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High Hitler: como o uso de drogas mudou o desfecho da 2ª Guerra

Os soldados nazistas - e o próprio Führer - usaram quantidades cavalares de droga. Cocaína, metanfetamina e heroína: todas elas alteraram o curso da guerra.

Por Ricardo Lacerda e Bruno Garattoni
Atualizado em 4 jun 2021, 12h40 - Publicado em 24 ago 2017, 16h03

A coisa estava indo bem. Na verdade, muito bem. Com menos de um ano de guerra, os nazistas já haviam dominado Polônia, Dinamarca, Noruega, Bélgica, Holanda e França. Tudo indicava que iriam dominar a Europa e, em julho de 1940, a Luftwaffe (Força Aérea alemã) resolveu dar a cartada decisiva: bombardear a Inglaterra.

Em poucas semanas, 40 mil ingleses morreram. Mas os britânicos resistiram. Seu melhor avião de guerra, o Spitfire, era bem superior ao Bf109 alemão. Então os nazistas mudaram de estratégia e começaram a fazer ataques de surpresa na madrugada, aproveitando a escuridão para despistar os Spitfires.

Só havia um problema. Os pilotos alemães passavam o dia inteiro tensos e acordados, decolavam à noite – e, quando finalmente se aproximavam do espaço aéreo inglês, às 3h da manhã, estavam mortos de cansaço. Nesse momento, sacavam sua arma secreta.

O suplemento surpresa

Em pleno voo, deslizavam a mão pela perna e, na altura do joelho, abriam um bolso, de onde pegavam um ou dois comprimidos de cor leitosa. Rapidamente, tiravam a máscara de oxigênio e engoliam o remédio – a seco mesmo.

Em poucos minutos, tudo mudava: o coração acelerava, os olhos se arregalavam, e os pilotos se sentiam ágeis e fortes, sem o menor sinal de cansaço. O sono (e o medo) sumiam.

O remedinho salvador se chamava Pervitin e era fabricado pelo laboratório alemão Temmler. Ele tinha como princípio ativo uma das drogas mais fortes, e mais viciantes, já inventadas pelo homem: a metanfetamina. Ela foi um dos principais trunfos nazistas durante a 2a Guerra – e fez seus militares terem experiências quase sobrenaturais.

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“O motor flui de forma limpa e calma. Estou completamente acordado, meus batimentos cardíacos ressoam nos ouvidos. Aqui em cima é puro silêncio. Tudo se torna secundário e abstrato. Sinto-me afastado, como se eu mesmo estivesse voando sobre o meu avião”, escreveu um piloto da Luftwaffe em seu diário, recuperado pelo escritor alemão Norman Ohler no livro High Hitler: Como o uso de drogas pelo Führer e pelos nazistas ditou o ritmo do Terceiro Reich. A obra é um mergulho sem precedentes no doping do exército alemão durante a guerra. Inclusive o do próprio Hitler.

High Hitler
35 milhões de comprimidos de metanfetamina foi o estoque que alimentou a expansão nazista pela Europa. (Zé Otavio/Superinteressante)

O dealer do Führer

Theodor Morell não era um sujeito amigável. Antipático e egocêntrico, o médico entrou no Partido Nazista em 1933 com o único objetivo de ganhar clientes. Funcionou: sua clínica se tornou uma das mais requisitadas de Berlim. Pioneiro no ramo das vitaminas, ele não hesitava em injetar suplementos diretamente na corrente sanguínea dos pacientes. Também aplicava doses de testosterona e metanfetamina para estimular seus clientes. Em 1936, foi chamado a tratar o fotógrafo oficial do Partido Nazista, Heinrich Hoffmann, que estava com gonorreia. Semanas depois, foi apresentado a Hitler.

Testosterona e metanfetamina eram injetadas direto na veia – inclusive de Hitler.

O Führer se queixou de dores crônicas de estômago, gases e eczema (uma doença de pele) nas duas pernas. Morell receitou um remédio chamado Mutaflor, feito de bactérias que regulam a flora intestinal. Hitler ficou bom, e decidiu nomear Theodor seu médico particular.

