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Puns , mão amarela

A flatulência, objetivo de vergonha e de escárnio, quase sempre tratada como tabu, tem muito mais contribuições à história, à cultura e à arte humanas do que costumamos imaginar. Tape o nariz e conheça tudo o que se esconde por trás de um peido.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h22 - Publicado em 31 jan 2003, 22h00

Denis Russo

Era Pessach, o feriado judaico da purificação. Naquele ano de 44 d.C., como era comum nas datas importantes, uma multidão encheu a cidade sagrada de Jerusalém. Tropas romanas vigiavam os locais de maior aglomeração, para evitar confusão – e o lugar mais visado era o magnífico Templo de Jerusalém, que estava lotado. Foi quando um dos soldados romanos que fazia a guarda do templo virou as costas para a multidão de judeus e soltou um pum estarrecedor.

Os fiéis se revoltaram. Uns exigiram punição rigorosa ao centurião desrespeitoso. Outros, os mais jovens e mais exaltados, pegaram pedras e começaram a jogar nos soldados. Em questão de horas, a festa do Pessach virou uma enorme confusão. Não foi só um pum que o soldado romano soltou. Assim como os gases no seu intestino, décadas de ódio e ressentimento se acumulavam nos sistemas digestivos de judeus e de romanos – e escaparam de um momento para o outro, disparados pelo peido romano.

Dez mil pessoas morreram naquele triste Pessach. “A festa virou a causa do luto da nação inteira e todas as famílias lamentaram”, escreveu o judeu Flavius Josephus, o principal historiador do período da ocupação romana da Palestina, graças a quem essa história chegou até nós.

Esse pum fatal é um dos muitos que podem ser encontrados nas páginas de Who Cut the Cheese? – A Cultural History of the Fart (Quem cortou o queijo? – Uma história cultural do peido, uma referência ao cheiro forte que alguns queijos liberam quando são cortados pela primeira vez). Nesse livro, sem versão em português, o escatológico escritor Jim Dawson mostra a imensa influência que os gases intestinais, sempre tão desprezados e disfarçados, tiveram sobre a história, a cultura e a religião humanas.

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Os judeus talvez sejam o povo que mais sofreu com a flatulência alheia. Há, inclusive, quem acredite que o Holocausto nazista tenha se originado dentro de um intestino revolto. Adolf Hitler tinha um sério problema com gases, que o incomodava muito – e às pessoas ao seu redor. Suas cólicas eram tão doloridas que o ditador costumava dar berros histéricos quando estava no banheiro.

Durante oito anos seguidos, ele recebeu doses diárias de um remédio feito à base de estricnina e atropina. Hoje sabe-se que essas duas substâncias – ambas muito venenosas se ingeridas em grandes doses – têm graves efeitos sobre o sistema nervoso. A estricnina, quando consumida por longos períodos, pode causar euforia e irritação. Já a atropina gera inquietação, alucinações e surtos de delírio e de violência. Claro que seria ingênuo afirmar que toda a tragédia nazista tenha sido provocada exclusivamente pelos remédios antigases de Hitler. Ainda assim, não há muitas dúvidas de que só um cérebro seriamente perturbado por delírios paranóicos e por pensamentos violentos poderia conceber uma indústria da morte como a que ele arquitetou.

Mas não é só de desgraças que o livro de Dawson trata. Um capítulo inteiro é dedicado ao grande Le Petomane, um dos maiores – e mais bizarros – artistas cômicos da época de ouro dos cabarés franceses. Petomane (cujo nome artístico poderia ser traduzido como “O Peidão”) tinha um talento raro. Ele era capaz de encher seus intestinos de ar ao contrair os músculos abdominais. Daí bastava soltar o ar do jeito que desejasse (ou seja, seus puns não cheiravam mal).

