O que realmente aconteceu em Tróia?
A Guerra de Tróia não foi travada por deuses e semideuses,como diz a lenda. Mas, embora não tenha passado de um combateduro entre homens que sangravam e morriam, pode ter significadoa destruição de um mundo e o nascimento de outro
Reinaldo José Lopes
Na imaginação dos gregos, o destino do mundo foi decidido diante das muralhas de Tróia. Até os deuses desceram do Olimpo e derramaram seu sangue na tentativa de defender ou arrasar a cidadela do rei Príamo. Como nós fazemos hoje com o nascimento de Cristo, a história humana passou a ser medida em anos antes e depois da Guerra de Tróia. Aquiles, Heitor, Ulisses, Enéias viraram a medida do que é ser um herói, os nomes que toda criança aprendia a admirar e imitar.
Claro, não há a menor garantia de que esses sujeitos tenham existido, muito menos a linda Helena, o sedutor Páris ou o marido traído Menelau. No entanto, cada vez mais fica claro que algo grande realmente aconteceu naquela esquina da
Europa com a Ásia, onde hoje está a Turquia – talvez o estopim de uma explosão que pôs fim ao mundo como os povos antigos o conheceram por milênios e deu origem ao mundo no qual vivemos. Uns 50 anos depois que Tróia caiu, praticamente todas as grandes cidades na orla do Mediterrâneo oriental ou tinham virado cinza ou passavam pelo pior aperto de sua história. A confusão encerrou de vez a longa Idade do Bronze e o poderio dos impérios da época. Há quem diga que a catástrofe tenha sido mais marcante que a queda de Roma. O que sobrou no lugar continha, entre os escombros, as sementes das idéias que formaram nossa civilização – a filosofia grega, o judaísmo e o cristianismo, a noção de democracia, a valorização do indivíduo. Enfim, a cultura ocidental.
A lenda
Reconstruir a guerra depois de 3 200 anos (ela deve ter acontecido no fim do século 13 a.C.) é tarefa para semideuses. Melhor avisar logo: não se sabe o que aconteceu lá. A Ilíada de Homero, um dos grandes livros da história, no qual foi baseada a superprodução Tróia, que estréia no cinema este mês, não ajuda muito. Homero, se é que existiu (veja no quadro ao fim da página), nem viu o conflito. Ele teria composto a Ilíada e a Odisséia (outro épico, que narra a jornada de volta de um soldado após a guerra) mais de 400 anos depois dos combates, baseando-se em relatos orais. Ou seja, a Ilíada não é um documento histórico confiável – além de se limitar a 40 ou 50 dias de um conflito de dez anos.
Para benefício de quem não está com pique para encarar os milhares de versos da Ilíada, aqui vai um resumo. Tudo começa no casamento do herói Peleu com a deusa Tétis, ao qual compareceram em peso as divindades do Olimpo. Éris, a deusa da discórdia, foi à festa com uma fruta de ouro que levava a inscrição “à mais bela”. Instaurou-se a ciumeira entre as três principais deusas: Afrodite (do amor), Atena (da sabedoria e da guerra) e Hera (a mulher do chefão Zeus). Todas queriam a fruta e acabaram escolhendo como juiz um mortal, o pastor troiano Alexandre, que tinha fama de honesto.
O trio tentou subornar o coitado. Hera lhe ofereceu o domínio sobre a Ásia, Atena prometeu sabedoria e Afrodite, o amor da mulher mais bela do mundo. Alexandre, que não era bobo, escolheu esta última e conquistou o coração da sensacional Helena. Ganhou também o ódio das duas poderosas preteridas, que infernizariam sua vida. Outro problema: Helena era casada. E casada com um rei, Menelau, de Esparta. Alexandre, que descobriu ser o filho desaparecido de Príamo, rei de Tróia, e adotou o nome de Páris, deu um jeito de visitar Menelau e, quando o marido saiu do palácio por uns dias, convenceu Helena a fugir com ele. Acontece que Helena tinha sido a mulher mais disputada da Grécia. Antes que seu pai decidisse com qual homem ela iria casar, todos os nobres que a cortejavam juraram proteger a honra dela e de seu marido, fosse ele quem fosse. Menelau e seu irmão, o poderoso Agamêmnon, rei de Micenas, inflamados pelas deusas ciumentas, se aproveitaram do juramento para arrastar os gregos para a briga. Todos os gregos.
