Estrelas cadentes
No fim de 2009, um terrorista disfarçado de espião matou 8 funcionários da CIA e deixou uma pergunta no ar: por que a agência americana se atrapalha tanto no combate ao terrorismo?
O médico jordaniano Khalil al-Balawi era a grande aposta da CIA na guerra contra o terrorismo. Aos 32 anos, com experiência em movimentos extremistas, havia sido cooptado pelo serviço secreto da Jordânia para passar informações sobre integrantes da rede Al-Qaeda. Seu controlador era ninguém menos que Ali bin Zeid, chefão da inteligência jordaniana e forte aliado dos EUA. Em 30 de dezembro de 2009, Bin Zeid viajou com Balawi a uma base da CIA no Afeganistão. Os americanos esperavam ansiosos pela visita: o médico poderia levá-los a Ayman al-Zawahiri, o número 2 da Al-Qaeda.
A confiança em Balawi era tanta que ele entrou na base sem ser revistado. Foi direto à sala onde estava reunida a nata da CIA no Afeganistão. Ao chegar lá, detonou o cinto de explosivos, matando Bin Zeid e 7 agentes. Outros 3 ficaram feridos, no maior golpe sofrido pela CIA desde um atentado no Líbano, em 1983. Balawi deixou uma viúva, dois filhos e um vídeo, gravado pouco antes de se explodir, no qual evoca a jihad e ridiculariza a “estupidez” dos serviços secretos dos EUA e da Jordânia por convidá-lo ao Afeganistão. Segundo ele, o plano inicial era sequestrar e talvez matar Bin Zeid. Mal acreditou quando teve a chance de fazer uma base americana voar pelos ares.
A história de Balawi é um exemplo explosivo da confusão, ingenuidade e falta de eficácia da CIA no combate ao terrorismo. Erros na luta contra os grupos muçulmanos armados já são uma tradição na principal agência de inteligência do mundo.
O fio condutor que leva ao 11 de setembro e ao Iraque não começou com George W. Bush. Começou bem antes, em 1979. Naquele ano, a CIA foi surpreendida por dois fatos que sacudiram o mundo: a revolução islâmica no Irã e a invasão do Afeganistão pela União Soviética.
Até então, o xá iraniano Reza Pahlevi comandava um exército moderado e pró-Ocidente ao sul da URSS. Com sua derrubada pelo aiatolá Khomeini, o Irã passou a financiar grupos terroristas antiocidentais. Entre eles o libanês Hezbollah, que matou 241 marines americanos e 58 paraquedistas franceses num duplo atentado suicida em Beirute, em 1983.
A ocupação do Afeganistão pelos soviéticos gerou indignação no mundo islâmico. Guerrilheiros árabes fanáticos (os mujahedin) foram até lá para tentar expulsar o Exército Vermelho de Dar al-Islam (a terra do Islã). O principal recrutador era o palestino Abdullah Yusuf Azzam, criador do Escritório para os Combatentes Internacionais (MAK, na sigla em árabe). Assim, o Afeganistão tornou-se um laboratório de terroristas, dispostos a uma jihad em qualquer lugar do planeta.
Com medo de uma expansão soviética no Oriente Médio, o presidente americano Ronald Reagan decidiu apoiar os mujahedin. A operação funcionava assim: a CIA fornecia armas, a Arábia Saudita dava dinheiro, e o Paquistão distribuía tudo aos combatentes. Foi assim que o saudita Osama Bin Laden apareceu. Filho de um bilionário da construção, foi incumbido pelo serviço secreto de seu país a doutrinar os mujahedin. Logo entrou para o MAK e virou discípulo de Azzam. Mas a amizade entre os dois durou pouco, pois o pupilo achava que seu mentor era moderado demais. Em 1988, Bin Laden fundou a Al-Qaeda (“a base”) com o objetivo de erguer um califado mundial. No ano seguinte, Azzam foi morto numa explosão.
Quando o último soldado soviético deixou o Afeganistão, em 1989, o ex-diretor da CIA George Bush (Bush pai) assumiu a Casa Branca festejando a vitória sobre o inimigo comunista. A CIA abandonou o Afeganistão à própria sorte, sem se preocupar com o exército de fanáticos que ajudara a treinar. Mas os fanáticos preocupavam-se com a CIA. Achavam que Al-Qaeda é que havia vencido os “infiéis” da URSS. E agora estavam dispostos a derrotar a única superpotência que restava.
No início dos anos 90, a CIA não percebeu que tinha sido arrastada para o mundo do terrorismo. Estava acostumada demais com a lógica previsível da Guerra Fria, em que os inimigos tinham cara, endereço, fax e geralmente falavam russo. Foi com essa mentalidade que a CIA tropeçou feio na guerra civil da Somália, onde as milícias do general Farah Aidid atacavam as forças de paz da ONU e roubavam a ajuda internacional. Em 1993, o presidente Bill Clinton enviou unidades dos Rangers (força de elite dos EUA) para capturar oficiais do general Aidid. Mas o que era para ser uma missão humanitária terminou com a morte de 18 americanos e 1 200 somalis. Dois helicópteros Black Hawk foram derrubados, como o diretor Ridley Scott retratou no filme Falcão Negro em Perigo.
