Maomé, islamismo, religião e poder
A saga de Maomé, o guardador de rebanhos que fundou o islamismo, o fundamento da identidade árabe.
Suzana Veríssimo
No dia 4 de junho de 1989, as televisões do mundo inteiro mostraram as imagens do enterro do aiatolá Khomeini no Irã. Pelo menos 1 milhão de pessoas seguiu o cortejo. Para os olhos ocidentais, foi um espetáculo assustador — cenas dramáticas de choro, confusão, desespero, histeria, numa impressionante manifestação de fervor religioso. Para os cerca de 840 milhões de muçulmanos que hoje em dia vivem no planeta, nada mais compreensível: afinal, a morte do aiatolá é a repetição da própria morte do profeta Maomé, o fundador da mais nova das grandes religiões, o islamismo. Até o século VI, quando nasceu Maomé, a Península Arábica permaneceu quase inacessível ao Ocidente. Região desértica, com 2,6 milhões de quilômetros quadrados, permaneceu a salvo dos conquistadores romanos, graças, exatamente, à sua situação geográfica — isolada ao norte pelo Mar Mediterrâneo, ao sul pelo Oceano Índico e a oeste pelo Mar Vermelho. Nas regiões à beira-mar, no sul, (onde hoje ficam os dois Iêmens vicejaram algumas civilizações). O mais conhecido dos reinos foi o de Sabá; escavações recentes mostraram vestígios de palácios monumentais e estátuas na cidade de Marib — capital do reino. Pelo relato de cronistas gregos, persas e romanos, conclui-se que a região, rica e próspera, merecia mesmo ser chamada Arábia Feliz.No resto da península, viviam os sarracenos — beduínos nômades, de origem semítica, com a pele branca mas tostada pelo sol. Sua forma de organização social se baseava nas tribos, onde conviviam os clãs. Aldeias com casas de barro se erguiam em torno dos oásis, separados entre si por longas distâncias. Em princípio, não havia propriedade individual: os rebanhos e as raras pastagens eram coletivas. Mas isso não impedia que alguns clãs fossem mais ricos que outros, em função das pilhagens — uma prática comum — ou de operações comerciais. No início do século VI, os bizantinos e os persas começaram a disputar a rota da seda, que passava pelo corredor que ligava a Síria à Palestina. A Península Arábica tornou-se por isso um caminho mais seguro para o comércio.A cidade mais importante da região era Meca. Não apenas era um posto de abastecimento de água para as caravanas, como estava situada numa encruzilhada de caminhos que levavam ao Egito, à Síria e à Mesopotâmia. Não muito longe, também, ficava o porto de Dajedda, no Mar Vermelho. Mas não era só isso que fazia Meca importante. No século V, os coraixitas — uma das grandes tribos da parte norte da Península Arábica —, liderados por Qasayy, dominaram a cidade expulsando a tribo de Khozaa, que ali reinava, para assegurar o comércio. Qasayy teve a habilidade de transformar Meca em um grande centro de peregrinação religiosa: ali estava a Caaba (cubo), um edifício retangular, de pedra, com 15 metros de altura. Num dos ângulos a famosa Pedra Negra, segundo a tradição árabe trazida pelo anjo Gabriel — provavelmente um meteorito. Mas, além das divindades árabes, havia na Caaba outros ídolos de diferentes tribos e religiões.
Quando Maomé nasceu — não se sabe bem se em 569, 570 ou 571 —, Meca deixara de ser um mero posto de passagem para se transformar num próspero centro comercial. O certo é que o menino nasceu órfão do pai, Abd Alla, do clã Hashim, um ramo pobre da tribo coraixita, que detinha o poder na cidade. Três dias depois do casamento, Abd Allah partira em viagem de negócios e morrera em Medina, então chamada Iatribe. Dois meses depois de sua morte, a viúva, Amina, dava à luz Mohammed (o Louvado), um nome incomum, na época. Como era tradição, o menino foi criado por uma ama, Halima, guardando rebanhos nas regiões montanhosas. Quando tinha 7 anos, a mãe morreu e o avô paterno, Abd al—Mutallib, o adotou. Mas a perda das pessoas mais próximas parece ter sido uma constante na vida do menino. Dois anos depois, o avô também morreu e ele passou aos cuidados do tio Abu Talib, um experiente condutor de caravanas.
Aos 12 anos, o menino fez sua primeira viagem ao lado do tio. Foi até Bosra, na Síria — e segundo os relatos, nessa viagem os dois encontraram um monge, de nome Bahira, que predisse a missão profética de Maomé. “Volta com teu sobrinho para teu país e protege-o dos judeus”, teria dito Bahira a Abu Talib. “Se eles chegarem a vê-lo e dele souberem o que eu sei, tentarão prejudicá-lo.” Os judeus estavam fixados em várias colônias da península, com sua religião antiga e monoteísta. Indiferente à profecia, o rapaz continuou sua vida e, aos 20 anos, passou a trabalhar para uma viúva rica de Meca, Kadidja. Ela era, certamente, uma mulher fora do comum. Ao contrário do costume árabe, que condenava as viúvas a se colocar sob a tutela de um parente homem e a viver de luto, ela continuou à frente dos negócios do marido, aumentando o patrimônio herdado. Mas tudo indica que, embora rica, ela não pertencia a um clã que tivesse boa posição na tribo dos coraixitas. Já Maomé, embora pobre, era trabalhador, respeitado e saído de um clã da tribo dominante em Meca. Numa mistura de amor e cálculo, os dois se casaram. Maomé tinha 25 anos e Kadidja, 40.Apesar da diferença de idade, o casamento foi feliz — tanto que Maomé, enquanto Kadidja viveu, só teve a ela como mulher, embora a tradição árabe permitisse que ele tivesse tantas mulheres quantas pudesse sustentar.