Assim começou a guerra. Depois de uma década de cerco e da morte de muitos heróis, Tróia parecia inexpugnável. Aí os gregos deixaram um cavalo de madeira às portas da cidade, que os troianos aceitaram como uma proposta de paz. Dentro do cavalo estavam os melhores guerreiros gregos, que abriram os portões da cidade. Os troianos foram massacrados.
Óbvio que a história não é 100% verdadeira. Ainda assim, há alguma verdade nela. Parece que o autor que compôs o texto estava em contato com tradições orais que vinham desde a época da guerra. O poema menciona capacetes feitos com presas de javali e escudos com a forma do número 8. A arqueologia mostrou que os gregos do tempo da guerra realmente usavam esses instrumentos, já abandonados na época de Homero. Mas a Ilíada mistura esses acertos com referências à cremação e ao uso do ferro, inexistentes entre os gregos de 1200 a.C.
De quebra, apesar de três grandes escavações no local onde ficava Tróia, uma das quais em curso enquanto você lê este texto, só foi achado na cidade um mísero documento – e não é dos mais esclarecedores, já que a inscrição se limita a dois nomes de pessoa. O jeito é comer pelas beiradas, usando cada caco de informação confiável das regiões vizinhas para entender o mundo em que Tróia se encaixava.
O mundo
Dá para definir o período anterior à Guerra de Tróia com uma palavra: “estável”. Vigorava a Idade do Bronze, período cujo início se confunde com o aparecimento das civilizações urbanas e letradas do Oriente Médio, uns 3 500 anos antes de Cristo. Alguns impérios dividiam entre si o controle do mundo civilizado. No lugar onde estava Tróia, os donos do poder eram os hititas. Bem mais ao sul, quem mandava eram os faraós egípcios. Entre hititas e egípcios, onde hoje é a Palestina, havia, para variar, uma zona de litígio, disputada pelos dois impérios (naquela época, ela devia obrigações aos faraós). A oeste, pessoas que falavam uma forma arcaica de grego viviam sob o domínio de alguns reinos, sendo o maior o da cidade de Micenas, perto de Esparta – daí o fato de esses gregos anteriores à Grécia serem conhecidos por “micênicos”. A leste estava a Mesopotâmia, disputada entre assírios e babilônios.
Esses eram os Grandes Reinos. E todos eles tinham algumas coisas em comum. Para começar, eram privilégio para bem poucos. Soberanos inatingíveis viviam em meio ao luxo, protegidos por um punhado de guerreiros de elite que lutavam sobre carros de guerra – uma versão antiquada das bigas romanas. Esses senhores dependiam de uma casta burocrática, a dos escribas, os únicos capazes de decifrar os complicados sistemas de escrita da época. Os escribas controlavam toda a contabilidade dos reinos e regiam o comércio de trigo, azeite, cerâmica e, claro, dos metais – cobre e estanho, usados para fazer o bronze das armas, que acabou dando nome à era. Fora das capitais suntuosas e de seus palácios, a população miserável se espalhava por territórios mal demarcados. Para as elites, esses pobres quase não eram considerados gente. Para os pobres, a elite tinha um quê de divina.
No que dependesse da vontade dos governantes, essa situação podia durar para sempre. No entanto, à medida que o século 13 a.C. se aproximava do fim, a destruição se espalhou pelo Oriente Médio. Tróia foi só a primeira a cair. “Todos os sítios importantes que conhecemos na Anatólia sofreram algum grau de destruição nessa época”, afirma o historiador americano Robert Drews, pesquisador da Universidade Vanderbilt e autor de The End of the Bronze Age (“O Fim da Idade do Bronze”, sem versão em português).
