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Uma voz para o Afeganistão

Conheça Kimberley Motley, a ex-miss e advogada que resolveu largar o conforto dos EUA para morar sozinha em Cabul e defender quem nunca teve defesa: meninas afegãs

Por Karin Hueck
Atualizado em 31 out 2016, 19h07 - Publicado em 16 jun 2015, 21h30

Quem vê Kimberley Motley circulando de vestido florido e bolsa de pano no Rio de Janeiro, confortável entre caipirinhas e canapés de camarão, tem dificuldade de imaginá-la em seu ambiente de trabalho. A americana é advogada em Cabul, a capital do Afeganistão, onde passa nove meses do ano sozinha, morando em uma casa trancada por um portão de ferro e que apenas em dias bons conta com água corrente e luz elétrica. O dia a dia ela passa nas cortes, como a única advogada ocidental do país. Defende todos os estrangeiros que se veem metidos em problemas legais por lá – e não são poucos. Começou trabalhando com americanos, e hoje é a advogada oficial das embaixadas italiana, francesa e inglesa. Mas não foi isso que a tornou conhecida nos últimos dez anos. Kimberley ficou famosa por salvar afegãos – afegãs, principalmente – de encrencas.

Kimberley foi parar no Afeganistão em 2003, na primeira vez em que saiu dos EUA, como parte de um programa de educação do governo americano. A ideia era passar apenas alguns meses servindo de apoio legal para as bases militares, mas ela decidiu ficar por lá. Abriu um escritório de advocacia, avisou o ex-marido e os dois filhos pequenos (que hoje em dia são três, dois deles adolescentes) que não voltaria tão cedo para casa e se tornou residente de Cabul. Seu escritório era voltado para o lucro: a ideia era cobrar (bem) caro pelos serviços que prestava. Ela não esperava entrar no mundo das causas humanitárias, mas acabou tropeçando em tantas injustiças nos tribunais afegãos que foi isso que aconteceu. Sem querer, entrou em contato com alguns dos processos jurídicos que mais indignam o mundo ocidental: condenações de mulheres estupradas por parentes ou julgamentos de meninas vendidas para se casarem com homens com o triplo de suas idades. Kim não conseguiu ficar insensível aos problemas, e resolveu usar seus conhecimentos para ajudá-las. “Era uma questão de humanidade. Eu estava lá e podia fazer isso. Não tinha como não ajudar”, diz. Encurralada, ela assumiu o papel de heroína.

Para ser respeitada, tento imitar o comportamento de um homem

A justiça afegã é falha e repleta dos problemas que se espera encontrar em uma nação que acabou de sair de uma guerra. Acusados de crimes vão para a cadeia sem julgamento, são julgados sem estar presentes, seus advogados de defesa não têm acesso ao processo a não ser que paguem propina, e mesmo quem trabalha no setor jurídico desconhece as leis. Em um país no qual a maioria das mulheres sequer pode sair de casa sem a autorização expressa de um membro do sexo masculino da família, os tribunais de justiça acabam dominados exclusivamente por homens. Nesse ambiente, Kimberley parece um alienígena. Além de usar apenas roupas ocidentais e não cobrir a cabeça com um lenço (“Para ser respeitada, tento imitar o comportamento de um homem”), a americana compra briga, aponta o dedo e até encosta nos homens que enfrenta nas cortes. É um gesto simples, porém cheio de significado: no Afeganistão, uma mulher pode ser condenada por adultério apenas por ficar no mesmo ambiente de um homem que não for seu parente. Kim não está nem aí. “É uma besteira”, diz sobre essas leis. Prova disso é que dirige seu próprio carro e, na maioria dos dias, dispensa seguranças para andar por Cabul.

Kimberley Motley

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A advogada acredita que não é tão corajosa assim – mesmo depois de sobreviver a um ataque talibã contra um hotel em Cabul em março de 2014, no qual teve de ficar escondida por cinco horas e onde 13 pessoas morreram. Diz que aprendeu a lidar com situações adversas ainda na infância, que passou na periferia de Milwaukee, em Wisconsin, na única família inter-racial do bairro. (O pai é negro americano e a mãe é refugiada norte-coreana. Ambos se conheceram quando o pai serviu na aeronáutica na Guerra da Coreia.) Trabalhou desde cedo também: sua mãe a mandava para o campo cultivar verduras e grãos que deveriam durar até o inverno – assim como ela fazia na Coreia -, o que deixava Kim profundamente constrangida diante dos amigos de escola. Como cresceu em um bairro perigoso, aprendeu desde cedo os trejeitos da rua e o jeito escrachado, pose que manteve ao longo dos anos e que, ela jura, a ajuda a sobreviver no país machista em que trabalha. Até hoje, usa muitas gírias e palavrões para se comunicar.