Com o casamento, Maomé passou a desfrutar uma situação econômica invejável. Podia viajar à frente das caravanas da mulher, conhecendo terras, pessoas e novos costumes. “Foi certamente nessas viagens que ele teve despertado o interesse religioso”, interpreta Rogério Ribas, professor de História Medieval do Oriente, da Universidade Federal Fluminense. “É mesmo possível que ele fosse um membro do hanif, grupo contrário à idolatria que existia em Meca.” Além disso, conta o professor, “a idéia de um deus único não era novidade na região, onde existiam comunidades de judeus e de cristãos. Nem era novidade, também, a idéia de uma unidade de poder entre os árabes, que havia chegado através da tribo dos kinda, que tentara uni-los por meio da língua”.
Maomé beirava os 40 anos quando, durante o Ramadã, o mês de peregrinação a Meca e à Caaba, subiu com a família ao Monte Hira, para o retiro tradicional. Conta-se que, certa noite, ele dormia numa gruta quando uma figura misteriosa, segurando um rolo de pano coberto de sinais, ordenou: “Lê!” “Não sei ler”, respondeu Maomé. “Lê”, repetiu duas vezes a figura, enquanto quase sufocava Maomé, enrolando o pano em torno de seu pescoço. O homem, que era analfabeto, leu. Ao acordar, saiu da gruta e, no alto, viu um anjo que lhe dizia: “Maomé, és o mensageiro de Alá e eu sou Gabriel”. Apavorado, pensando estar possuído por um djin — um espírito para os árabes — correu até onde estava Kadidja, em busca de socorro. Ela o consolou e desde o começo acreditou na missão do marido.
Mas, para Maomé, a convicção não veio tão fácil. Após a primeira revelação, vieram outras. Ele pressentia a chegada dos êxtases porque era assaltado por fortes suores e zumbido nos ouvidos. Muitas vezes chegava a desmaiar. No início, Maomé pensou que estava enlouquecendo e a idéia do suicídio passou, diversas vezes, por sua cabeça. Mas, aos poucos, convenceu-se de que era um profeta. Nos três anos que se seguiram à primeira revelação, a missão ficou reservada à mulher, ao filho adotivo Zeid, ao primo Ali e aos amigos Othman, seu genro, e Abu—Bekr, futuro sogro, rico e influente comerciante de Meca. Até que o anjo deu-lhe ordem de pregar aos árabes. E o principal tema da pregação era, exatamente, a existência de um só deus, Alá.
Na fase inicial, Maomé não se considerava fundador de uma nova religião. Menos ainda tinha a intenção de criar a partir dela um Estado árabe. Nessa época, ele achava que era apenas uma pessoa que recebera a missão de advertir seus concidadãos sobre o dia do Juízo Final revelado aos judeus e cristãos nas Escrituras. Embora não conseguisse muitos seguidores, atraiu a oposição dos governantes de Meca. “Não só Maomé atacava as crenças tradicionais como ameaçava os lucros que a cidade tirava da peregrinação anual feita à Caaba”, explica o professor Rogério Ribas. Enquanto o tio Abu Talib viveu, Maomé foi protegido da oposição dos coraixitas. Mas, em 619, com a sua morte, ele começou a correr riscos. É que o sucessor do tio na liderança do clã foi Abu Lahab — um declarado adversário do profeta.
As ameaças obrigaram Maomé a procurar outra cidade onde morar e recebeu um convite formal de mercadores de Medina para se instalar ali, cerca de 300 quilômetros ao norte de Meca. Maomé seguiu para lá no ano de 622, com cerca de trezentos adeptos. Essa migração (hijra, em árabe, ou hégira) de Meca para Medina marca uma virada de Maomé e uma revolução no Islã. A data foi adotada, corretamente, como o ponto de partida do calendário muçulmano. Do simples cidadão que era em Meca, Maomé tornou-se, em Medina, o chefe supremo da comunidade. Foi a partir daí também, que mudou o teor das revelações. Enquanto esteve em Meca, Maomé pregou a existência de um só deus e a ele submissão total (islam em árabe). Em Medina, as revelações assumiram caráter mais objetivo, com normas de organização social e política. Foram, concretamente, as regras básicas para a formação de um Estado muçulmano (o termo muçulmano vem do árabe muslim, que significa submisso).”A ida para Medina deu condições para que as propostas de Maomé deixassem de ter um caráter apenas religioso e passassem a ter um caráter político”, ensina o professor Ribas. “Maomé queria formar uma sociedade de poder, que lhe permitisse expandir a revelação. Os judeus de Medina perceberam o projeto político de Maomé e o que era uma questão religiosa passou a ser uma luta de poder.” O profeta terminou massacrando os judeus medinenses e iniciou também o djihad, a guerra santa de conquista de Meca, considerada a cidade sagrada do Islã. As caravanas que saiam ou se dirigiam a Meca eram assaltadas em nome de Alá. A lei do profeta, nesses casos, era simples e clara: quatro quintos do butim iam para a comunidade (a umma) e o outro quinto, para o profeta — que mais tarde será o Estado.