Mas a destruição não se limitou à Turquia. Os palácios de Tebas, Micenas, Pilos, Tirinto e Iolcos, supostamente os vencedores da Guerra de Tróia, queimaram em seguida. Idem para Canaã, vassala do Egito, onde depois surgiria o reino de Israel. Os próprios faraós escaparam por um triz várias vezes e nunca se recuperaram do baque. Era o fim da Idade do Bronze e o começo da Idade do Ferro. Não foi só o metal que mudou – mudou tudo. Se a Idade do Bronze foi a dos aristocratas, a do Ferro foi a do homem comum. O que contava não eram mais os guerreiros de elite em carros puxados por cavalos, mas bandos de soldados a pé, que dependiam da coesão e do número para vencer. O mundo deixaria de ser dos nobres, escribas e guerreiros para dar lugar a novos personagens. Com o tempo, a democracia surgiria na Grécia e as nascentes religiões semíticas iriam voltar-se para a salvação do indivíduo, em vez de cuidar apenas das elites de escolhidos, como faziam as antigas crenças, das quais a egípcia é o exemplo mais famoso.
Sabe-se que a Idade do Ferro nasceu no rastro de uma devastação, mas os historiadores ainda discutem o que a teria causado. Uma tese antiga mas que tem ganhado força recentemente é a de que uma horda de invasores tenha sido o fator preponderante. Nas inscrições dos faraós egípcios Merneptah e Ramsés III, representantes da velha ordem, esses invasores são identificados como “estrangeiros, de todas as terras do Norte”. Eram povos com nomes aterrorizadores como Lukka, Shardana, Shekelesh, Tursha… E Ekwesh, que muitos pesquisadores consideram equivalente a “aqueus” – o nome mais usado por Homero para designar os gregos que foram a Tróia.
Os troianos
Até não muito tempo atrás, havia quem questionasse a própria existência da cidade. Na falta de qualquer indício confiável, a guerra era assunto mais para estudiosos de literatura que para historiadores. Foi só na segunda metade do século 19 que um alemão apaixonado pelas duas coisas – história e literatura – revelou que poderia haver verdade por baixo da lenda. Heinrich Schliemann (1822-1890), fanático por Homero e arqueólogo autodidata, foi buscar pistas da localização de Tróia nos versos da Ilíada. Leu também relatos de turistas famosos, como o imperador macedônio Alexandre Magno, que visitou as ruínas atrás de inspiração no século 4 a.C., antes que elas fossem esquecidas. Em 1871, ele descobriu que uma pequena elevação chamada Hisarlik (“forte poderoso”, em turco), não muito longe da atual Istambul, era o local mais promissor para encontrar o palco da guerra. Dito e feito. Schliemann encontrou Tróia.
O alemão talvez tenha posto a perder material valioso ao rasgar uma trincheira no monte que havia se formado depois de milênios de ocupação. Mas valeu a pena: nove cidades sucessivas, uma embaixo da outra, surgiram na trilha da picareta. Os historiadores batizaram as cidades com números romanos, contados de baixo para cima desde a mais antiga – Tróia I – até a mais nova – Tróia IX (veja mais detalhes no quadro ao fim da página). As escavações continuaram com Carl Blegen, da Universidade de Cincinnati, Estados Unidos, nos anos 1930. E quem retomou o trabalho desde 1988 foi o alemão Manfred Korfmann, da Universidade de Tübingen.
A sexta cidade em Hisarlik, Tróia VI, que a maioria dos estudiosos de hoje identifica como a Tróia da guerra, parece ter sido fundada por volta de 1600 a.C. Os arqueólogos que escavaram o local encontraram ossadas de cavalos e representações artísticas desses animais. São indícios de que os troianos foram guerreiros temíveis – os cavalos eram uma arma de guerra importante no mundo antigo e Tróia parece ter sido uma das primeiras cidades da Ásia Menor a domesticá-los. Não foi à toa, portanto, que o apelido dado por Homero aos troianos e a Heitor, maior herói deles, era hippodamoi, “domadores de cavalos”.
