O lado feminino do Brasil colonial: a vida das mulheres no século XVI
Não era nada fácil ser mulher no século XVI, enfrentando os preconceitos e os tabus trazidos pelos colonizadores portugueses.
Quando os portugueses descobriram o Brasil, em 1500, conquistaram um mundo — milhões de quilômetros quadrados de terra fértil, um éden desconhecido de madeiras, frutas e raízes comestíveis, e um subsolo riquíssimo. Mas deram pouca atenção ao novo território, e quando resolveram colonizá-lo para valer, já em meados do século XVI, assustaram-se com o que viram. Os poucos brancos, negros e índios que aqui estavam haviam aprendido a viver longe da civilização, numa sociedade que parecia confusa aos olhos dos portugueses. Uma versão primordial do samba do crioulo doido, pode-se dizer.
Casamento, por exemplo, praticamente não havia. Pelo menos na forma como se entendia na Europa. Homens e mulheres viviam em concubinato, amaziados, ou sob diversas outras variantes da vida em comum. Ainda no século XVIII, o índice de concubinatos era altíssimo: alcançava 80% dos casais na Bahia, mais de 70% no Rio de Janeiro e em torno de 50% em São Paulo. Apenas entre as classes mais abastadas havia casamento convencional, que mantinha intacto o patrimônio da família e assegurava proteção às filhas após deixarem a casa paterna. Fora dessa minoria absoluta, ninguém casava mesmo.
E, nisso, as mulheres não só não tinham o aval da Igreja e do Estado, como não seguiam regras convencionais: trocavam de homem quando lhes aprazia e tinham filhos com quem achavam melhor. Elas certamente escolhiam um companheiro único, muitas vezes; mas ele freqüentemente partia atrás de trabalho, pouco tempo depois, deixando mulher e filhos. Estes, por sua vez, tinham muitas mães, isto é, não eram criados apenas pela mãe biológica. Ajudavam nessa tarefa comadres, tias, avós e vizinhas, numa espécie de maternidade informal e coletiva: todo mundo tomava conta de todo mundo.
As mulheres acostumaram-se, sem problema algum, a criar os próprios filhos e os de seu marido com outras mulheres, tanto quanto os filhos de outros homens com outras mulheres. “O que importava era a rede de solidariedade estabelecida entre a mulher e a sua prole”, explica a historiadora Mary Del Priore, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo. Estudiosa dos assuntos femininos do presente, Mary mostrou que a mulher brasileira tem nada menos de 300 anos — ou seja, os seus hábitos atuais e maneira de ser foram moldados, na verdade, a partir do século XVI.
Isso aconteceu justamente durante o conflito entre os colonizadores portugueses e a sociedade inicial do Brasil. Antes de mais nada, é preciso dizer que os primeiros brasileiros certamente tinham regras sociais, com deveres e direitos muito claros, ditados pela própria comunidade. E eram boas regras: ser boa mãe e mulher, por exemplo, incluía a obrigação de tomar conta das crianças de toda a comunidade. O problema é que os portugueses eram ignorantes, por assim dizer, do ponto de vista da antropologia. Não estavam acostumados e não compreendiam aquelas normas — e pretendiam impor os seus próprios padrões de conduta, em lugar dos que existiam no país.
Queriam “colocar a casa em ordem”, e logo perceberam que uma forma de fazer isso era instituir o casamento à européia. A partir daí, a Igreja e o Estado passaram a remodelar o papel da mulher naquela sociedade, tentando convencer a população das vantagens do casamento. Mas começaram instituindo proibições de todos os tipos, determinando o que era “certo” e o que era “errado” para uma “mulher direita”. Um recurso bem prático, usado então, eram as altas multas que o Estado cobrava pelos concubinatos, em contraposição ao baixo preço dos casamentos celebrados pela Igreja.
A campanha do “certo” e do “errado”, porém, era mais profunda. Basta ver que no Brasil de 1650 não existiam tabus como o da virgindade obrigatória até o casamento. Quebrado em tempos modernos, esse tabu ainda estava por nascer em 1600, e até o século XVIII era difícil achar alguém que se casasse sem antes ter tido relações sexuais. Mas o motivo era bem diferente do atual. É que, naquela época, ter filhos era muito importante. A mulher precisava provar ao homem que era fértil, engravidando antes do compromisso, uma regra consentida por toda a comunidade — inclusive pela Igreja, desde que tudo terminasse em casamento.
