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Testemunhos do além

Usadas como provas para inocentar suspeitos de assassinato, cartas psicografadas de supostos espíritos embaralharam o meio jurídico.

Por Igor Natusch
Atualizado em 13 ago 2020, 13h37 - Publicado em 13 jan 2020, 13h37
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m 1976, o estudante goiano José Divino Nunes foi acusado de matar um amigo de infância, Maurício Garcez Henrique, com um tiro no peito. Desde o primeiro depoimento, Divino (à época com 18 anos) alegou que a morte do amigo tinha sido acidental, resultado de uma desastrada e trágica brincadeira de ambos com um revólver.

O processo corria há mais de dois anos quando os pais da vítima receberam uma carta psicografada por Chico Xavier, que alegava não saber nada sobre o caso. Nela, o próprio Maurício consolava os familiares e eximia seu amigo de responsabilidade pelo acontecido. “José Divino nem ninguém teve culpa em meu caso. Brincávamos a respeito da possibilidade de ferir alguém, pela imagem no espelho; sem que o momento fosse para qualquer movimento meu, o tiro me alcançou, sem que a culpa fosse do amigo, ou minha mesmo”, dizia a carta.

Comovidos e convencidos da veracidade da carta, os pais levaram o papel até as autoridades, acompanhado da carteira de identidade de Maurício para realçar a semelhança das assinaturas. Como o relato coincidia com o depoimento de José Divino e com os dados da perícia, a carta acabou sendo aceita no processo, em uma decisão inédita e de grande repercussão no meio jurídico do País. O jovem terminou absolvido em 1979 – e o juiz encarregado do caso, Orimar de Bastos, ficou tão impressionado que acabou virando espírita.

É claro que a decisão causou considerável rebuliço na Justiça brasileira. A principal crítica a ela é óbvia: como comprovar que o texto escrito por um médium é, na verdade, a declaração de alguém que já morreu? Em 2008, foram propostas até novas leis que proibiriam expressamente o uso de documentos psicografados como prova no Brasil. A ideia, porém, não foi levada adiante.

A maioria dos juristas parece ter uma visão mais liberal da questão. Embora cartas psicografadas sejam geralmente descartadas pela Justiça, argumenta-se que impedir previamente o uso de psicografia como prova seria um modo (ainda que às avessas) de impor uma norma religiosa ao ordenamento jurídico.

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Afinal, o Judiciário é laico – e isso significa não apenas estar acima de crenças religiosas, mas também tratar todas elas do mesmo modo. Em resumo, recomenda-se que aceitar ou não provas psicografadas esteja sempre a critério do juiz – princípio que rege todas as evidências, sejam sobrenaturais ou não. Em defesa do uso de provas do tipo, há quem diga que é possível aplicar mecanismos concretos para dar credibilidade a elas. Uma carta psicografada, por exemplo, pode ser submetida a exames grafotécnicos, capazes de comprovar a autoria (mesmo que sobrenatural) de um documento.

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Psicografia de Chico convenceu pais e inocentou jovem acusado de ter matado o amigo. (Diário da Noite/Reprodução)

Em 1990, o perito Carlos Augusto Perandréa analisou uma carta que Chico Xavier teria psicografado em 1978 em nome de Ilda Mascaro Saullo, morta cerca de um ano antes. A mensagem foi ditada em italiano, língua que Chico dizia não conhecer. As conclusões de Perandréa, expostas no livro A Psicografia à Luz da Grafoscopia, são amplamente favoráveis à veracidade do fenômeno: segundo ele, foram encontradas “consideráveis e irrefutáveis características de gênese gráfica” a favor da autenticidade da carta.

Mas o trabalho do criminologista também foi contestado: para os críticos, ele ignorou vários elementos que apontavam na direção contrária, inclusive um erro de grafia no nome da filha da desencarnada. Chico Xavier nomeou a mulher como Teresa, quando seu nome verdadeiro era Theresa, com h.

A decisão no caso dos amigos José Divino e Maurício pode parecer inusitada, mas não é isolada. Em junho de 2003, o tabelião Ercy da Silva Cardoso, com 71 anos na época, foi morto a tiros. A polícia apontou sua amante, Iara Marques Barcelos, como mandante do crime. Ela teria pago ao caseiro do tabelião, Leandro Almeida, para assassiná-lo.

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Mas, três anos depois, o caso sofreu uma reviravolta durante julgamento no Tribunal do Júri de Viamão (RS). A defesa apresentou uma carta que favorecia Iara, psicografada por Jorge José Santa Maria, médium que teria encarnado o espírito do tabelião assassinado. “O que mais me pesa no coração é ver a Iara acusada desse jeito, por mentes ardilosas como as dos meus algozes”, dizia o texto redigido por Jorge.

A denúncia contra Iara vinha do próprio caseiro. Ele depois voltou atrás, negando o crime e a encomenda, mas, ainda assim, foi condenado a 15 anos e seis meses de prisão. A tendência era que Iara seguisse pelo mesmo caminho. Mas a carta em que a vítima inocentava a acusada foi aceita pelo juiz e anexada às provas do processo.

Iara foi absolvida e, segundo os advogados de defesa, a mensagem teve peso decisivo no julgamento. A prova foi questionada pela promotoria, mas a absolvição foi confirmada em 2009 pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Segundo os desembargadores, não havia no simples uso da carta elemento suficiente para desacreditar todo o julgamento.

A carta que salvou Iara da prisão, no entanto, limitava-se a dizer que ela era inocente, sem dar nome a nenhum dos supostos “algozes” de Ercy – uma informação que seria mais útil no processo. Essa é a principal crítica ao uso da psicografia como prova judicial. Os criminalistas mais céticos argumentam que as mensagens supostamente escritas pelos espíritos costumam conter informações genéricas – ou seja, coisas que qualquer um pode afirmar mesmo sem conhecer os personagens envolvidos ou detalhes dos crimes.

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Mas vale lembrar que processos complexos, como os de assassinato, envolvem muitos tipos de provas, incluindo perícias e depoimentos de testemunhas. Quando aceitas em julgamento, as psicografias são apenas mais uma das provas – e as sentenças levam em conta um conjunto de argumentos.

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