Assim, é difícil conciliar a imagem da Kim durona com a da Kim que venceu o posto de Mrs Wisconsin (a versão dos concursos de Miss para casadas) em 2004. Desafiada por um amigo numa aposta, ela se inscreveu na disputa sem sequer saber passar maquiagem: “eu nem estava me esforçando!” – e acabou vencendo. Em 2004, disputou o Mrs America também e, desde então, se sente à vontade entre vestidos de gala, acessórios cintilantes e biquínis – tanto que pediu para ser fotografada para a SUPER usando apenas o duas-peças. Optamos pelas fotos que ilustram esta reportagem.

 

Murro em ponta de faca

Sahar Gul era uma menina de 12 anos quando foi vendida por um irmão para se casar com um homem de 30. Assim que se mudou, foi obrigada pelo marido e a sogra a se prostituir para ajudar nas contas do lar, o que recusou. Como castigo, acabou trancada num quarto e torturada: bateram nela com barras de ferro, queimaram-na com cigarros, arrancaram suas unhas. Quando tentou fugir e pedir ajuda para os vizinhos, eles a devolveram para o marido. Foram meses de tortura antes que sua própria família estranhasse o sumiço e conseguisse resgatar a menina. Kimberley pegou o caso e resolveu levá-lo até a Suprema Corte. Pediu indenizações e prisões para o marido, a sogra e o irmão que havia vendido a menina. “Foi a primeira vez que uma vítima de violência doméstica no Afeganistão foi representada na Justiça”, diz Kim. Sahar ganhou a causa. Em um país onde maridos detêm direitos absolutos sobre suas mulheres, e onde não é raro que homens espanquem as esposas até a morte ou cortem seus narizes e orelhas em defesa da honra da família, o caso de Sahar não é pouca coisa. Hoje a menina vive num abrigo e frequenta a escola, embora viva aterrorizada que o ex-marido, recém-libertado da prisão, volte para matá-la.

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Esse é apenas um de muitos casos igualmente tenebrosos (leia mais um no boxe ao lado) que renderam fama a Kimberley. Apesar de não falar uma palavra em pachto e não topar pagar qualquer forma de corrupção, ganhou 90% dos casos que assume. Em troca, conquistou visibilidade internacional (foi graças a eles que Kim recebeu o convite para falar no TED Global em outubro, no Rio de Janeiro, onde conversamos com ela). O alcance fora do Afeganistão é importante, porque a advogada ainda não sabe como vai ser a vida na hora em que as tropas americanas saírem do país no final de 2014. Ela pensa em trabalhar em outras jurisdições, e já pega casos na África e outros países da Ásia. Sonha também em ficar uma temporada no Brasil: “quem sabe consigo fazer algo de bom por aqui?” A julgar pelo estilo praiano, adaptada à vida carioca ela já está.

 

A solução que não foi

Gulnaz estava limpando a casa da família em 2009 quando o marido de sua prima a agarrou. Asadulla amarrou a adolescente, a ameaçou de morte e a estuprou lá mesmo. Foi assim que a menina engravidou. Quando procurou a polícia para denunciar o crime, acabou presa por adultério ainda que não fosse casada – seu estuprador que era. Ficou 18 meses na cadeia, onde deu à luz uma filha e só conseguiu sair de lá quando Kimberley Motley resolveu assumir o caso. A advogada lutou por meses nos tribunais e organizou um abaixo-assinado internacional, até que Gulnaz recebesse o perdão do presidente Hamid Karzai, em 2011. A menina foi inocentada e encaminhada para um abrigo de mulheres. Tudo parecia bem, e a história de final feliz circulou o mundo. Gulnaz e Kimberley viraram heroínas nacionais. Mas não acabou por aí. Logo ficou claro que Gulnaz não podia deixar o abrigo sem autorização de sua família, que, por sua vez, não queria nem saber da menina por causa da “desonra” do estupro. Na prática, ela estava presa de novo e – solteira e com uma filha pequena – sem lugar na sociedade afegã. Assim tomou uma decisão incompreensível para o resto do mundo: casou-se com seu estuprador e aceitou virar sua segunda esposa. Inacreditavelmente, o marido, que havia passado dois anos na cadeia, se viu como a parte lesada nesse arranjo. “Ela estava abandonada, se eu não tivesse uma consciência e me casado com ela, ainda estaria na rua. Foi muito duro para mim”, disse Asadulla a um documentário inglês. Já ela é pragmática: “ele me desonrou, mas pelo menos assim a minha filha vai ter um pai”. Sem ter como se salvar, Gulnaz mantém as esperanças para a filha.

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