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O primeiro avião do futuro

Esqueça o 14 Bis. A aeronave mais influente da história é outra obra de Santos Dumont: o Demoiselle, que popularizou a aviação no mundo todo.

Por Salvador Nogueira
Atualizado em 31 out 2016, 18h25 - Publicado em 31 out 2006, 22h00

O 14 Bis fez seus primeiros vôos no final de 1906. Ok. Mas talvez o Brasil tenha comemorado o centenário errado. É que os aviões modernos talvez não tenham nascido nem naquele ano nem em 1903, quando o Flyer, dos irmãos Wright decolou no interior dos EUA. Mas, sim, em 1907, com a segunda aeronave bem-sucedida de Alberto Santos Dumont: o Demoiselle.

“Esse aparelho, o Nº 19 do brasileiro, representou uma mudança radical na forma dos aviões”, diz o físico Henrique Lins de Barros, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro, e especialista no assunto. Uma mudança que, cedo ou tarde, iria parar em todos os outros aviões, inclusive nos dos irmãos Wright.

A chave para isso foi uma iniciativa audaz de Dumont: colocar o “rabo” do avião no devido lugar, a parte de trás. O que vai ali são aquelas duas asinhas menores, que formam uma peça chamada leme profundor – uma das partes responsáveis por levantar e baixar o avião durante o vôo. E a tradição de colocá-la no “lugar errado” (a parte da frente) vinha desde o fim do século 19. Tudo por razões de segurança. Depois que o construtor de planadores alemão Otto Lilienthal morreu em um de seus inventos, em 1896, seus seguidores decidiram manter o leme à frente. Isso porque Lilienthal tinha sido vítima de um estol (do inglês stall, fenômeno em que o aeroplano aponta para cima, perde sustentação e cai de bunda). Para evitar essas empinadas, todos os inventores da época acharam crucial deixar esse leme na parte da frente.

Só tem um problema: essa configuração deixa a máquina bem mais instável no ar – o piloto precisa estar sempre atento aos controles para mantê-la em vôo, do mesmo jeito que um ciclista não pode largar o guidão. Convenhamos, não é a melhor coisa do mundo num avião, que cobra caro por qualquer falha humana.

Por isso, os pioneiros acharam melhor não arriscar. E foi com a parte “de trás” colocada na frente que os irmãos Wright realizaram, em Kitty Hawk, Carolina do Norte (EUA), os primeiros vôos motorizados da história. Os outros aspirantes a aviador usaram sistemas parecidos, inclusive Santos Dumont. O 14 Bis, por exemplo: tem aquele bico enorme na ponta justamente para abrigar o leme. Graças a isso, aliás, o primeiro avião de Dumont não costuma ser chamado de 14 Bis em lugar nenhum fora do Brasil. Lá fora, conhecem a aeronave pelo apelido: Canard (“pato”, em francês).

Só fracasso

Com seu Pato, Dumont percorreu 60 metros no ar em 23 de outubro de 1906. E abocanhou um prêmio de 3 mil francos (R$ 30 mil em dinheiro de hoje), que ofereciam para o primeiro que voasse por mais de 25 metros. Logo depois, em 12 de novembro, faria os primeiros vôos reconhecidos pela Federação Aeronáutica Internacional. Dessa vez, estabeleceu a marca de 220 metros como recorde.

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Mas o 14 Bis não era exatamente prático: voava a apenas 6 metros de altitude e só alcançava 40 km/h. Ele não tinha mais para onde evoluir com aquele desenho. E Santos Dumont logo passou a desenvolver novos modelos, bem diferentes – e agora incluindo o inovador leme traseiro. Especialistas da época farejavam que ele estava na trilha certa. Escreveu a revista francesa L’Aérophile, em fevereiro de 1907: “Sob o ponto de vista da estabilidade, o senhor Dumont fez uma volta completa, colocando o que estava atrás na frente e vice-versa. Isso é lógico, ele se conforma à natureza.” No entanto, ainda faltava aprender como decolar direito com essa configuração. E o sucessor do 14 Bis, o Nº 15, não conseguiu levantar vôo.

Frustrado, Alberto fez o Nº 16, um misto de balão e aeroplano. E mais uma vez não conseguiu subir. O Nº 17 seria uma variação do Nº 15 com motor maior e um trem de pouso mais elaborado. Também não saiu do chão. E eis que então o inventor brasileiro vai buscar inspiração de um lugar inesperado: a água. O aparelho Nº 18 de Alberto era um barco de alta velocidade, tipo um ancestral dos offshore. Ao testar a coisa, que tinha hélices fora d’água e lemes submersos, ele teve uma luz: deduziu a aerodinâmica que faltava para que seu novo avião decolasse. “É engraçado que Dumont tenha encontrado uma solução justamente quando não estava fazendo um aeroplano, mas foi exatamente o que ocorreu”, diz Lins de Barros. Nascia então o Demoiselle.

