Carlos Eduardo Lins da Silva, de Washington, e Ricardo Arnt
Era uma vez, em tempos imemoriais, uma tribo de mulheres guerreiras que mutilavam um dos seios para manejar o arco e a flecha e viviam sem homens – as temíveis amazonas. Os gregos foram os primeiros a falar delas, difundindo um mito que viajou para outras culturas e acabou batizando grande parte do Brasil como “a terra das amazonas”. É que espanhóis que exploraram a região, em 1542, juravam tê-las encontrado, pessoalmente, onde o Rio Jamundá desemboca no Amazonas, perto da atual fronteira entre os Estados do Amazonas e do Pará.
Ninguém, naturalmente, levava essa história a sério. Para os cientistas, nunca se colocou a hipótese de que um povo de mulheres guerreiras pudesse ter existido, sete séculos antes da era cristã, exatamente onde os gregos situavam as amazonas. Há seis meses, entretanto, um artigo na revista Archaelogy abalou esse ceticismo científico.
Perto da cidade de Pokrovka, onde a Rússia se encontra com o Cazaquistão, a arqueóloga americana Jeannine Davis-Kimball, do Centro de Estudos dos Nômades Euroasiáticos, da Universidade de Berkeley, na Califórnia, descobriu cerca de 100 túmulos do povo sármata. Eles viviam, no século VI antes de Cristo, nas estepes entre o Mar Negro e o Mar Cáspio – a Sarmátia, a terra das amazonas, segundo o historiador grego Heródoto (484-420 a.C.). O intrigante é que 15% das covas eram de mulheres, algumas de 13 ou 14 anos, enterradas com flechas de bronze, espadas e adagas. Os esqueletos tinham as pernas arqueadas, como as de quem passa boa parte de seus dias a cavalo. Havia várias sepulturas com homens e bebês juntos. E nenhuma criança enterrada com mulheres.
A descoberta está provocando sensação entre antropólogas e arqueólogas de inspiração feminista, como a própria Davis-Kimball. Ela não sabe, ainda, como explicar tudo o que encontrou e prefere uma interpretação prudente. “Provavelmente eram pastoras”, disse à SUPER. “Talvez carregassem armas para defender a si próprias, a seus animais e a seu clã, de ladrões ou inimigos”. Mas os dados que possui lhe autorizam a propor uma revisão da teoria antropológica sobre o predomínio do patriarcado na civilização. “No mínimo”, adverte, “no passado, os papéis sexuais nem sempre foram tão definidos quanto se costuma acreditar.”
Hábeis cavaleiras
Uma amazona sármata, reconstituída por computador
Há 2 600 anos
O esqueleto de uma das guerreiras, usando brincos e colar com adorno de ouro
A terra das estepes
A antiga Sarmátia ficava entre o Mar Negro e o Cáspio. Os túmulos foram encontrados perto da cidade de Pokrovka, na fronteira entre a Rússia e o Cazaquistão
Quando as mulheres não eram tão frágeis
“Por que iria uma tribo, há mais de 2 500 anos, retirar flechas de verdade dos homens para enterrá-las com as mulheres?”, pergunta Davis-Kimball. “Não tenho dúvida. Elas eram guerreiras. E andavam muito a cavalo.” Isso, entretanto, não quer dizer que fossem amazonas conforme o figurino grego. O certo é que seu papel na sociedade não era nada passivo.
Entre os corpos desenterrados, há até três sacerdotisas guerreiras, identificáveis pelos objetos dentro do túmulo: jóias de ouro, braceletes e colares, conchas, contas de pedra e vidro com valor religioso, espelhos de bronze e vasos cerimoniais para sacrifícios aos deuses, além de armas. “Elas tinham importante função social, como adivinhas e oráculos”, explica a arqueóloga.
Havia também vários bebês enterrados junto com homens. À primeira vista parecem sugerir que o cuidado com as crianças cabia ao sexo masculino. Mas isso é especulação, como a própria descobridora alerta: “Não posso explicar, por enquanto. Podiam ser homens de baixo status social que tomavam conta das crianças enquanto os pais e as mães estavam trabalhando. Podiam até ser homossexuais”.
