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O mestre-cervejeiro escravo de Thomas Jefferson

A fazenda de um dos mais importantes presidentes dos EUA era famosa pela cerveja artesanal – e foi ninho de relações abusivas do político.

Por Alexandre Carvalho
Atualizado em 16 jan 2022, 13h08 - Publicado em 15 jan 2022, 17h00

Abril de 1821. Então senador dos Estados Unidos, James Barbour envia uma carta ao já ex-presidente Thomas Jefferson. Mas a mensagem nada tem a ver com política. “Me lembro de, anos atrás, ter bebido uma cerveja em Monticello e entendi que era produzida aí mesmo. Você me faria um grande favor fornecendo uma cópia da receita, assim que lhe for conveniente.”

Monticello era a impressionante fazenda de Jefferson, de 20 quilômetros quadrados, no Estado da Virgínia, onde seus muitos escravos cultivavam tabaco e fabricavam pregos. Além disso, Barbour estava certo: era nessa propriedade que cervejas artesanais eram produzidas – tão saborosas que amigos e outros políticos viviam pedindo receitas ao dono do lugar. 

Graças à pesquisa do americano Travis Rupp, antropólogo e “arqueólogo de cerveja”, conseguimos, aqui no século 21, saber como era uma das bebidas que tanto impressionaram as visitas do presidente. Travis reproduziu uma cerveja de 1822, feita em Monticello. Inspirada nos pães de caqui, populares na época, a cerveja levava caqui, malte de trigo, farelo, lúpulo e levedura ingleses.

Conhecedor de bebidas, Thomas Jefferson escreveu muito sobre cerveja e tinha livros europeus a respeito do assunto. Era tão entusiasta que construiu uma cervejaria na fazenda. Mas não era dele a mente por trás desse néctar tão elogiado. O político tinha um mestre-cervejeiro talentoso, o escravo de nome Peter Hemings, um criado “quase da família”: era filho bastardo do sogro de Jefferson com uma negra escravizada.

O paradoxo do presidente

Principal autor da Declaração de Independência dos EUA, considerado um dos “Pais Fundadores” na nação, Thomas Jefferson foi um dos presidentes mais notáveis da história americana. Tinha uma visão de mundo à frente do seu tempo, apoiava a separação entre Igreja e Estado, dobrou o tamanho do país com uma política expansionista e ainda era um polímata: tinha habilidades como arquiteto, arqueólogo, paleontólogo e músico. 

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Numa recepção para 49 vencedores do Prêmio Nobel, o então presidente John Kennedy disse: “Acredito que esta é a mais extraordinária reunião de talento e conhecimento humano que já foi reunida na Casa Branca – com a possível exceção de quando Thomas Jefferson jantava aqui sozinho”.

Quando o assunto era escravidão, porém, esse político dos séculos 18 e 19 não tinha nada de iluminista. Pelo contrário, sua família tinha um longo histórico de abuso de escravas. Análises de DNA revelaram que o presidente manteve, por muitos anos, relações sexuais com Sally Hemings, negra de pele clara (resultado de outros estupros de negras da família por seus proprietários brancos), que era… irmã de seu mestre-cervejeiro. Peter seria cunhado de Thomas Jefferson se o político tivesse casado com sua amante – algo que, na época, era inconcebível. Mas foi tio de seis filhos de Sally com o político.

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O status de “quase da família” rendia alguns privilégios aos Hemings em comparação com os demais escravos da fazenda. Tinham trabalhos domésticos, enquanto outros perdiam a saúde na lavoura. Um irmão mais velho de Peter, James Hemings, foi chef de cozinha de Jefferson quando ele ainda nem era presidente. O político até o levou para a Europa, de modo que conhecesse de perto a fina gastronomia francesa. James era tão bom nas panelas que Thomas Jefferson, receoso de perder suas iguarias caso algo acontecesse ao escravo, fez um acordo com ele: daria liberdade ao homem se ele transmitisse seus conhecimentos ao irmão Peter, que trabalhava como alfaiate do então futuro presidente. 

E assim foi: Peter Hemings absorveu toda a expertise do irmão mais velho e, quando James ganhou sua alforria em 1796, assumiu com desenvoltura a cozinha dos Jefferson. Manteve o cargo durante todo o mandato presidencial de seu patrão (1801–1809) até que, em 1813, aprendeu a arte de fazer cerveja com um profissional treinado na Inglaterra. Tornou-se, então, o primeiro mestre-cervejeiro escravo dos EUA – criando bebidas exclusivamente para o ex-presidente, sua família e visitantes da fazenda. 

Com a morte de Thomas Jefferson, em 1826, Peter Hemings foi comprado por parentes de seu “cunhado” importante, que lhe deram alforria, quando esse homem de múltiplos talentos estava na casa dos 50 anos. A partir daí, o ex-escravo, chef e cervejeiro passou o resto dos seus dias trabalhando (agora sendo pago para isso) como alfaiate em Charlottesville – a mesma cidade da Virginia onde, em 2017, supremacistas brancos entraram em confronto com grupos antirracismo (quando o então presidente Donald Trump se recusou a tomar partido contra os racistas).

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