As ocupações e reocupações sucessiva do lugar desde 3000 a.C. são prova da sua importância. “A posição de Tróia era estratégica para a navegação que atravessava do Mediterrâneo para o mar Negro”, afirma a arqueóloga Elaine Hirata, da USP. As costas do mar Negro eram excelentes para o plantio de trigo. “Era muito difícil para os barcos fazerem a travessia, em razão das correntezas e do regime dos ventos, que sopram na direção contrária justamente na época em que o clima está propício à navegação, de abril a setembro”, diz o historiador brasileiro Rivan dos Santos, da Universidade de Grenoble, França, especialista na derrocada da Idade do Bronze. Provavelmente, o único jeito de cruzar era procurar abrigo em Tróia até os ventos ficarem favoráveis. É de se imaginar que os troianos cobrassem caro por esse valor estratégico – e que outros povos, como os gregos, exportadores de cerâmica e compradores de trigo, invejassem aquela posição privilegiada.
Tróia ficava próxima da capital hitita, Hattusas – e é possível que fosse um reino vassalo desse império poderoso. Um tratado do rei hitita Muwattalli II, que governou entre 1290 e 1272 a.C., menciona uma tal “terra de Wilusa”. Para Korfmann, esse nome poderia ser uma versão da palavra grega Wilios – ou Ílios, outro nome de Tróia (daí é que vem “Ilíada”). Mais do que isso: o documento hitita se refere ao rei de Wilios, um certo Alaksandu. O nome pode designar Alêxandros – ou Alexandre. Ou seja, o mesmo nome do príncipe Páris, raptor de Helena.
Nos últimos anos, Korfmann diz ter encontrado cada vez mais vestígios de que Tróia VI era mesmo uma potência regional. Além das muralhas de imensos blocos de rocha e torres de 20 metros que protegiam a residência do soberano e dos nobres, conhecidas desde as escavações de Schliemann, Korfmann achou uma cidade baixa, com casas mais humildes, mas também defendidas por um fosso e, talvez, uma segunda muralha. Sinais de que Tróia era importante e bem defendida.
Ou seja, é plausível imaginar que os micênicos estivessem mesmo interessados em conquistar aquele entreposto estratégico e, com isso, dominar as rotas comerciais que iam até a Ásia. E, se eles se aventuraram nessa briga, é bem provável que tenham tido que enfrentar uma longa e desgastante guerra, tal o poderio militar da cidade atacada. Tudo do jeitinho como Homero contou.
Os Gregos
Sabe-se que o contato dos troianos com os gregos deve ter sido freqüente. Os micênicos exportaram sua bela cerâmica para Tróia por gerações – como comprovam cacos dela encontrados nas escavações – e, segundo Rivan, há indícios de uma rivalidade entre os dois povos. “Cartas diplomáticas encontradas em Hattusas mencionam um país chamado Ahhiyawa. Esse termo pode designar Acaia, a terra dos aqueus – como Homero chama os gregos. Os documentos mencionam combates entre os vassalos hititas e o rei desse país”, afirma o pesquisador.
Uma possibilidade, portanto, é que Tróia tenha caído numa escaramuça entre dois povos palacianos, típicos da Idade do Bronze. Robert Drews discorda. Ele acha que os gregos que chegaram à Ásia não tinham muita relação com os palácios ou com os reis. Quase ao mesmo tempo em que Tróia, o palácio micênico de Tebas também foi arrasado e queimado. E uma geração depois foi a vez de Micenas e dos outros centros gregos de poder. Ou seja, os micênicos tinham seus próprios problemas internos, não é de se esperar que eles estivessem em condições de guerrear do outro lado do mar.