Mitologia e história
No ano 450 a.C., quando Heródoto escreveu sobre as amazonas, a lenda já existia. Ela aparece em várias passagens da mitologia grega. Na Ilíada, de Homero (século VIII a.C.), que conta a Guerra de Tróia, as amazonas surgem aliadas aos troianos. Aquiles, o herói grego, vence a rainha guerreira Pentessiléia, enamorando-se dela no momento em que a mata. Uma autêntica tragédia grega. De acordo com a mitologia greco-romana, as guerreiras teriam nascido de um caso de amor entre o deus da guerra, Marte, e a ninfa Harmonia. O nono dos doze trabalhos de Hércules foi se apoderar do cinturão de Hipólita, outra rainha das amazonas.
A palavra amazona vem de mázos (seio) antecedida pelo prefixo alpha (a, em grego), que, aí, indica ausência. Quer dizer “sem seio”. Há versões do mito em que as mulheres mutilavam um dos seios para melhor manejar o arco e flecha. Davis-Kimball acha isso fantasia pura, porque não há representação artística na época (século VII antes de Cristo), ou mesmo posterior, que mostre as mulheres sem um seio: “A tradução para o termo também poderia ser ‘que não foi amamentado’. Poderiam ser guerreiras que não foram amamentadas”.
Heródoto viajou pelo Mar Negro e relatou no clássico História as informações que recolheu sobre as guerreiras. Segundo ele, uma expedição grega, em data não definida, teria vencido as amazonas na batalha de Termodonte e levado várias cativas, em barcos. Mas, chegando a alto-mar, as prisioneiras se rebelaram e desembarcaram na Cítia, na costa do Mar de Azov, atual Rússia. Os citas e as amazonas teriam se unido e emigrado para as estepes entre os rios Don e Volga, dando origem ao povo sauromata. “As mulheres sauromatas”, diz o historiador, “conservam seus antigos costumes: montam a cavalo e vão à caça. Acompanham os maridos na guerra, trajando as mesmas vestes que eles. Têm uma lei segundo a qual uma mulher não pode casar-se enquanto não matar um inimigo. Por isso, muitas morrem de velhice, solteiras.”
A chegada dos sármatas
Segundo Davis-Kimball, os sauromatas se espalharam por uma grande área. Por volta de 400 a.C., foram colonizados por um povo indo-europeu que veio da Ásia Central, os sármatas, com quem se misturaram. A maioria dos túmulos descobertos em Pokrovka são do primeiro período sármata. Está claro que, pelo menos no início de sua civilização, os sármatas treinavam as mulheres jovens em equitação e no manejo de armas.
Arqueólogos russos já haviam encontrado túmulos de mulheres com armas no Cazaquistão. Mas, por distração – ou por preconceito – , o fato não recebeu a merecida atenção. “Nossas escavações”, diz a arqueóloga americana, “mostram que as mulheres em Pokrovka, há 2 500 anos, detinham uma posição única na sociedade. Controlavam riquezas, realizavam rituais para suas famílias e clãs, andavam a cavalo, caçavam antílopes das estepes e pegavam em armas para se defender e aos seus.” Eram poderosas.
Antropologia feminista
Uma pastora do atual Cazaquistão, a cavalo, e a arqueóloga Jeannine Davis-Kimball
Panteão trágico
Detalhe de um painel romano do Museu Pio Clementino, no Vaticano, mostra, no centro, a rainha das amazonas, Pentessiléia, morrendo nos braços de Aquiles, na Guerra de Tróia
Afinal, existiu ou não matriarcado?
As descobertas de Davis-Kimball encantaram a ala feminista da Antropologia nos Estados Unidos. “A tese do patriarcado universal pode se revelar o mais consumado mito machista”, celebra a antropóloga Sarah Nelson, da Universidade de Denver. Mas pode ser cedo para se chegar a essa conclusão.
O regime em que o pai exerce a autoridade na família, o patriarcado, fundou a ordem das sociedades gregas e hebraicas e a própria civilização cristã ocidental. Do seu oposto, o matriarcado, o sistema onde supostamente a mulher exerceria a autoridade, não há exemplos na História. Só mitologias.
Há sim, muitos povos tribais em que os direitos de herança e de linhagem são transmitidos pela família da mulher – do tio materno para o filho de sua irmã, e não do pai para o filho mais velho –, como os trobriandeses da Melanésia, os ashantis de Gana e os kayapós no Brasil. Mas, mesmo nessas sociedades, o poder político continua exercido pelos homens.
