Débora Mamber
Imagine-se diante de um leão em plena savana africana. Enraivecido, ele avança e o agarra pelo ombro. Você ouve o rugido ensurdecedor e sente os dentes entrando em sua carne. Parece história de pescador (ou, no caso, de caçador), mas aconteceu de verdade. Com David Livingstone, o maior explorador que a África já conheceu. Perguntado sobre o que pensava durante a luta, ele respondeu, com o peculiar humor dos britânicos: “Eu me indagava qual parte do corpo ele ia comer primeiro”. Mesmo com seqüelas permanentes no braço esquerdo, esse missionário escocês se aventurou pelo interior do continente negro por quase 32 anos e enfrentou perigos como poucos neste planeta.
Nessas quase três décadas, as expedições de Livingstone revolucionaram a visão da Europa sobre a África. Com exceção da colônia do Cabo, os núcleos de colonização eram precários e restritos ao litoral – não passavam de pontos de parada para navios em busca de escravos. Munido de uma espingarda e uma maleta de médico, o explorador fez três grandes percursos e caminhou milhares de quilômetros. Ao final, adicionou ao mapa mundial cerca de 46 mil quilômetros quadrados de terras, lagos, rios e cachoeiras, povoados por tribos de culturas ancestrais. “O fim da façanha geográfica é apenas o começo da empreitada missionária”, era um de seus famosos ditos.
A jornada começou em Kuruman, no sul da África, em 31 de julho de 1841, quando ele tinha 28 anos. Poucos meses depois, iniciou campanhas pelo interior, ganhando a confiança dos nativos por onde passava graças ao jeito respeitoso e ao tratamento médico que oferecia. Em 1843, construiu uma casa em Mabotsa, belo vale habitado pela tribo Bakatla, o Povo do Macaco. Em seis meses, já conversava fluentemente com os nativos, que vinham pedir ajuda ao médico branco que falava sobre Jesus e o cristianismo.
Foi em Mabotsa que Livingstone teve o já referido encontro com o leão. Ferido, viu-se obrigado a retornar a Kuruman, onde se apaixonou por uma bela jovem: Mary Moffat, filha do fundador da missão local, o também escocês Robert Moffat. O casal, então, foi até Chonuane, a pouco mais de 60 quilômetros de distância. Ali, o explorador conheceria um de seus mais fiéis amigos: Sechele, líder da tribo Bakwain, que abandonou a poligamia para se converter à religião cristã. Ao longo dos anos com os bakwains, Mary e David Livingstone tiveram quatro filhos e acostumaram-se ao dia-a-dia duro. Teriam permanecido lá por décadas não fosse a seca inclemente.
Kolobeng foi o destino escolhido por Livingstone e os bakwains, mas novamente a seca atacou e, mais uma vez, o missionário deu lugar ao expedicionário. Dizia-se que além do deserto de Kalahari havia uma terra rica, habitada pelos makololos, cujo chefe, Sebituane, era velho amigo de Sechele. Em junho de 1849, Livingstone partiu disposto a cruzar o deserto, feito que os líderes tribais acreditavam ser impossível para um homem branco. Não para Livingstone. Em dois meses, ele chegou ao lago Ngami e a um rio de tamanho considerável – era a prova de que os bakwains estavam certos: a África não era apenas um imenso deserto. Aquelas águas, pensou, haveriam de se tornar rotas para uma região fértil e inexplorada. Na época, o devoto missionário já percebera que a Bíblia não salvaria os africanos. Foi então que ele consolidou a teoria que defenderia até a morte: cristianismo, comércio e civilização eram os três pilares para inserir a África no mundo e erradicar o tráfico de escravos.
A expedição voltou a Kolobeng para Livingstone buscar Sechele e sua família. Juntos, retornaram em busca da tribo Makololo. Mas as crianças não estavam preparadas para o deserto. Depois da morte de um de seus filhos, o explorador decidiu retornar para a Cidade do Cabo, de onde mandou a família de volta à Inglaterra. Era abril de 1852, a primeira vez em 11 anos que Livingstone via qualquer traço da civilização européia.
Caminho do mar
De volta ao coração da África, foi longa e difícil a terceira tentativa de chegar ao chefe makololo. Livingstone e os bakwains estiveram por várias vezes muito perto da morte, mas sobreviveram a tudo. Mais uma batalha tinha sido ganha, mas ele ainda sonhava com um caminho para o mar. A nova viagem, em direção à costa oeste, contou com a colaboração de 27 homens da tribo. Foram seis meses atravessando florestas e rios. Seis meses de privações, fome e doenças. O contato com as tribos do caminho era sempre uma incógnita. Algumas, hostis, exigiam tributos. Outras recebiam os forasteiros com simpatia, presentes e danças tradicionais. Em maio de 1854, depois de percorrer quase 2500 quilômetros (veja mais detalhes no mapa ao lado), eles chegaram ao porto português de Luanda – e muitos viram o mar pela primeira vez. “Marchamos acreditando que o que nossos ancestrais diziam era verdade, que o mundo não tinha fim”, contaram os makololos. “De repente, o mundo nos disse: ‘Este é o meu fim, não há mais de mim’.”