A revolução da libélula

O Nº 19 foi apresentado ao mundo em novembro de 1907 – só um ano depois do 14 Bis. Por sua aparência e leveza, a aeronave ganhou o apelido de Demoiselle, palavra francesa que pode ser traduzida como “senhorita” ou “libélula”, dependendo do contexto. No caso, o nome parecia apropriado nos dois sentidos. Com leveza e elegância nunca antes vistas num avião, merecia o “senhorita” – pesava uns 50 quilos, contra 240 do 14 Bis. E sua aparência no ar lembrava mesmo a de uma libélula.

Tudo ali era mais suave. Até o motor. Enquanto o Pato usava um motor de 8 cilindros e 50 cavalos, o Demoiselle vinha com um pequenininho, com 2 cilindros e metade da potência. Só que o projeto ainda tinha problemas. O motor se mostrou fraco e a estrutura, capenga. A fuselagem, por exemplo, não passava de um tronco de bambu ligando o assento do piloto à cauda. O vôo ainda era instável. E o máximo que Dumont conseguiu com o Demoiselle em 1907 foi um vôo de 200 metros – menos do que havia obtido com o 14 Bis. Talvez por isso mesmo as qualidades de seu invento tenham demorado a contagiar os outros inventores da época.

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Mas chegaria a hora do Demoiselle. Primeiro, Dumont aumentou a envergadura das asas, para que o avião se sustentasse no ar com mais facilidade. Depois, reforçou o corpo da senhorita com uma cauda mais firme, em forma de triângulo. Para arrematar, trocou o motor por um de 30 cavalos.

Pronto. Com o banho de loja, o Demoiselle (agora rebatizado como Nº 20) saiu da garagem em 1909 e mostrou a que veio. Confiante, Dumont apostou com um amigo que conseguiria voar os 8 quilômetros que separavam Saint Cyr e Buc, dois campos de pouso nos arredores de Paris. Ganhou. E ainda fez o trajeto em apenas 5 minutos, mostrando que seu novo avião tinha velocidade média de quase 100 km/h. Além de veloz, o avião com o leme no lugar certo era ágil. Tanto que Dumont começou a usar o Demoiselle para visitar os amigos – os jardins das mansões deles serviam de pista. Mas fazer um avião capaz de voar quilômetros a fio não foi pioneirismo de Dumont. Um ano antes, os Wright tinham levado a versão mais nova do Flyer para demonstrações na França. Eles passaram 5 anos na surdina para que ninguém copiasse sua idéias. E, quando finalmente foram a público na Europa, deixaram todo mundo de queixo caído: Wilbur Wright voou por assombrosos 124 quilômetros sem escalas.

Os ianques decidiram mostrar sua força por um motivo pragmático: empurrar seus aviões para as Forças Armadas dos EUA. Conseguiram. Ao voltar para casa, em 1909, receberam o equivalente a R$ 1,3 milhão (US$ 30 mil da época) do governo americano por um de seus Flyers. E a máquina virou a primeira aeronave militar da história. Já Dumont, para quem dinheiro não era problema (nem solução), tinha uma postura idealista: sonhava em transformar o Demoiselle num meio de transporte popular, no esquema “uma aeronave em cada garagem”. Se alguém quisesse construir um por conta própria, era só pedir as plantas do projeto, que ele dava. “É meu presente para a humanidade”, disse o brasileiro.

Campeão de vendas

E tudo isso num momento em que a aviação se transformava num mercado para valer. O interesse por aeronaves cresceu principalmente depois de 25 de julho de 1909, quando o aviador francês Louis Blériot, discípulo de Dumont, cruzou os 35 quilômetros do canal da Mancha em sua aeronave – que era parecida com o Demoiselle, diga-se.

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A carga simbólica do feito turbinou as vendas de aeroplanos. Diante disso, amigos insistiam que Alberto patenteasse a tecnologia da libélula de uma vez. Mas ele batia o pé, como descreve o jornalista americano Paul Hoffman, em seu livro As Asas da Loucura, biografia mais recente do aviador: “Dumont preferia morrer num cortiço do que cobrar alguém pelo privilégio de copiar sua invenção”. Aí a montadora de carros Clement-Bayard resolveu aproveitar o privilégio. Ainda em 1909, ela passou a fabricar o Demoiselle em massa, vendendo cada um pela bagatela de 7 500 francos (R$ 75 mil de hoje), ou um terço de qualquer outro avião daqueles tempos. E as vendas foram muito bem, obrigado: 300 unidades. Como Dumont dizia que era possível fazer um Demoiselle com 5 mil francos (R$ 50 mil), dá para calcular os lucros que a fábrica francesa teve com o modelo: o equivalente a R$ 7,5 milhões.

E a coisa não parou por aí. O fervor do Demoiselle logo tomaria de assalto a terra dos irmãos Wright. Em 1910, a revista Popular Mechanics publicou as plantas do projeto nos EUA, e vários fabricantes passaram a construir versões do aparelho. “Milhares de pessoas nos EUA estão intensamente interessadas no assunto do vôo aéreo, mas até o momento nada de natureza tangível foi apresentado de forma a permitir que se comece a trabalhar com uma perspectiva razoável de sucesso. É com grande satisfação que tornamos acessíveis os desenhos de trabalho do maravilhoso aeroplano inventado pelo senhor Santos Dumont”, escreveu o editor da publicação. “Ele é melhor que qualquer outro jamais construído para os que quiserem obter resultados com um custo baixo e o mínimo de experiência.”