O show do Petomane costumava lotar o Moulin Rouge, o mais famoso dos cabarés franceses, nos últimos anos do século 19. Sempre com uma expressão séria, o artista passava quase uma hora imitando puns alheios e instrumentos musicais, apagando velas, fumando cigarros e, pasmem, tocando flauta. E tudo isso, usando apenas seu esfíncter anal. No final, Le Petomane levava a platéia ao delírio ao executar La Marseillaise (o hino dos franceses) só com seu sopro pouco ortodoxo.

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O público se contorcia de tanto rir. Fala-se de moças sendo carregadas para fora do Moulin Rouge, porque passavam mal, e de gargalhadas sendo ouvidas a 100 metros dali. Cada apresentação acumulava nas bilheterias cerca de 20 mil francos. Na mesma época, a grande atriz Sarah Bernhardt atraía algo como 8 mil francos para o borderô.

Le Petomane era um sucesso tão, digamos, estrondoso que, em 1894, resolveu seguir carreira solo e construiu seu próprio teatro. “Talvez eu peide mais baixo, mas pelo menos serei livre”, disse o artista, referindo-se à menor repercussão que alcançaria longe do templo dos cabarés franceses.

Petomane foi talvez a pessoa que levou a arte de fazer rir com puns ao extremo. Mas ele não foi o único a abusar dela. Nem o primeiro. Em 423 a.C., o dramaturgo grego Aristófanes já fazia piadas de peidos na sua famosa peça As Nuvens. O texto clássico explica o trovão como sendo uma espécie de flatulência das nuvens. O poeta romano Horácio também incluiu puns na sua Sátira, de 34 a.C. Nela, o deus Príapo põe para correr duas temíveis bruxas atacando-as com uma saraivada de gases.

Dante, Shakespeare, Blake, Victor Hugo, Twain, Balzac. Nenhum desses monumentos da literatura ocidental resistiu à tentação de arrancar umas risadas fáceis de seus leitores com o velho recurso gasoso. Mas foi Émile Zola o responsável por criar o maior peido da literatura universal. O camponês Jésus-Christ, herói da tragédia naturalista A Terra, não passava uma página sem poluir a atmosfera.

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E não é só na literatura ocidental que a flatulência tem um lugar de destaque. Há referências a puns em pelo menos quatro das histórias que compõem As Mil e Uma Noites. O épico persa conta as agruras de Sherazade, uma jovem que sabe que será executada assim que amanhecer. Para adiar o terrível destino, a moça conta todas as noites uma história para o monarca, fazendo com que a expectativa pelo conto do dia seguinte o convença a poupá-la por mais algum tempo. “A Lâmpada de Aladim”, “Simbad, o Marujo” e “Ali Babá e os 40 Ladrões” são algumas das histórias mais conhecidas de As Mil e Uma Noites, mas pouca gente se lembra da história contada na 410ª noite: “Como Abu Hasan Soltou um Pum”.

Abu Hasan é um próspero beduíno que decide se casar e organiza um monumental banquete para comemorar o feito. Depois de comer do bom e do melhor, o comerciante senta-se em sua poltrona. Ao fazê-lo, lhe escapa um imenso pum. Ele fica tão envergonhado que abandona a esposa e a fortuna e foge para a Índia, onde ninguém sabia de seus gases. Dez anos depois, certo de que seus compatriotas já tinham se esquecido do acontecido, ele decide voltar para sua terra natal. Ao chegar lá, ouve uma mãe e uma filha conversando. A menina pergunta qual foi o dia do seu nascimento. E a mãe responde: “Minha filha, tu nasceste no dia em que Abu Hasan soltou um pum”.

Nem as religiões escaparam da extensa pesquisa de Dawson. O autor foi buscar num texto de 98 d.C. a primeira proibição contra puns na igreja. Trata-se de um texto de Marcial (poeta romano conhecido pelo humor e obscenidade de seus epigramas), no qual um fiel solta inadvertidamente um peido num templo romano. Os homens à sua volta riram, mas os deuses não acharam a menor graça e puniram o flatulento romano impedindo-o de comer por três dias. Daí para a frente, o pobre homem nunca mais entrou num templo sem antes parar no banheiro.