O grupo só chegou de volta às margens do rio Zambeze 18 meses depois da partida. Todos pareciam vindos da terra dos mortos. Livingstone ficara quase cego de um olho atingido por um galho e quase surdo em decorrência de uma febre reumática. Mal se recuperou, ele partiu em direção à costa leste e a um novo mundo de aventuras: escalar um formigueiro de 6 metros de altura para fugir de um búfalo, atravessar a floresta à noite, em meio à chuva torrencial, caminhar ensopado por pântanos e atravessar riachos, dormir numa pilha de grama e comer mandioca, farinha e sementes. Um dia, Livingstone avistou colunas de vapor e ouviu um barulho muito forte. Era uma queda-d’água maior do que qualquer uma já vista por um europeu. Na época, um jornalista americano escreveu: “Com um gosto duvidoso, ele propôs chamar de Victoria Falls, nome que, esperamos, não seja sancionado pelo mundo”.
Chegando a Quilimane, na costa leste, Livingstone encontrou trabalho para seus homens e pôde retornar pela primeira vez à Inglaterra. Era dezembro de 1856, mais de 15 anos desde sua partida. Lá, escreveu Viagens Missionárias e Pesquisas na África do Sul, fez palestras e tornou-se uma celebridade: o único branco a atravessar a África de leste a oeste. Não demorou para ele voltar para às terras que tanto amava – com a família e à frente de uma expedição de europeus, com salário do governo britânico e recursos de sobra.
Tempos difíceis
Ironicamente, os tempos áureos de suas missões haviam terminado. Livingstone se dava muito bem com os africanos, mas sua convivência com os brancos era sofrível. Foram seis anos de desavenças e frustrações. O Zambeze mostrou-se um rio de difícil navegação e metade do tempo era gasta cortando madeira para abastecer o moderno barco. Ainda assim, a expedição descobriu o lago Niassa, o rio Shire e o lago Shirwa. Em janeiro de 1862, Mary Livingstone foi acometida por uma febre terrível e morreu. No ano seguinte, o governo britânico decidiu cortar o financiamento da expedição. Livingstone já não escondia a amargura. Com o passar do tempo, ele percebeu que suas explorações também abriam novas rotas para os traficantes. Acabou por voltar a Londres. Seria sua última temporada na Europa. Aproveitou-a ao lado dos filhos e escreveu o segundo livro, cheio de histórias de africanos capturados e transportados em péssimas condições.
A terceira expedição de Livingstone à África, em 1866, colocaria sua força de vontade e fé à prova. “Por onde andamos, vemos esqueletos humanos em todas as direções. Essa região, que há apenas 18 meses era um vale povoado de vilarejos e jardins, é agora um deserto cheio de ossadas”, escreveu em seu diário. Seus homens o abandonaram, levando a caixa de remédios. Febril e esfomeado, ainda andou quilômetros até descobrir os lagos Tanganica e Moero. Ao chegar a Uiji, mais uma vez Livingstone contou com a sorte. Um homem branco aproximou-se e disse a frase que acabaria por se tornar célebre: “Doutor Livingstone, eu presumo”. Era Henry Stanley, repórter do jornal New York Herald, enviado três anos antes para descobrir seu paradeiro. Os dois tornaram-se amigos. Stanley decidiu voltar, mas Livingstone recusou a oferta para acompanhá-lo. Foi seu último encontro com um branco. Doente e agonizante, chegou ao vilarejo de Chitambo, onde os moradores o instalaram numa tenda. Na manhã de 4 de maio de 1873, foi encontrado ajoelhado, em posição de oração – estava morto. Seu coração foi enterrado sob uma árvore, honra que nunca tinha sido concedida a um não-africano. O corpo embalsamado está enterrado na abadia de Westminster, na capital inglesa.
A julgar pelos objetivos que se auto-impôs, Livingstone não tinha muito a mostrar ao morrer. Falhou em encontrar a fonte do Nilo, os centros missionários com os quais sonhava demorariam a chegar e a brutalidade do tráfico não dava sinais de arrefecimento. Mas essa é uma visão muito simplista. Livingstone despertou o Ocidente para a África. Quase 150 anos depois, é muito claro que suas descobertas foram uma pequena semente para a libertação do continente – pequena, mas suficientemente importante para conceder a esse missionário escocês um lugar na lista dos maiores exploradores que a História já conheceu.
Coração negro
Livingstone se cansou da Europa
Aos 22 anos, David Livingstone já havia concluído os cursos de Medicina, Grego e Teologia na Universidade de Glasgow. Partiu para Londres e, convencido de que levar o cristianismo aos recônditos mais distantes era sua vocação, filiou-se à Sociedade Missionária. Pretendia ir à China, mas a Guerra do Ópio fez com que mudasse de rumo – para a África. “Por quatro meses eu vivi com ele na mesma casa, no mesmo barco, na mesma tenda, e nunca encontrei sequer um defeito.
Ele acredita que tudo dará certo, tamanha é sua fé na Providência.” Assim o jornalista Henry Stanley descreveu o Livingstone que conheceu na África, em 1873. Um homem arredio aos europeus e a quaisquer regras, fossem do governo britânico ou da Sociedade Missionária de Londres, com a qual rompeu em 1856. Sentia-se em casa no deserto ou na savana, em meio aos ditos selvagens. Seu amor e dedicação estavam totalmente voltados aos povos africanos, a quem tratava com respeito e lealdade. Não à toa seu coração foi enterrado na África. É à África que ele pertence.