De forma discreta, até os irmãos Wright endossaram os elogios às inovações do Demoiselle, quando, em 1910, apresentaram um novo modelo de aeroplano. Era o Wright Flyer Model B, o primeiro criado pela dupla com o leme profundor lá atrás, como sugeriu Dumont.

Ah, claro: o aviãozinho do nosso amigo Alberto continua firme no mercado. E olha que a cara da libélula nem mudou muito nesses 99 anos. Só o nome. Hoje ele se chama ultraleve.

 

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O homem do dirigível

Santos Dumont entrou para a história por causa de seus aviões, claro, mas no início do século 20 ele era uma das maiores celebridades científicas no mundo por outro motivo: seus dirigíveis. Nascido em Minas Gerais, em 1873, e filho de cafeicultores ricos, ele estudou na Inglaterra e na França, mas jamais chegou a ir a uma faculdade. Quando foi morar em Paris, decidiu realizar um vôo de balão, sonho de menino. Subiu em 1898 e resolveu que, dali por diante, se dedicaria a construir e projetar seus próprios balões. Depois que dominou a técnica, decidiu partir para algo mais complexo: os balões dirigíveis. E com seu aparelho Nº 6 Dumont criaria o primeiro dirigível prático da história, coisa que lhe rendeu o maior prêmio de sua vida – 100 mil francos (R$ 1 milhão), por circunvagar a Torre Eiffel em 1901. Seus dirigíveis lhe compraram a fama. Ele foi recebido na Casa Branca e trocou correspondência com inventores como o americano Thomas Edison. O reconhecimento era tal que, quando os Wright anunciaram seu vôo, em 1903, o jornal Dayton Daily News cravou: “Rapazes de Dayton imitam o grande Santos Dumont”. Na seqüência, partiu para os aviões. Mas uma queda com o Demoiselle e um diagnóstico de esclerose múltipla – ele tinha desenvolvido problemas de visão e vertigens – o aposentaram em 1910. Deprimido com a doença, passou a viver entre suas propriedades no Brasil e casas de repouso na Europa. Em 23 de julho de 1932 ele estava num hotel no Guarujá (litoral paulista). Foi lá que um sobrinho o encontrou pendurado na porta do banheiro. Alberto Santos Dumont tinha se enforcado.

Dumont e os irmãos Wright voam juntos pela primeira vez

Após 100 anos de rixas, um espetáculo. Finalmente voaram juntos, lado a lado, uma réplica de um aeroplano de Santos Dumont e uma de um avião dos Wright. Foi no dia 30 de setembro deste ano, em Dayton, Ohio, cidade natal dos irmãos Wright. A escolha dos modelos também não poderia ter sido melhor. Do lado tupiniquim, um Demoiselle, o mais influente dos aviões do inventor brasileiro. Do lado ianque, um Flyer Model B, primeiro avião dos Wright com infra-estrutura moderna, por decolar sobre rodas e ter asas auxiliares na parte de trás. O episódio aconteceu no Aeroporto Irmãos Wright, de Dayton, bancado pelo Instituto Arruda Botelho, uma ong voltada à preservação da cultura que construiu a réplica do Demoiselle, e da Heritage Foundation, comandada por Amanda Wright Lane, sobrinha-bisneta de Wilbur e Orville Wright. Claro que os americanos não estão dispostos a largar o osso – o primeiro avião, para eles, é indiscutivelmente o Flyer de 1903 dos irmãos Wright. Entretanto, até mesmo a família da dupla de inventores ianques admite que existe mais que 1, 2 ou 3 “pais da aviação”. “Não há como questionar certas datas e eventos”, diz Lane. “Mas eu acredito que há espaço para mais de um pioneiro, no sentido de que vários homens contribuíram para a evolução da ciência aeronáutica naqueles primeiros anos.”

Demoiselle Reloaded

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Por dentro da réplica

Fusquinha

Para simular o propulsor antigo, de 30 cv, usaram metade de um motor de Fusca. Já os freios são um luxo moderno: no Demoiselle original, o piloto tinha que usar luvas bem grossas e parar as rodas à unha.

Cockpit

No 14 Bis, o piloto ia de pé num cesto de balão. No Flyer, dos irmãos Wright, deitado. Já no Demoiselle a posição é a mesma dos ultraleves de hoje, com o piloto encaixado na estrutura do avião.

 

Para saber mais

Santos Dumont e a Invenção do Vôo – Henrique Lins de Barros, Jorge Zahar, 2004

Asas da Loucura – Paul Hoffman, Objetiva, 2004

The Wright Brothers Legacy – Walt Burton, Harry N. Abrams, EUA, 2004

 

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