Os romanos consagravam suas latrinas à deusa Cloacina e seus gases a Crepitus. É provável que os antigos egípcios também tivessem um deus do pum. Mas o mais bizarro ritual religioso descrito no livro é dos moabitas, um povo do Oriente Médio. Consta que eles acreditavam que a divindade Bel-Phegor zelava pela boa saúde de seus sistemas digestivos e louvavam esse poderoso deus abaixando as calças em pleno templo e ofertando-lhe gases. Sim, é isso mesmo. Os moabitas viravam-se de costas para o altar e soltavam puns. Dessa forma, Bel-Phegor os protegeria de hemorróidas e úlceras.

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É claro que Satã não poderia faltar numa obra sobre gases fétidos. Um ser do mal, cujos domínios cheiram a enxofre, certamente tem alguma relação com a flatulência. O livro conta a história de vários artistas e escritores que representavam o Diabo como um ente dado a soltar puns. Essa imagem tem muito a ver com a baixa nota que costumamos dar aos nossos próprios intestinos. A parte traseira inferior do nosso corpo é vista como uma anatomia de segunda classe, indigna (e o olfato é tido como o menos nobre dos sentidos).

É assim em muitas culturas e há muito tempo. O explorador britânico Richard Burton contou, em 1880, que os beduínos do deserto não se sentem confortáveis com seus gases. Apesar de acharem até de bom tom arrotar, indicando satisfação, o pum era um tabu e quem risse da flatulência alheia fatalmente morria na ponta da faca.

Outro explorador famoso, David Livingstone, escreveu, em 1865, que algumas tribos africanas até toleravam puns na frente de seus conterrâneos. Mas peidar na frente de estrangeiros era punido com o ostracismo. O capitão Richard Johnson, que explorou o rio Gâmbia no século 17, relatou que um ancião da tribo ashanti ficou tão envergonhado por ter deixado escapar um punzinho enquanto se curvava perante seu chefe que se matou no mesmo dia.

Esse velho africano foi apenas uma entre as tantas vítimas fatais das bactérias que habitam nosso intestino – em especial a E.coli. Quando soltamos um pum, na verdade o que estamos fazendo é liberar de uma vez os milhares de “micropuns” produzidos pelas bactérias no processo de digestão. Um peido médio contém 58% de nitrogênio, 21% de hidrogênio, 9% de dióxido de carbono, 7% de metano e 4% de oxigênio – todos gases absolutamente inodoros. Apenas 1% do pum é fedido – composto de amônia e enxofre, substâncias tão malcheirosas que somos capazes de identificá-las mesmo numa concentração de um em um milhão.

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Todo mundo solta puns. Sem exceção. Até a Ana Paula Arósio, acredite. Na média, soltamos na atmosfera algo como 1 litro de gases todos os dias, dividido em dez a 15 peidos. Que são liberados em vigília ou durante o sono. Claro que tem gente que ultrapassa de longe essa quota, principalmente quem exagera na ingestão de laticínios, repolho, brócolis cru, soja, cenoura crua, cebola, maçã, banana, melancia, carne gordurosa, cereais ricos em fibra, pão, massa e, last but not least, feijão. Os mais velhos poluem mais que os mais novos, porque seus tecidos são menos elásticos, o que torna seus órgãos menos eficientes para estocar gases.

Em resumo, peidos são parte da nossa natureza (e, para o bem ou para o mal, da nossa história, da nossa cultura, da nossa arte). Gostemos ou não do cheiro, temos que aprender a conviver com eles. Não há vida sem puns. Agora, soltar no elevador não pode.

Para saber mais

Na livraria

Who Cut the Cheese? – A Cultural History of the Fart

Jim Dawson, Ten Speed Press, EUA, 1999

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