Mas, se os palácios da Grécia não estavam em condições de guerrear, quem invadiu Tróia? Drews propõe uma explicação: pode ser que os agressores não fossem os aristocráticos moradores de Micenas e Pilos, no sul da Grécia – os reis, os nobres, os guerreiros de elite. Os invasores podem ter sido gregos bem diferentes, vindos das periferias dos reinos, o norte e o oeste da Grécia. Esses homens, incultos e analfabetos, falavam um outro dialeto, viviam num estado quase bárbaro, indiferentes à elite e à ordem da Idade do Bronze, e talvez fossem parte de uma grande onda migratória que fugia da pobreza. Como os bárbaros que demoliram Roma dois milênios depois, eram homens pouco sofisticados. E, como eles, podem ter começado a encerrar uma era. Se acreditarmos na tese de Drews, os gregos eram a Idade do Ferro chegando.
A Guerra
Na história de Homero, os heróis se encaravam, faziam desafios e tentavam atingir o inimigo à distância, atirando suas lanças. Às vezes a arma enganchava no escudo, às vezes atravessava com tudo os dentes e a boca do adversário, deixando-o no chão antes que pudesse reagir. Volta e meia algum dos lutadores, quase sempre troiano, dispara seu arco, mas Homero gosta mesmo é da batalha com armas de mão. Quando não tinha outra lança à mão para brigar no corpo-a-corpo, o guerreiro desembainhava a espada. Foi o que fez Heitor, o mais corajoso dos troianos, ao enfrentar sozinho Aquiles quando todos os seus conterrâneos haviam corrido para dentro da muralha. Conta a Ilíada que o escudo do herói grego rebateu o golpe. Aí Aquiles enfiou a lança no pescoço de Heitor, na brecha entre o capacete e a couraça, e encerrou as aventuras do troiano.
O importante nisso é que, no geral, gregos e troianos da Ilíada lutam do mesmo jeito. Nos dois exércitos, os carros servem apenas para levar ou trazer os combatentes, que se enfrentam a pé, usando pesadas armaduras, escudos redondos, lanças e espadas de bronze. Para Drews, essa é uma das imprecisões de Homero – ele está convicto de que havia mais diferenças entre gregos e troianos do que o poeta podia supor. A vitória grega seria a primeira de muitas causadas por uma revolução na arte de guerrear. Os Grandes Reinos e seus satélites, como Tróia, tinham dependido dos seus carros de guerra em combate: enquanto um guerreiro controlava os cavalos, outro usava a carruagem como uma plataforma móvel que lhe permitia despejar uma chuva de flechas sobre o inimigo. Era assim que tanto os faraós quanto os reis hititas eram retratados em combate. Provavelmente foi assim que os troianos enfrentaram os gregos – daí sua fama de “domadores de cavalos” e a história de que Páris teria matado o quase invulnerável Aquiles com uma flechada no calcanhar.
Acontece que os carros de guerra logo se mostraram frágeis diante das novas armas que os “bárbaros” se puseram a usar contra eles no fim do século 13 a.C., quase todas vindas do norte, do interior da Europa. Eram espadas longas de gume cortante, que serviam não só para espetar, mas também para fatiar o inimigo; escudos redondos que eram a combinação perfeita entre mobilidade e proteção; dardos leves e mortíferos, para qualquer homem lançar, sem a necessidade de um carro de guerra. Pode ser que os gregos lutassem assim. E, o que é importante, eles talvez brigassem em grandes bandos – já não vigorava mais a velha ordem da Idade do Bronze, na qual apenas uma elite de guerreiros combatia. Não dá para saber se um cavalo de madeira sacramentou a vitória ou não – sobre esse assunto a arqueologia não tem nem sequer um indício que sirva para confirmar ou derrubar a história de Homero. Mas é provável que a nova forma de lutar e de se organizar tenha pesado mais que qualquer artifício para decidir a guerra.
