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Primavera atômica

Os americanos tiveram um longo caminho até a bomba. Da descoberta da radioatividade até o primeiro teste de uma explosão nuclear (ao lado) foram muitos desafios. Os cientistas envolvidos no Projeto Manhattan não imaginavam que a bomba atômica daria origem à Guerra Fria.

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Atualizado em 31 out 2016, 18h24 - Publicado em 19 fev 2011, 22h00

Texto Celso Miranda

Era um dia claro no Novo México, seco e quente como sempre costuma ser nessa parte do sudoeste dos EUA. O sol intenso de junho refletido nas janelas fechadas dos prédios dá uma curiosa impressão de que todos eles estão de óculos escuros. E de que nem mesmo os edifícios de concreto sobreviveriam sem eles aqui. Seguindo o caminho que se afasta do prédio principal, passa pelo portão e continua rocamboleante até uma estradinha por onde chegam e de onde partem os raros visitantes vindos de Santa Fé, chega-se a uma peguena ponte. Ali, dois homens se encontram. Um deles, nem alto nem baixo, é magro e parece à vontade de camisa de mangas curtas e calça cáqui. Disfarça um certo ar sombrio com óculos de aros de ferro, que cobre com aqueles clipes de proteção contra o sol. O outro é mais baixo e atarracado e não poderia estar vestindo algo mais inapropriado para o calor do deserto: uma capa de chuva.

Os dois andam juntos pela ponte, numa visão que não seria estranha mesmo que, por um milagre, alguém passasse por ali, naquele início de junho de 1945. Mas, enquanto a milhares de quilômetros dali travavam-se os últimos momentos de uma guerra mundial, a aparentemente inocente reunião daqueles dois homens não era um acontecimento casual. E então o mais alto dá ao outro um envelope. Dentro dele, há o design de uma bomba atômica.

Nem um mês depois do encontro no caminho para Santa Fé e o “entregador” está de volta à ponte. É um dia histórico, porém não menos secreto. Dali, ele cruza rumo a um abrigo a 10 quilômetros de onde testemunharia o primeiro teste de uma explosão nuclear. A bomba, apelidada pelos militares de Trinity, foi detonada às 5h30 da manhã de 16 de julho (veja em https://www.cfo.doe.gov/me70/manhattan/trinity_animation.htm os primeiros 109 milissegundos da era nuclear).

De uma enorme esfera leitosa, nasceu uma coluna de fogo laranja e, então, ele apareceu, brotando como o símbolo de uma nova e inédita experiência, um cogumelo branco como a luz. Um mês depois, em agosto, os militares americanos mostraram, em Hiroshima, no Japão, o poder destrutivo de uma dessas explosões: uma bomba atômica matou mais de 80 mil pessoas em um único dia. E, dias depois, como a confirmar seu poder destruidor, uma nova bomba, em Nagasaki.

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E, então, o silêncio. Até que em 23 de setembro de 1948, 4 anos e 1 mês depois do bombardeio ao Japão, o presidente americano Harry Truman anunciou que a União Soviética havia detonado sua primeira bomba atômica. A posse exclusiva da maior arma de destruição em massa jamais conhecida pelo homem já não era exclusividade dos EUA. E a Guerra Fria teria de conviver com um novo e definitivo elemento: o conceito de mútua destruição total.

Como isso aconteceu? Cientistas americanos recebiam informações sobre o programa nuclear soviético da inteligência militar americana havia pelo menos dois anos, e haviam assegurado que eles só teriam urânio ou plutônio suficiente para a construção de uma bomba em 5 anos. Poderiam as pesquisas soviéticas terem feito progressos tão rapidamente? Poderiam os espiões americanos estar mal informados? Ou era outra coisa?

Era outra coisa. Meses depois, um intrincado sistema de códigos soviético conhecido como Projeto Venona foi decifrado pelo serviço secreto britânico e acabou revelando, entre outras coisas, espiões soviéticos infiltrados no Ocidente. Um deles era um físico britânico, que havia trabalhado no Projeto Manhattan, que desenvolveu a bomba nuclear americana em Los Alamos, no Novo México. Seu nome: Klaus Fuchs. Não era alto nem baixo.

FÍSICOS E POETAS

Até 1910, se somássemos todos os físicos e químicos alemães e britânicos não chegaríamos a 10 mil pessoas. No final da década de 1980, o número de cientistas e engenheiros empregados no mundo era de 5 milhões, dos quais 1 milhão trabalhavam nos EUA, 1,2 milhão na Europa, e perto de 1,5 milhão na União Soviética, segundo dados da Unesco.