Após vários anos de lutas, na primavera de 628 Maomé sentiu-se suficientemente forte para atacar Meca. No caminho, porém, ele percebeu que a tentativa não daria certo e transformou a incursão numa peregrinação pacífica. Mas os coraixitas, temerosos, terminaram assinando um armistício de dez anos. O acordo, porém, não foi respeitado pelo profeta. Em 630, ele marchou sobre Meca com 10 mil homens e tomou a cidade sem enfrentar resistência. Maomé concedeu anistia a todos os inimigos, destruiu os ídolos da Caaba, respeitando a Pedra Negra. Em seguida, proclamou Meca a cidade santa do Islã. Estavam firmemente assentadas as bases do novo Estado teocrático.Nessa época, Maomé tinha 60 anos e viveria apenas mais dois. A essa altura, ele tinha um grande harém — iniciado depois da morte da mulher Kadidja. Segundo Aisha, sua mulher preferida, filha do amigo e sucessor Abu-Bekr, Maomé sempre dizia que havia três delícias no mundo: as belas mulheres, os bons perfumes e, naturalmente, as preces. Além das várias mulheres, o profeta não tinha luxos. Não admitia bebidas alcoólicas — proibidas aos muçulmanos —, não comia carne de porco e se alimentava quase sempre de mel, leite, pão e tâmaras. Em casa, era um marido exemplar: dividia escrupulosamente as noites entre as mulheres, fazia compras nos mercados, varria o chão e, muitas vezes, era flagrado remendando suas roupas, na entrada da casa. Em fins de maio de 632, ficou doente. Tinha febres e constantes dores de cabeça. Durante quinze dias, não saiu da cama. Em 4 de junho, mesmo doente levantou-se e foi à mesquita orar. Quando chegou, a oração do alvorecer já havia começado. O celebrante (imam) era seu sogro, Abu-Bekr. Ao perceber a presença de Maomé, ele recuou para que o profeta assumisse o seu posto. Mas Maomé suavemente empurrou-o à frente, mandando que continuasse a celebração. Era a designação do sucessor. De volta à casa, Maomé entrou em agonia e a 7 de junho morreu no colo de Aisha. O jovem órfão havia deixado uma vasta obra — não apenas uma nova religião, como também um livro de revelações que se transformou no guia do comportamento de milhões de pessoas. Mais ainda: Maomé havia criado uma vasta comunidade e um Estado árabe.
Para saber mais:
(SUPER número 5, ano 11)
Sob o governo do Corão
O islamismo é uma religião revelada e seus seguidores proclamam sua obediência a um único deus. A frase “não há outro Deus além de Alá e Maomé é o seu profeta” é a base de tudo. As revelações de Maomé são chamadas em árabe quran, ou seja, declamação, recitação. Daí o nome Corão ou Alcorão (Al Quran), o livro sagrado dos muçulmanos. Nele estão as regras que governam a vida de 840 milhões de pessoas em todo o mundo. O Corão é dividido em 114 suras, ou capítulos, de tamanhos variados. Cada sura, por sua vez, se subdivide em versículos num total de 6 211. Mas ao contrário dos outros livros sagrados — como a Bíblia dos cristãos ou a Torá dos judeus — o Corão não dispõe de nenhuma ordem, sequer cronológica. Sucessivas revelações, em circunstâncias e tempos diversos, formam um conjunto fragmentado. Mas esse desordenamento não impede que o livro seja a fonte primária e fundamental de todas as atividades do cotidiano dos muçulmanos.Desde pequena, a criança muçulmana começa a decorar o Corão. No dia-a-dia, o livro é recitado na porta das mesquitas e nas cinco orações diárias. É no Corão que os seguidores de Maomé vão buscar conselhos para as mais comezinhas questões,como a maneira de se vestir ou de receber um convidado em casa. Além do Corão, existem duas outras fontes de “revelação” feitas por Alá: a sunna ou tradição, que é o relato da vida, da palavra e das ações de Maomé. E os hadits, a narração oral ou escrita, dos feitos e ditos do profeta e que confirmam a sunna. Ao contrário de outras religiões que impõem uma série de obrigações aos seguidores, o Islã exige o cumprimento de apenas seis preceitos, que são conhecidos como “os pilares do Islã”: crer em um único deus, Alá; orar cinco vezes ao dia, com a cabeça voltada em direção a Meca; praticar a caridade: jejuar no Ramadã; orar em comum ao meio-dia da sexta-feira e fazer a peregrinação à cidade santa ao menos uma vez na vida.