Vem daí, na verdade, a conhecida expressão “vá se queixar ao bispo”, porque quando o noivo fugia, deixando a donzela grávida, ou já com filhos, esta ia reclamar ao bispo, que então mandava alguém atrás do fujão. O casamento era obrigatório mesmo se a mulher não desse filhos ao homem, na tentativa pré-nupcial. Só que, então, conta Mary, vivia em separação de “cama e mesa”. Significava que o marido podia repudiar a mulher, com a qual já não teria relações sexuais, se não quisesse, ficando autorizado, pelo menos em princípio, a ter filhos com outra. Sua própria mulher, porém, estava obrigada a continuar fiel.
Esse tratamento desigual devia-se às idéias da época, segundo as quais a falta de filhos era problema exclusivo da mulher; a infecundidade jamais decorria do homem. Hoje, é claro, sabe-se que não é assim, mas no passado a ciência médica avalizava cabalmente a opinião errada, disseminada por toda a sociedade. E, com isso, a medicina ajudou a Igreja a incutir na mentalidade da mulher tabus como o da virgindade e outros. Também a literatura contribuiu para essa mudança radical de costumes, já que a Igreja popularizou seus conceitos de certo e errado por meio de folhetins, por exemplo — os quais, mais tarde, dariam origem à literatura de cordel.
Além disso, surgiram os “manuais de confessionário”, onde até os beijos eram qualificados. Havia beijos aceitáveis, intermediários e inaceitáveis pela mulher direita. O beijo “com sensação de seda”, que se dava no nariz, não era tão sério: purgava-se com cinco pais-nossos e cinco ave-marias, segundo os manuais da Igreja. Muito mais grave era o beijo com “sensação de veludo”, associado ao genital feminino, purgável de joelhos, após um rol muito maior de orações. Em resumo: foi preciso modificar milhares de regras. E, o que é pior, numa era de grande liberdade, em que os afetos e o namoro eram públicos, aconteciam nos quintais, nas redes, nas festas religiosas.
Então veio a Igreja dizendo que tudo isso era pecado, diz Mary. “Ela perseguiu o cantar, o dançar, tudo o que era vida, qualquer exercício da libido.” As relações sexuais, na visão dos teólogos, excluíam o prazer por ter uma função escatológica: isto é, serviam para a salvação da alma por trazer crianças ao mundo. Afirmavam que a única posição permitida era com o homem por cima, a mulher por baixo. Afinal, imaginavam, as mulheres “enlouqueciam” em cima dos homens. Alardeava-se também que a posição em que a mulher fica de quatro dava origem a crianças aleijadas.
A própria paixão era combatida porque, supostamente, “botava o casamento de ponta-cabeça”. Amor era um sentimento que se devotava exclusivamente a Deus; ao marido, a mulher devia mera obediência, reverência e temor. O marido, por sua vez, deveria sentir apenas piedade da esposa. Um casamento nesses moldes, sem excitação ou afeto, era considerado ideal. Indiretamente, então, reforçou-se o papel da prostituta na sociedade colonial. Ela já existia, é verdade, quando os portugueses voltaram para a colonização. No período posterior, porém, não havia situação intermediária: ou a mulher era “da casa” ou era “da rua”.
Ou era a “santa mãezinha” ou a “prostituta”, como classifica Mary, para quem essa duplicidade ainda existe. “O arquétipo dessas duas mulheres ainda é muito forte, na sociedade moderna.” De qualquer forma, já não é tão difícil fugir à pecha de mulher da rua, pois no passado nem ser casada resolvia: era preciso parecer casada, ou seja, vestir-se, falar e portar-se como tal. Nada de decotes ou panos diáfanos sobre os seios. Nada de mostrar os dedos do pé, muito eróticos. Nada de perfume ou maquilagem. Era vaidade condenável tanto sorrir demais e mostrar dentes bonitos, como sorrir de menos para não mostrar dentes ruins. Ficar à janela era coisa de “mulher melancólica”.
