escrita.Acima de tudo, a hostilidade devotada aos maias, desde o princípio, impedia qualquer análise racional da sua vida. Basta ver que muitos dos seus livros foram destruídos por motivos puramente militares—eram queimados para quebrar o ânimo dos nativos e assim facilitar sua conquista pelos espanhóis. Seus costumes, em vista disso, foram sistematicamente estigmatizados —em particular os sacrifícios de sangue, freqüentes em todas as culturas americanas. Nesses assustadores rituais, guerreiros e governantes inimigos, eram mortos a golpes de tacape, em público. Seu coração era, em seguida, extirpado e seu corpo, queimado. Essas práticas estendiam-se à intimidade dos lares onde as pessoas das castas dominantes vertiam, muitas vezes, seu próprio sangue— seu mais precioso bem, oferecido aos deuses em troca de favores.Embora repugnantes, hábitos como esse não significam que a sociedade maia era, de alguma forma, dominada por instintos sanguinários. Nem que o derramamento de sangue fosse o aspecto mais destacado de sua cultura. Em primeiro lugar, porque cultura é um conceito relativo; o que causa repugnância a um povo parece apenas normal aos olhos de outro povo. Depois, porque houve muito exagero, no passado. 

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“Seria um erro pôr muita ênfase nos rituais de sangue”, opinam, por exemplo, dois competentes estudiosos da escrita maia, os americanos David Stuart e Stephen Houston, da Universidade Vanderbilt. Eles acreditam que nos próximos anos será possível ter uma idéia mais precisa da sociedade maia, graças aos progressos na arte de decodificar sua escrita. “Metade dos símbolos para as sílabas já foi decifrada.”Esses curiosos sinais representam um pequeno grupo de letras—como “wi” e “tsi”, componentes da palavra “wits”, que significa “colina”. Ou como “a”, “ha” e “wa”, que formam o termo “ahaw”, empregado para designar “senhor de terras” ou “governante”. Ao lado dos caracteres silábicos, os maias empregavam também formas logográficas, isto é, desenhos completos para representar uma palavra. O termo “senhor de terras”, por exemplo, também podia ser escrito com um simples desenho, na forma de uma face. Assim, a comparação das figuras com as palavras abre uma brecha maior para a compreensão de ambos.Ao contrário do que se supunha, os textos maias não são simples fórmulas místicas ou meras narrativas religiosas. Em grande maioria, eles descrevem eventos reais da história da América Central e do México, e podem esclarecer a desconhecida história política da região. Há grande interesse, por exemplo, em desvendar as relações entre Tikal e a cidade de Teotihuacán, que no quinto século d.C., abrigava 150 000 habitantes e era uma das maiores cidades do mundo.

Tikal havia surgido 600 anos antes de Cristo, mas sua história remonta a dois e meio milênios antes disso, quando os maias iniciaram sua migração, talvez vindos de tão longe quanto a costa oeste dos Estados Unidos. Nessa época, os primeiros povos a despontar como uma civilização distinta e abrangente foram os olmecas. Mas não está claro se a região chegou a comportar verdadeiros impérios, pois as cidades fundadas durante o primeiro milênio antes de Cristo pareciam ter vida independente.No caso dos maias, os primeiros centros regionais—como Izapa e Kaminaljuyú, estabelecidos na Guatemala —criaram uma fase cultural conhecida pelo nome de Terras Altas. Quando esses centros perderam força, Tikal ergueu-se como um fenômeno marcante. Essa transição ocorreu por volta do ano 300 d.C., sob a égide de um soberano denominado Focinho Curvado, cujos emblemas exibem a imagem do deus Tlalóc, de Teotihuacán. Sabe-se também que o soberano deposto por ele era Garra de Jaguar, ligado às linhagens dominantes das Terras Altas.Portanto, insinua-se aí uma instigante trama política e há diversas outras indicações de algum tipo de aliança entre as linhagens dominantes de Tikal com as de Teotihuacán, talvez como meio de afastar a influência dos centros das Terras Altas. 