Quando Otto Hanh olhou dentro do núcleo de um átomo e descobriu a fissão nuclear, no início de 1939, mesmo alguns dos cientistas mais ativos nesse campo duvidavam que ela tivesse alguma aplicação prática. Fosse na paz, fosse na guerra. Não podiam estar mais equivocados. Por mais esotéricas que pudessem parecer as experimentações da física subatômica, elas eram quase que imediatamente aproveitadas em tecnologias práticas: transistores surgiram como subproduto de uma série de estudos (alguns, um fiasco…) das propriedades eletromagnéticas de cristais ligeiramente imperfeitos, em 1948 (8 anos depois, seus autores levaram o Nobel). “A guerra mostrou duas coisas para os cientistas: que a concentração de recursos podia resolver os mais difíceis problemas tecnológicos num tempo incrivelmente curto. E que nada estimulava tanto o ‘pioneirismo científico dos financiamentos das pesquisas’ quanto as aplicações para fins bélicos ou o prestígio nacional que elas proporcionavam”, disse Richard Evans, em In Hitler’s Shadows (“Nas Sombras de Hitler”, inédito no Brasil). Com o tempo, a guerra, a paz, e, por fim, a possibilidade de uma nova guerra aceleraram a imaginação dos físicos e o apetite de políticos e militares. “Hoje está claro que a Alemanha nazista não conseguiu fazer a bomba nuclear não porque os cientistas alemães não soubessem fazê-la, ou não tentassem, com diferentes graus de relutância, mas porque a máquina de guerra alemã não quis ou não pode dedicar-lhe os recursos necessários. Eles abandonaram a tentativa e passaram para o que parecia uma concentração mais efetiva em termos de custos, os foguetes, que prometiam retornos mais rápidos.”

Nenhum campo das ciências parecia mais firme, coerente e metodologicamente correto que a física newtoniana, com suas leis universais e mecanismos de causa e efeito. Era objetiva, podia se submeter a observação adequada e, em seu campo de conhecimento, um objeto ou fenômeno era uma coisa ou outra e a distinção entre eles era clara. Só um tolo ou uma criança (ou um gênio) iria dizer que o voo dos pássaros e borboletas negava as leis da gravidade. E, no entanto, a teoria subatômica que se seguiu à descoberta da radioatividade, na década de 1890, havia acabado de solapá-la. E, de repente, os jovens físicos descabelados passaram a ter um charme inédito.

Os átomos eram agora habitados por uma fauna e flora de partículas, algumas muito estranhas. Em 1932, Chadwick, de Cambridge, descobriu a primeira delas, os nêutrons. Essas partículas subatômicas, quase todas efêmeras, multiplicaram-se sob o bombardeio dos aceleradores de alta energia construídos no fim da guerra, e antes do fim da década mais de 100 delas haviam sido catalogadas. E eram ligadas por duas forças desconhecidas e obscuras que atuavam dentro do átomo, além das elétricas e que ligavam núcleo e elétrons: a “força forte”, que ligava o nêutron e o próton de carga positiva no núcleo atômico, e a “força fraca”, responsável por certos tipos de decomposição de partículas. Como dizia John Keats, que estudou e chegou a se formar farmacêutico, mas que se tornou mesmo um dos maiores poetas da língua inglesa, “Beleza é verdade, verdade é beleza”. Uma bela teoria, que era em si uma presunção de verdade, devia ser elegante, econômica e geral. Devia unir e simplificar.

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TRAIÇÃO

Klaus Emil Fuchs era um físico brilhante, nascido e formado na Alemanha, que emigrara para a Inglaterra, nos anos 30, e, de lá, para o Canadá. Em 1941, foi convidado e aceitou voltar para a Europa, onde se engajou num projeto pioneiro que visava produzir armamento nuclear para os ingleses. Os britânicos reconheceram o risco a que ele, um alemão de nascimento, estava se expondo na Europa, em plena guerra contra os nazistas, e fizeram dele um cidadão britânico. Na mesma época, Hitler invadia a União Soviética e Klaus, secretamente, começava a transmitir informações militares para os soviéticos. “Eu acreditava que aquelas informações iriam contribuir de alguma forma para equilibrar o combate na Europa. Afinal, naquele momento, o inimigo comum era o fascismo que ameaçava a segurança global”, disse Klaus Fuchs, quase 10 anos mais tarde, durante seu julgamento, no qual foi condenado por traição.

No final de 1943, Fuchs foi para a Universidade Colúmbia, em Nova York, nos EUA, onde passou a fazer parte da equipe do Projeto Manhattan. Em agosto do ano seguinte, foi transferido para Los Alamos, no Novo México, para o Laboratório de Física Teórica, dirigido por Hans Bethe, e, já na fase avançada do projeto, passaria a trabalhar diretamente na construção da primeira bomba atômica americana. Sua área de competência era a implosão do núcleo passível de fissão na cápsula de plutônio. Ali, diariamente, Fuchs punha em prática um de seus vícios: o cálculo, para o qual a maioria de seus parceiros, como Edward Teller, não tinha paciência ou vocação. Por isso, foi o autor de várias técnicas para calcular a quantidade de energia de uma amálgama passível de fissão, como o ainda hoje utilizado método de Fuchs-Nordheim.