Dali até o suicídio do Führer, em 1945, o médico visitou Hitler todo santo dia – e, muitas vezes, aplicou drogas estimulantes. “Antes de todo grande discurso de sobriedade, o chanceler permitia-se uma ‘injeção de energia’ para funcionar da melhor maneira possível”, escreveu Morell.

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O diário do médico tem 885 notas relacionadas a Hitler, escritas em um período de 1.349 dias. Nesse intervalo, o Führer teria ingerido mais de 1.100 medicamentos, além de receber pelo menos 800 injeções. Hitler consumia testosterona e adorava metanfetamina. Quando começou a perder batalhas para a União Soviética, em 1941, ficou abatido e decidiu experimentar morfina, analgésico que provoca relaxamento e euforia.

Foi depois de receber uma injeção dessa droga que, animado, ele decidiu pegar um avião para a Itália. O ditador Benito Mussolini, aliado dos nazistas, queria desistir da guerra, mas acabou mudando de opinião sob a pressão de Hitler, que falou por três horas sem parar. Era a morfina alterando o rumo da história. No diário de Joseph Goebbels, ministro da propaganda alemão, as notas de 10 de setembro descrevem o chefe da seguinte maneira: “Sua aparência é excepcionalmente boa, o que não se esperava. Ele não teve mais do que duas horas de sono, mas parece ter acabado de chegar de férias”. Reanimado pela droga, Hitler voltou a acreditar na vitória absoluta.

Ressaca Nazista

No começo, a metanfetamina ajudou os alemães; depois, atrapalhou bastante

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(Zé Otavio/Superinteressante)

1. Cérebro
A metanfetamina gera lesões, podendo comprometer a fala, a concentração e a memória.

2. Fígado
A droga eleva o teor de amônia no sangue, causando danos hepáticos.

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3. Rins
Provoca rabdomiálise, uma degeneração muscular que libera toxinas e pode levar à falência renal.

4. Coração
A pressão sanguínea aumenta em média 25%. Uso contínuo pode provocar hipertensão crônica e infarto.

5. Estômago
Causa dores abdominais e distúrbios intestinais crônicos.

O cartel de Berlim

A Alemanha sempre teve certo fascínio com o desenvolvimento de novas drogas. Foi o boticário Friedrich Sertürner quem isolou pela primeira vez o ingrediente ativo do ópio, no início do século 19. Décadas depois, uma empresa alemã, a Bayer, lançaria um produto derivado do ópio: a heroína (nome que foi escolhido pela empresa por remeter a outro remédio muito popular, a aspirina, que ela também inventou).

A heroína era vendida em farmácias e recomendada para tosse, enxaqueca, insônia e mal-estar. Fez tanto sucesso que o laboratório Merck, também alemão, lançou um remédio similar.

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A indústria farmacêutica se tornou uma das grandes forças econômicas da Alemanha depois da 1ª Guerra. Entre 1925 e 1930, mesmo sem plantar um único botão de papoula, o país já exportava 40% da morfina do planeta. No mercado de cocaína, então, os resultados eram ainda mais impressionantes: juntos, os laboratórios alemães atendiam 80% do consumo global da droga (que era legalizada).

Da mesma forma, as empresas logo aprenderam a produzir a metanfetamina – que havia sido sintetizada em 1919 pelo japonês Akira Ogata. Ela aumenta a quantidade de dopamina (um hormônio neurotransmissor que produz sensação de bem-estar e euforia) no cérebro por horas, horas e horas.

A substância era indicada para quase tudo, inclusive frigidez sexual, enjoos na gravidez e até como tratamento para o vício em outras drogas.

Por isso, ninguém ficou muito surpreso quando Hitler teve a ideia de dopar seus exércitos. Para os soldados alemães, tomar metanfetamina fazia parte da rotina. “Tornou-se tão natural quanto uma xícara de café”, escreve Ohler.

A droga funcionava tão bem que já foi usada no primeiro ato da guerra: a invasão da Polônia pelos nazistas, em 1939. Segundo anotações da 3ª Divisão de Tanques, os militares apresentavam sinais de “euforia, elevação da atenção, claro aumento do rendimento”, e ficavam mais de 48 horas sem dormir.