Homero não fala disso. Ele fala de amor, de honra, de vaidade e do poder dos deuses. A Ilíada não é documento histórico, mas virou a peça mais importante da cultura grega – e, como tal, acabou fazendo história. “A Ilíada e a Odisséia tornaram-se uma espécie de enciclopédia e guia. Eram a Bíblia dos gregos”, afirma André Malta Campos, professor de língua e literatura grega da USP. Os heróis homéricos inspiraram a ética e a filosofia que nasciam. O filósofo Sócrates, 800 anos depois da guerra, ao enfrentar a condenação à morte, invocou a sombra de Aquiles, o guerreiro que preferiu a morte gloriosa à vida vergonhosa. E, das cinzas da Canaã egípcia, não mais que dois séculos após a queda de Tróia, Davi cantou seus salmos e os profetas de Israel anunciaram um novo Deus, aquele mesmo que conduziria judeus, cristãos e muçulmanos rumo aos dias de hoje. A guerra pode não ter sido travada pelos deuses, como cantou Homero. Ainda assim, os destinos do mundo parecem ter mesmo sido decididos diante das muralhas de Tróia.
Para Saber mais
Na livraria:
Tróia, Claudio Moreno, L&PM, 2004
A Ilíada, Homero (trad. de Haroldo de Campos), Arx, 2003
The End of the Bronze Age, Robert Drews, Princeton University Press, EUA, 1996
Gente que fez
Os principais personagens da Guerra de Tróia
Helena
A linda rainha tinha sangue divino – era filha de ninguém menos que Zeus, que virou um cisne para se unir à mãe dela, Leda. Helena virou a cabeça até do velho Teseu, o matador do Minotauro, que a raptou quando menina, mas seus irmãos conseguiram salvá-la
Páris
Na infância, um oráculo predisse que o príncipe seria a destruição de Tróia, e por isso seus pais o abandonaram para morrer. No entanto, um pastor salvou o menino. Páris cresceu, meteu-se numa confusão com os deuses, raptou Helena e… acabou cumprindo a profecia
Heitor
Esse príncipe troiano, quase tão corajoso quanto o rival Aquiles, pôs uma pitada de drama familiar na Ilíada, por meio de seu tocante relacionamento com a esposa Andrômaca e o filho Astíanax. A morte heróica de Heitor, lutando contra Aquiles,é o clímax do poema
Aquiles
As vantagens do herói beiravam a covardia. Além de ter sangue divino, foi educado por um centauro, usava armadura forjada pelo ferreiro do Olimpo e ficou invulnerável ao ser mergulhado num rio mágico. Bem, quase invulnerável: o calcanhar ficou de fora do banho
Odisseu
Se Aquiles era insuperável na porrada, ninguém vencia Odisseu (ou Ulisses) em esperteza. O rei da ilha de Ítaca até que se virava no campo de batalha, mas foi sua idéia do cavalo de madeira que fez sua fama. Seu retorno para casa é tema do poema-irmãoda Ilíada, a Odisséia
Príamo
Nobre e generoso, o rei de Tróia pagou caro por ter esquecido os oráculos e acolhido Páris depois de descobrir que ele era mesmo seu filho. Quando Páris seqüestrou Helena, Príamo, assim como todos em Tróia, ficou tão encantado com a moça que nem questionou o rapto
Agamêmnon
O comandante da armada grega era rei de Micenas e, portanto, o soberano mais poderoso da Grécia. Ele não hesitou em sacrificar a própria filha à deusa Ártemis para garantir ventos favoráveis na jornada. Sua ambição fez com que ele entrasse em conflito com Aquiles
Menelau
Não foi à toa que o pai de Helena escolheu Menelau como genro. O guerreiro vinha da família mais poderosa da Grécia. Apesar de ser retratado como um combatente corajoso na Ilíada, sua imagem mais freqüente é mesmo a de um banana – ou corno, se você preferir
Quem era quem
Assim era o mundo em 1200 a.C.,quando estourou a guerra
PODER NO TOPO
Na Grécia e nas ilhas do Egeu já se falava uma língua ancestral do grego. Os reinos eram comandados por palácios, quase sempre no alto de montanhas
PONTO-CHAVE
Tróia, estrategicamente posicionada, ficava na área de influência do império hitita. Mais ao sul era território egípcio
TROCA-TROCA
As famosas cerâmicas gregas eram vendidas na orla do mar Negro e os comerciantes traziam de lá produtos agrícolas. Essa rota comercial era controlada por Tróia
As nove cidades
Conheça as nove Tróias encontradas pelos arqueólogos
Quando o arqueólogo Heinrich Schliemann chegou a Hisarlik, na Turquia, viu um monte. Ao começar a cavar, comprovou o que já desconfiava: não foi a natureza que ergueu aquela montanha, foram os homens. Ao longo dos milênios, sucessivas cidades foram nascendo e morrendo naquele lugar, cada uma assentada sobre os escombros da anterior.