No Novo México, Klaus Fuchs permaneceu fiel a outra de suas convicções. Entre 1945 e 1947, ele entregou aos soviéticos, por meio de um mensageiro, Harry Gold, a quem conhecia apenas como “Raymond”, em rápidos encontros sobre uma ponte, próximo a Santa Fé, informações sigilosas sobre a bomba atômica em que estava trabalhando.

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Fuchs entregou, ainda, informações sobre a produção de urânio-235, revelou que a produção dos EUA era de 100 quilos de U-235 e 20 quilos de plutônio por mês. Desses dados a União Soviética pôde calcular o número de bombas atômicas que os EUA poderiam ter e concluir que os EUA não estavam preparados para uma guerra nuclear até o final da década de 1940 e início de 1950.

Fuchs foi preso na Inglaterra e confessou ser espião em janeiro de 1950. Por ter vazado informações durante a guerra, foi condenado a 14 anos de prisão e teve a cidadania britânica cassada, o máximo possível por passar segredos militares a uma nação aliada. Depois de cumprir pouco mais de 9 anos da sentença, Fuchs foi solto e emigrou para a Alemanha Oriental, onde continuou sua carreira científica, em Dresden. Ele morreu em 1988, em Berlim.

JOE 1

O físico Hans Bethe, diretor do Projeto Manhattan, dizia que Klaus Fuchs foi o único físico que conheceu que realmente mudou a história. Era um exagero. Até recentemente, todos os registros de espionagem de Los Alamos eram atribuídos a Fuchs. Em 1998, Theodore Hall, um ex-colega americano, que chegou a ser investigado em 1951, mas nunca foi acusado, admitiu que, para ajudar a prevenir o monopólio sobre as armas atômicas, que considerava mais perigoso que a violência em si, encontrou-se com e passou informações sobre o projeto da bomba atômica para agentes soviéticos. “Decidi dar segredos atômicos aos russos porque achava que o poder nuclear não deveria ser um monopólio. Aquilo seria muito mais perigoso na mão de uma nação só, e quem sairia perdendo seria o mundo” disse, em entrevista à rede de TV CNN, num documentário sobre a Guerra Fria. “Era a coisa certa a ser feita para quebrar a exclusividade americana. Só havia uma resposta: o equilíbrio.”

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Se as informações entregues por Fuchs aos soviéticos foram úteis para que eles construíssem sua primeira bomba (que os americanos chamaram de “Joe1”, numa alusão a Josef Stálin) ainda é um mistério. A maioria dos historiadores concorda com a investigação oficial de 1952, que concluiu que, quando Fuchs deixou o país, em 1946, ele ainda não conhecia bem o mecanismo de detonação da bomba atômica para que isso fosse de utilidade para a União Soviética. O design utilizado em “Joe 1” foi atribuído a Andrei Sakharov.

Do lado soviético, a informação oficial sempre foi que os documentos de Fuchs eram inúteis. No entanto, alguns trabalhos realizados pelo físico German Goncharov têm sugerido que, embora os trabalhos que Fuchs desenvolvia não tenham ajudado os EUA nos seus esforços para conseguir uma bomba de hidrogênio, eles estavam muito mais próximos de uma solução do que foi reconhecido na época. Eles teriam servido, em grande medida, para estimular e orientar a pesquisa soviética. Uma vez que a maior parte do trabalho de Klaus Fuchs em Los Alamos permanece confidencial nos EUA, essa afirmação é praticamente impossível de comprovar.

Projeto Manhattan
Los Alamos, no Novo México, era o principal centro de desenvolvimento do Projeto Manhattan. Ali seriam desenvolvidas e testadas as primeiras bombas nucleares dos EUA na década de 1940.

O Espião
O brilhante físico alemão Klaus Fuchs (1911-1988) odiava os nazistas de seu país e por esse motivo trabalhou para americanos e ingleses durante a 2a Guerra Mundial. Mas com o fim do conflito mudou de lado e passou a fornecer informações sigilosas do Projeto Manhattan aos soviéticos.

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Nobel de Física
O italiano Enrico Fermi, um dos principais integrantes do Projeto Manhattan, concebeu e dirigiu a construção do primeiro reator nuclear na Universidade de Chicago. Aliou teoria e prática com suas experiências em núcleos radioativos, o que lhe garantiu o Prêmio Nobel de Física em 1938.

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