No governo seguinte, de Céu Tempestuoso (entre 426 e 456 d.C.), consolida-se o novo centro de poder dos maias. Nos séculos posteriores, de fato, a arquitetura e arte criada nesse período se espalhariam para leste, com a edificação de templos monumentais em localidades como Uxmal e, especialmente, Chichén Itzá. Foi a idade de ouro dos maias. Ela se encerraria abruptamente, no século IX, mais ou menos quando, ao norte, começava a erguer-se a cultura asteca.Stuart e Houston dizem que alguns textos já decifrados ilustram a intensa atividade política dos maias, nessa região. Eles contam a história de diversas cidades junto ao Lago Petebaxtun, não muito distante de Tikal. “As inscrições revelam que, nesse local, as relações entre as cidades mudaram de amistosas para hostis, e novamente para amistosas, num curto período de apenas quarenta anos.”Ainda é cedo para tirar conclusões seguras a respeito dos inúmeros fatos novos levantados pela pesquisa científica. Mas o empenho com que se buscam respostas, atualmente, permite prever uma pequena revolução na história dos maias. Eles ainda somam, hoje, 4 milhões de pessoas, habitantes do México, Guatemala, Belize, Honduras e El Salvador—cerca de 4% da população desses países. E possível que o resgate de sua memória perdida, além de ajudar a entender melhor o nascimento da civilização, também abra novos horizontes para o futuro desse povo.

 

 

 

 

 

Boxes da reportagem

Mesoamérica, há 10 000 anos: berço de civilizações

Diversos povos nômades, há 10 000 anos, começaram a fixar-se na região do México e América Central, onde produziram um dos grandes inventos da pré-história: o milho. Antes disso, esse cereal era um capim cuja espiga de apenas 4 centímetros, depois do cultivo, tornou-se quase dez vezes maior. O plantio fez multiplicarem-se as aldeias permanentes, a partir de 5 000 anos atrás. A primeira grande cultura da região foi a olmeca, que construiu San Lorenzo e La Venta, entre 1200 e 900 a.C. Nos séculos seguintes, na periferia da área olmeca, floresceram cidades como Teotibnacán, numa área cultural de nome tolteca, e Monte Albán, numa área zapoteca. Ao sul, apareceram os mais antigos centros maias: Abaj Takalik, Izapa e Kaminaljuyú. Vieram, mais tarde, Tikal e Palenque e, depois, Chichén Itzá e Uxmal. Decadentes, esses últimos centros duraram até o século 14 d.C. —quando Tenochtitlán, capital do império asteca, já abrigava mais de 200 000 habitantes.

 

 

 

Ciência dos números, palavras e astros

Ao contrário de outros povos que chegaram ao limiar da civilização, os maias não conheciam a roda, o torno de madeira ou os metais, assim como não dispunham de animal de tração. Mas isso. em vez de diminui-los, os engrandece.. “As limitações tornam ainda mais admiráveis suas conquistas em inúmeros outros domínios”, opina o arqueólogo francês Paul Gendrop. Ele refere-se, com certeza, à Arquitetura, Matemática Astronomia e escrita. Essa última parece um retrato de como nascem os símbolos. Em certos casos, ela representava as palavras por meio de figuras bem concretas, como, um rosto ou um galho de árvore; no total, existiam cerca de 1 000 símbolos desse tipo. Em outros casos, ela empregava sinais abstratos, como círculos, traços, ou formas mais complicadas.Esse segundo sistema, no entanto, era mais prático, pois as palavras podiam ser escritas com pouco mais de 100 sinais abstratos. Esses eram usados para representar sílabas, nas quais se combinavam cinco vogais e dezessete consoantes. Algumas das palavras mais importantes do vocabulário maia estavam ligadas aos seus dois calendários, onde o ano chamava-se “tún” e os meses “uinals”. 

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Num deles, considerado sagrado, o ano tinha 260 dias e era dividido em treze meses de vinte dias cada um. No outro, de uso civil, o ano tinha 365 dias e dezoito meses de vinte dias, mais cinco dias.Os dois calendários combinavam-se por meio de um incrível sistema astronômico, baseado no período de 584 dias, tempo que o planeta Vênus leva para dar uma volta completa em torno do Sol. De tal modo que, quando Vênus dava 65 voltas, passavam-se exatamente 104 anos de 365 dias e 146 anos de 260 dias. Os maias descobriram que essa coincidência de números inteiros acontecia num período mais curto—em metade de uma volta de Vênus, ou 52 anos civis. Esse período de 52 anos era, por isso, a base das suas datações históricas. A Matemática também estava associada ao calendário e aos astros, pois a numeração não se apoiava no número 10, como atualmente; em vez disso, empregava o número 20, o total de dias do mês. Os seus algarismos eram apenas três: um ponto representava o número 1; uma barra, o 5; e uma oval, o zero.

 

 

 

 

 

 

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