Tróia I
A primeira ocupação é de 3000 a.C. e corresponde a uma vila que acabou de sair da Pré-História. Já aparecem objetos de cobre e há um começo de muralha
Tróia II
Quinhentos anos depois, surge uma cidade digna do nome, com muralhas de 8 metros de altura.O tesouro encontrado levou Schliemann a acreditar que esta era a Tróia de Homero
Tróia III
Sobre os escombros de Tróia II, surgiu outro assentamento, que durou um século. As casas são mais simples, mas há abundância de carne de caça na dieta
Tróia IV
Uma cidade também mais simples que Tróia II, porém não tanto quanto Tróia III. Frutos do mar e tartarugas entram no menu e os fornos tornam-se mais sofisticados
Tróia V
Uma cidade mais rica que as Tróias III e IV. E também mais limpa – os habitantes perderam a mania de jogar cerâmica e restos de comida no chão, como comprovam as escavações
Tróia VI – A da guerra
Hoje em dia, a maioria dos estudiosos concorda que esta é a Tróia da Ilíada. Há sinais de que ela tenha sido destruída num incêndio
Tróia VII
Parece ser na verdade a mistura de duas ocupações. Tróia VII-a seria uma reconstrução mais humilde de Tróia VI, enquanto Tróia VII-b teria sido erguida por imigrantes europeus
Tróia VIII
Colônia fundada por gregos no século 7 a.C., que incluía um templo para Atena erguido no lugar onde o relato de Homero dizia que havia um. Durou até o início da era cristã
Tróia IX
Cidade romana que pode ter se beneficiado de uma espécie de “turismo histórico” por causa da fama da Ilíada. Foi abandonada por volta do século 5 de nossa era
Casas vazias
Descobertas recentes mostram que havia casas fora das muralhas. Durante o cerco grego, os moradores delas devem ter se mudado para dentro da cidadela fortificada
Multidões de soldados
Segundo a Ilíada, mais de 100 mil gregos invadiram Tróia. Esse número parece improvável – registros de grandes batalhas da mesma época raramente mostram exércitos de mais de 10 mil homens
Flechas contra lanças
Os troianos eram arqueiros famosos, e por isso lutavam à distância. Isso deve tê-los ajudado a proteger a cidade. Já os gregos lutavam com lanças e preferiam o combate corpo-a-corpo
Gênio inexistente?
Homero, o maior autor grego, pode não ter existido
Na Antiguidade, pouca gente duvidava da existência de Homero. Segundo as tradições mais aceitas então, ele teria sido um rapsodo (literalmente “o que costura o canto”, em grego) cego e itinerante que cantou seus versos por todas as colônias gregas da Ásia por volta do século 8 a.C. A crítica moderna, no entanto, logo começou a notar no texto problemas de continuidade que deixariam corado qualquer roteirista de Hollywood. “Em certo momento um herói troiano morre, mas ele acaba reaparecendo lá na frente”, conta o professor de grego André Malta Campos. Essas incoerências davam a impressão de que o texto era uma colagem de várias narrações, talvez composto ao longo dos séculos por uma infinidade de autores. O indício mais forte disso veio nos anos 1920, quando o lingüista americano Milman Parry mostrou que os versos homéricos eram baseado sem fórmulas que se repetiam e que ajudavam na memorização. Ou seja, o texto não tinha um estilo pessoal único, era tributário de uma tradição oral antiqüíssima, que talvez remontasse até a época da guerra.