O homem do século
Com a perestroika e a glasnost - e uma boa dose de idealismo e paixão, Mikhail Gorbachev conduziu o surgimento de uma nova ordem mundial
Texto Celso Miranda
Um ex-ator que virou presidente americano. Uma vovó linha-dura que se tornou a dama de ferro da Europa. Um trabalhador polonês que juntou sindicato e solidariedade. Ou outro ex-ator, outro polonês, porém, coroado o papa mais popular da história. Em qual deles você apostaria seus últimos rublos para acabar com o comunismo na União Soviética e desarmar a Guerra Fria?
Se está difícil escolher entre Reagan, Margareth Thatcher, Lech Walesa ou Karol Wojtyla, todos anticomunistas ferrenhos, que tal arriscar num soviético convicto que, em 1985, chegou ao topo do poder em seu país (o que significa dizer que virou o sucessor direto do próprio Stálin). Pintou o azarão: Mikhail Sergueievitch Gorbachev.
O mais jovem secretário do Partido Comunista até então, Gorbachev, chegou lá representando uma turma incomodada com a corrupção da era Brejnev. Com o apoio de líderes competentes que mantinham a economia soviética funcionando e sabiam que sem uma mudança drástica ela iria para o brejo, ele conquistou o respaldo de políticos e militares para lançar, com slogans como “perestroika” (reestruturação) e “glasnost” (liberdade da informação), aquilo que acreditava ser a transformação do socialismo soviético (até hoje, há uma grande polêmica, se ele pretendia reformar o socialismo ou terminar com ele. Assunto, aliás, do qual se desvia nas raras entrevistas que concede).
Do outro lado, estava Ronald Reagan, eleito nos EUA, em 1980, cuja política externa visava apagar as humilhações no Vietnã, do governo Nixon e da ocupação da embaixada americana em Teerã, no Irã. Em seu primeiro mandato, Reagan não deu nenhuma pinta de que previsse o colapso soviético.
“Reagan queria que seu legado fosse livrar o mundo das armas nucleares, e não acabar com a Guerra Fria, que dirá vencê-la”, diz Elizabeth Matthews, professora da California State University. “O presidente acreditava na coexistência e que ela não se baseava num equilíbrio do terror nuclear.”
A guerra acabou quando os dois se encontraram e desistiram da corrida nuclear. Para o historiador britânico Eric Hobsbawm, foi mais fácil para o soviético que para americano dar o primeiro passo, pois, diferentemente de Washington, Moscou jamais encarou o conflito como uma cruzada, até porque não tinha a opinião pública no cangote. “Por isso, foi mais difícil para ele convencer o Ocidente de que falava sério. E, portanto, o mundo tem uma enorme dívida com Gorbachev, que não apenas tomou a iniciativa como conseguiu convencer o governo americano e levar a ideia adiante”, afirmou Hobsbawm, em A Era dos Extremos. Em 1986, em Reykjavik, na Islândia, e em Washington, no ano seguinte, militares, fanáticos e profissionais foram, enfim, enviados para casa. Reuniram-se para assinar os tratados que colocaram, na prática, fim aos 40 anos de Guerra Fria, Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev, com um idealismo que não pode ser subestimado.
Mil palavras valem mais que uma imagem
“Problemas políticos devem ser resolvidos somente de maneiras políticas e problemas humanos, somente de maneiras humanas.”
(7/12/1988, Nova York, EUA. Na 43ª Assembleia Geral da ONU, Gorbachev faz um de seus discursos mais famosos e que, para alguns, marca a data do fim da Guerra Fria ao surpreender a comunidade internacional anunciando drásticos cortes na presença militar soviética no Leste Europeu e na fronteira com a China.)
“O ano de 1990 representa o ‘turning point’. Marca o fim da divisão antinatural da Europa. A Alemanha foi reunificada. E nós começamos a derrubar o medo de uma confronto militar, político e ideológico.”
(21/12/1990, Oslo, Noruega, ao aceitar o Prêmio Nobel da Paz.)
“Eu estou deixando meu posto com apreensão, mas também com esperança, com fé em vocês, em suas escolhas e força de espírito. Nós somos os herdeiros de uma grande civilização, o renascimento em uma nova, moderna e digna vida agora depende de nós e de mais ninguém.”
(25/12/1991, Moscou, no discurso ao Parlamento Soviético, em que, oficialmente, renunciou ao cargo de presidente e dissolveu a URSS.)
“Eu era só um garoto. Meu pai estava saindo para lutar na 2a Guerra Mundial. Todos estávamos nos despedindo dele. Tudo bem emocionante, todo mundo chorando. Bem na hora de ele ir, meu pai me trouxe um pouco de sorvete. E me deu num copo de alumínio. Eu ainda me lembro daquele sorvete.”
(Revista Esquire, 10/9/2008.)