Papéis diferenciados
A antropóloga Sherry Ortner, da Universidade de Columbia, explicou à SUPER que o domínio masculino se estabeleceu em função dos papéis diferenciados do homem e da muher na reprodução sexual. Como as mulheres são mais associadas à fertilidade e, portanto, à natureza, o poder patriarcal teria se desenvolvido “como parte do impulso social para controlar a ameaça que a natureza representa”. Dominar as mulheres era um prolongamento da dominação da natureza.
Davis-Kimball acredita que a Antropologia sobre o gênero e os papéis sexuais precisa avançar muito mais. Mas não acredita que sua descoberta na Rússia contribua para uma ressurreição do matraiarcado. “Até agora, a Arqueologia tem sido muito tímida no exame do papel da mulher nas sociedades passadas. Pode haver surpresas.” Como as amazonas sármatas.
No Brasil, o delírio do frei Gaspar de Carvajal
Dois mil anos depois da Sarmátia, no outro lado do mundo, os espanhóis liderados por Francisco Orellana teriam encontrado amazonas no Brasil, em 1542, na foz do Rio Jamundá. Os europeus desembarcados na América vinham com imaginação febril, incendida por muitos mitos. O suposto episódio acabou identificando toda a região.
Orellana e Gonzalo Pizarro (irmão do conquistador do Peru, Francisco Pizarro) partiram de Quito, com 150 espanhóis e 4 000 índios, em dezembro de 1541, para explorar a região além dos Andes. Separaram-se na confluência dos rios Coca e Napo, no Equador, e Orellana desceu a correnteza desse rio até cair no Amazonas, que navegou, até a foz, na Ilha de Marajó. Daí foi para a Venezuela. Levou oito meses para ir dos Andes ao Atlântico.
Mulheres sem homens
No dia 24 de junho de 1542, houve o encontro que o escriba da expedição, frei Gaspar de Carvajal, descreveu assim: “Dobrando uma ponta do rio vimos grandes aldeias. Era a terra das amazonas. Os espanhóis começaram a atirar nos indígenas que lutavam como bichos bravios. Soubemos que eram súditos das amazonas e que, conhecida a nossa vinda, foram pedir-lhes socorro, vindo dez ou doze. Combatiam como capitãs e lutavam tanto que os índios não ousavam fugir, pois elas os matavam a pauladas. São alvas e altas, com cabelo comprido. Andam nuas em pêlo, com arcos e flechas, fazendo tanta guerra como dez índios”.
Depois de matar várias, os espanhóis prenderam um índio que contou o que sabia. Aqui, o relato do frei delira: “As mulheres residiam ao norte. Não tinham maridos. Dividiam-se em setenta aldeias de pedra ligadas por estradas amplas, com cercas, e exigiam pedágio. Quando lhes vinha o desejo, faziam prisioneiros que libertavam depois da coabitação. Os meninos matavam e criavam as meninas para a guerra. Têm muito ouro e prata. As casas têm assoalho e os tetos são forrados de pinturas coloridas. Vestem lã finíssima do Peru”.
Faltaram só os cavalos. Nos séculos seguintes, muitos exploradores procuraram as amazonas que Orellana viu. Mas foi sempre em vão. Elas não existiam.
As provas materiais
Os túmulos das mulheres sármatas contêm adornos femininos e armas de guerra.
Vaso de cerâmica para sacrifícios religiosos
Pontas de flecha, de bronze
Dente de javali usado como adorno e amuleto
Brincos de pedra polida
Adaga de ferro
Pingente de ouro, com a forma de um leopardo-da-neve
Uma cultura diferente
Na sociedade sármata havia mulheres vaidosas e homens que cuidavam de crianças.
Juntos na morte
Esqueleto de homem e de bebê de 1 ano, enterrados juntos (o crânio da criança está no canto, à direita)
Divino e profano
Espelho de bronze de 2 500 anos e conchas fossilizadas do Mar Morto, usadas como amuleto
O primeiro mapa
Em 1550, oito anos depois da expedição de Orellana, este mapa do cartógrafo Jorges Reinal já identificava o “Rio Grande das Allmasonas”
Muitas lendas
Há muitas lendas sobre índias guerreiras no Brasil, mas a Antropologia não encontrou nenhuma. Em 1756, o capitão da fragata espanhola Solano, que patrulhava a fronteira do Brasil com a Venezuela, observou que as índias guipuinavi iam à guerra com o marido. E escreveu: “Essas mulheres, ou outras como elas, devem ser as amazonas que Orellana viu”