As prostitutas, por sua vez, foram afastadas do convívio com a comunidade. Antes viviam como as outras mulheres, trabalhando em casa, cuidando dos filhos e dos pais desvalidos. Depois, sofreram dura perseguição. Mas isso não impediu que fossem procuradas pelos homens em busca do prazer e do divertimento vivamente desaconselhados dentro do lar. As prostitutas dançavam, cantavam, vestiam roupas provocantes e, é claro, tinham relações sexuais com a liberdade de sempre. As celibatárias também não eram aceitas. Seu maior pecado era não terem filhos, que o Estado e a Igreja incentivavam devido à necessidade de braços para a lavoura.
Elas se enquadravam em duas categorias. À primeira pertenciam as luxuriosas, que faziam tanto sexo que não tinham tempo para gerar filhos. À segunda, as melancólicas, para as quais “tudo era tormento”, como diz um documento da época. O texto acrescentava que essas mulheres degeneravam num furor amoroso, que “as faz entregar-se a toda sorte de indecências, tanto em seus atos como em suas palavras” Os castigos recomendados iam de banhos frios à ingestão de ácidos, ou qualquer outra coisa que, no entender da Igreja, pudesse acalmar o furor. Em casos mais graves, permitia-se até a masturbação para evitar o pior: que a celibatária buscasse sexo fora do casamento.
Dito tudo isso, no entanto, seria errado concluir que esse novo modo de vida tenha sido imposto sem que a mulher resistisse como podia. Na verdade, ela entrincheirou-se no próprio lar — ao qual, em decorrência da nova “ordem”, estava de certa maneira presa. Aí, foi adquirindo conhecimentos muito específicos: sobre doenças, ervas curativas, o parto, o aborto e, enfim, sobre o seu próprio corpo. Não admira que isso lhe tenha valido, muitas vezes, a qualificação de “feiticeira” ou “bruxa”, pois esses conhecimentos contrapunham-se aos dos médicos, em particular, e aos dos homens, em geral. Mesmo porque, algumas das assim chamadas bruxarias eram poções para conquistar os homens, fossem amantes desejados, ou maridos pouco fiéis. E tanto mais atemorizantes porque se empregavam os mais terríveis ingredientes, como pêlos púbicos, suores, sangue menstrual, líquidos vaginais e assim por diante. A disputa com os médicos era menos direta, talvez, mas nem por isso menos intensa.
A popular figura da parteira fortaleceu-se, então, conferindo a essas mulheres respeito e poder num momento em que o parto era fundamental, pois era importante povoar a nação. Nesse campo, as parteiras concorriam com os médicos, não raro vencendo as pelejas. Ao longo dos séculos, tudo mudou, e aquela sociedade do passado, de uma forma ou de outra, não voltaria a existir. Mas o futuro não foi imposto, apenas: foi construído dentro do conflito e, pelo menos em parte, o tiro saiu pela culatra — de claustro para as “megeras domadas”, o lar transformou-se em território dominado pela mulher, quartel-general de onde ela saiu, três séculos depois, para assumir novos espaços na sociedade.
Para saber mais:
Sexos opostos
(SUPER número 9, ano 2)
Os verdadeiros segredos do sexo
(SUPER número 3, ano 4)
Anos rebeldes
(SUPER número 11, ano 6)
Os sexos se confundem
(SUPER número 7, ano 7)
Mergulho no passado
“Analisando toda a história desta mulher colonial, não podemos ver a brasileira como vítima – nós nunca fomos vítimas”, afirma com entusiasmo Mary Del Priore. Ela sabe do que está falando. Aos 42 anos, divorciada, mãe de dois meninos e uma menina, Mary é professora e pesquisadora da USP, dá aulas regulares como convidade na Universidade de Sorbonne, em Paris, e seu trabalho, hoje, tornou-se referência importante para o movimento feminino no Brasil. Isso porque mergulhou como ninguém na história da mulher no Brasil-Colônia.
Conseguiu, assim, levantar dados para provar, entre outras coisas, que a divisão dos papéis femininos começou naquele período. “Até o final do século XVII, a mulher exerceu todos os papéis simultaneamente. Hoje ela se sente dividida, cheia de culpas e medos de ser a mãe, a esposa, a profissional, a amante.” Entender por que se encontram nessa situação, ajudaria as mulheres a assumirem novas posturas, voltando a ser inteiras, acredita a historiadora.