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Os militares queriam mais: encomendaram 35 milhões de comprimidos.

Em maio de 1940, as tropas movidas a metanfetamina chegariam a Sedan, na fronteira da Bélgica com a França. Cerca de 60 mil homens, 22 mil veículos e 850 tanques atravessaram o rio Mosa, que separa os dois países. “Entramos numa espécie de exaltação, um estado de exceção”, diz o relato de um combatente. Os franceses mal reagiram. Simplesmente não acompanhavam o ritmo frenético dos nazistas – que chegaram a se descuidar da própria defesa. Embalados pela droga, avançavam sem parar.

Dias depois, conquistaram Paris, marchando pelos bulevares da capital até cravarem a suástica em plena Torre Eiffel. “Os alemães tiveram, em menos de 100 horas, mais conquistas territoriais do que em quatro anos da 1a Guerra Mundial”, escreve Ohler.

Mas a euforia dopaminérgica não é eterna, muito menos isenta de efeitos colaterais. Já começavam a se multiplicar casos de infarto, hipertensão, esgotamento nervoso e psicose. Hitler também não estava bem. No dia 20 de julho de 1944, por volta do meio-dia, a Toca do Lobo foi alvejada por um forte bombardeio.

O local era um dos principais QGs nazistas, na Prússia Oriental – atual Polônia. Entorpecido por drogas, Hitler mal percebeu o que estava acontecendo. O médico Morell logo foi chamado para atender o Führer, que tinha estilhaços pelo corpo, queimaduras nas pernas e os ouvidos sangrando. Extasiado, ele nem sentia os ferimentos. Estava com os dois tímpanos estourados – mas só falava na próxima reunião com Mussolini. Quando o efeito das drogas passou, as dores vieram à tona.

Fisicamente, Hitler dava a impressão de ter envelhecido uma década. Aos 55 anos, ele se transformara num senhor de idade, curvado e sem forças. Na tentativa de curar seus ouvidos, um otorrino introduziu a cocaína no cardápio do ditador. A substância – que também age promovendo a circulação de dopamina no cérebro – era chamada de “droga degenerativa judaica” pelos nazis, mas o Führer gostou mesmo assim. Entre 22 de julho e 7 de outubro de 1944, ele recebeu mais de 50 doses. As aplicações eram feitas com pincel, diretamente no nariz.

Hitler reagiu – e sua megalomania decolou. Mesmo com o exército enfraquecido, ele não abria mão de invadir o front ocidental. Na segunda metade de 1944, seus soldados, acuados, haviam perdido Paris e batido em retirada da Grécia e da URSS. Em vez de estimular ataques, agora a metanfetamina servia como combustível para as fugas.

O Führer se tornara um dependente químico, sempre querendo drogas mais pesadas. Foi então que passou a usar a dobradinha cocaína-morfina, um coquetel hoje conhecido como speedball. Nas últimas semanas do ano, tremedeiras e espasmos se tornaram frequentes para Hitler. Insônia, prisão de ventre e dores intestinais também haviam voltado.

Em 16 de abril de 1945, o último reduto de Hitler começava a desmoronar. Os Aliados atacavam Berlim incessantemente, mas o Führer ainda teve tempo de celebrar 56 anos. Os estoques de Morell acabaram, e ele foi demitido (sem remédios, não servia para nada).

Em suas últimas reuniões, Hitler estava descompensado. Esbravejava e gesticulava sem parar, procurando traidores por todo lado. Sem chance de virar o jogo, recorreria à química uma última vez.

Distribuiu cápsulas de cianeto de potássio, um veneno letal, aos mais próximos. Entre eles, a família de Goebbels, incluindo a esposa e seis filhos. Também oficializou seu casamento com Eva Braun, a amante 19 anos mais jovem. No jantar de celebração foi servido espaguete com molho de tomate. De sobremesa, cianeto de hidrogênio, outro veneno mortal. Ansioso, Hitler não esperou o efeito, e se matou com um tiro na cabeça. Agora, finalmente, estava livre de seus vícios. E o mundo, livre dele.

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