“Embora a CIA não soubesse disto em 1993, a Al-Qaeda havia treinado as milícias do general Aidid e colaborado na derrubada dos helicópteros”, afirma Richard A. Clarke, que na época coordenava o Conselho Nacional de Segurança dos EUA. No livro Contra Todos os Inimigos, ele diz que o nome de Bin Laden se tornou frequente nos informes de 1993 e 94, mas a CIA seguia considerando-o um meninão abastado que só distribuía cheques a terroristas. A miopia continuou no primeiro ataque ao World Trade Center, em 1993. “Hoje sabemos que também foi obra da Al-Qaeda. Mas o FBI e a CIA atribuíam o atentado ao kuwaitiano Ramzi Yusef”, diz Clarke.
Naquela altura, o líder da Al-Qaeda vivia no Sudão, de onde financiava grupos radicais na Chechênia, Bósnia, Egito, Argélia e Filipinas. Em 1996, foi recebido pelo Talibã, a facção que controlou a maior parte do Afeganistão após a saída da URSS. Os atentados da Al-Qaeda contra alvos americanos ficaram frequentes. Em 1998, a rede atacou as embaixadas dos EUA no Quênia e na Tanzânia. Em 2000, um suicida explodiu o barco USS Cole, deixando 17 marinheiros mortos e 39 feridos. Mas o pior estava por vir, no dia 11 de setembro de 2001.
Quando o World Trade Center veio abaixo, a ficha caiu. A CIA declarou que a Al-Qaeda estava por trás dos ataques, e seus agentes voltaram a sujar os pés de areia no Afeganistão, desta vez, para caçar Bin Laden. Tropas dos EUA e da Inglaterra invadiram o país, iniciando uma guerra que já dura 8 anos. Mas a caçada está longe de terminar: embora debilitada, a Al-Qaeda ampliou tentáculos na Ásia e na África, além de ter células dormentes na Europa. Uma dessas células explodiu 4 trens em Madri, em 2004, matando 191 pessoas.
Até ex-agentes da CIA apontam falhas. Um deles, Ishmael Jones, diz que o problema é o excesso de burocracia. “A agência gasta pessoas e dinheiro demais. Enviou 21 agentes para capturar o clérigo muçulmano Abu Omar na Itália, em 2004,que já era vigiado pela polícia italiana”, diz Jones. “Ficaram em hotéis 5 estrelas e usaram celulares comuns.” Abu Omar foi levado a uma prisão clandestina, onde diz ter sido torturado, e acabou liberado por “falta de provas”. Em 2009, um juiz italiano condenou os agentes a 5 anos de prisão.
No livro Denial and Deception (Negação e Engano, ainda sem edição brasileira), a ex-espiã Melissa Boyle Mahle acusa a CIA de ter virado um monstro burocrático em que as informações não circulam. Foi o caso dos pilotos do 11 de setembro, que aprenderam a voar nos EUA sem chamar a atenção. E do nigeriano que tentou explodir um avião com explosivos que levava na cueca (leia abaixo).
Sim, a CIA também tem obtido vitórias. Uma delas foi localizar e matar Abu Musab al-Zarqawi, líder da Al-Qaeda no Iraque. A CIA também ajudou o serviço secreto britânico a desbaratar uma operação terrorista em 2006: a polícia inglesa deteve 21 suspeitos de tentar explodir 10 aviões em rota para os EUA. E foi em cooperação com a CIA que a Arábia Saudita agarrou 110 militantes da Al-Qaeda do Iêmen, semanas atrás, acusados de preparar ataques contra instalações petroleiras.
Por enquanto, Bin Laden parece estar são e salvo em algum lugar da Ásia Central. Num vídeo de março, ele ameaça matar americanos pelo mundo, caso os EUA executem Khalid Sheikh Mohammed, cérebro do ataque ao WTC. Mesmo Bin Laden morto, sua rede terrorista já ganhou vida própria faz tempo. E o pior é que os EUA ainda precisam lutar em outra frente, o Iraque, que não tinha nada a ver com essa história.
Ele bem que avisou
Em 25 de dezembro de 2009, o nigeriano Umar Farouk Abdulmutallab pegou um voo em Amsterdã, na Holanda, com destino a Detroit, nos EUA. O garoto de 23 anos tinha um presente de Natal para os passageiros do avião da Northwest Airlines. Poucos minutos antes da aterrissagem, Abdulmutallab misturou dois explosivos plásticos que levava sob a calça, gerando uma pequena bola de fogo. As chamas foram controladas, e Farouk terminou detido nos EUA, com queimaduras nas mãos e nos genitais. O ataque frustrado foi uma vitória para a rede Al-Qaeda, já que o terrorista suicida conseguiu passar com explosivos pelos raio X dos aeroportos europeus. Mas o presidente americano, Barack Obama, reagiu com uma fúria incomum. Afinal, como a CIA não tinha previsto aquele atentado?
Pistas não faltavam. O pai de Farouk, um milionário nigeriano, havia procurado agentes dos EUA em novembro para alertá-los sobre a radicalização do filho. Meses antes, a Agência Nacional de Segurança (NSA) tinha interceptado uma conversa entre líderes da Al-Qaeda no Iêmen sobre um atentado que seria cometido “em breve” nos EUA por um nigeriano. Foi no Iêmen, aliás, que Farouk conseguiu os explosivos. Com essas informações em mãos, o que a CIA fez? Nada. Até emitiu um relatório sobre o rapaz, mas não lhe deu a devida atenção e nem informou agências de segurança aliadas. Resultado: Farouk conseguiu o visto e embarcou tranquilo para os EUA.