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As três faces de Francisco

O papa completa três anos à frente do Vaticano consolidando três papéis bem distintos: o de ativista, o de político e o de defensor de tradições anacrônicas da Igreja. Mas seu objetivo é um só

Por Maurício Horta
Atualizado em 31 out 2016, 19h03 - Publicado em 18 jul 2016, 18h15

Por 54 anos, EUA e Cuba não tiveram relações diplomáticas – um entulho da Guerra Fria que até hoje polariza a política no continente entre “coxinhas” pró-Miami e esquerdistas pró-Havana. Mas isso começou a mudar no momento em que os presidentes Barack Obama e Raúl Castro vieram a público, simultaneamente, anunciar que retomariam as relações e agradecer ao papa Francisco por ter servido de fiador das negociações. Com a reabertura das embaixadas, estava confirmada a volta do Vaticano para o centro da política internacional, depois de seus antecessores se calarem por quase um quarto de século. Atitudes como essa, além de sua condenação ao “capitalismo desenfreado” e sua aproximação de movimentos de esquerda latino-americanos, da Igreja Ortodoxa russa e de regimes autoritários tem provocado alguns a se perguntar – afinal, o que esse papa quer?

Acima de tudo, recuperar o poder da Santa Sé. A Igreja Católica é uma organização global por excelência. Seu rebanho cobre um sexto da população mundial, espalhada por todos os continentes. Seu serviço diplomático é o mais antigo do mundo – e também um dos mais extensos. Possui a maior rede de entidades humanitárias.

Por outro lado, a Santa Sé não precisa defender fronteiras territoriais nem governar uma população nacional. Como sua natureza não é propriamente estatal, isso lhe dá neutralidade para mediar certos conflitos. E acima de tudo isso está um líder respaldado por 2 mil anos de tradição – o papa.

Ao longo da história, vários papas usaram com eficiência o natural poder político que o cargo de Santidade confere. João 23 (1958-1963) e Paulo 6o (1963-1978) apoiaram as independências afro-asiáticas e o diálogo entre o Ocidente e a URSS na fase mais branda da Guerra Fria. Já João Paulo 2º (1978-2005) incitou a oposição ao governo comunista na Polônia, o que abriu uma fenda na cortina de ferro soviética. Mas, com a queda da URSS, João Paulo 2º e Bento 16 (2005-2013) perderam seu inimigo ateu e deixaram de lado a política.

Paralelamente, a própria Igreja caiu numa crise. Os escândalos de pedofilia mancharam a reputação do catolicismo. Outra mácula veio das suspeitas, no fim do papado de Bento 16, de que o Banco do Vaticano estaria sendo usado para lavar dinheiro de criminosos italianos. Não por coincidência, esse período foi marcado pela perda de fiéis para denominações protestantes.

Defendendo populações carentes com energia e firmeza, Francisco começa a se tornar tão popular quanto João Paulo 2º

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Quando Bento 16 desistiu do pontificado, em 2013, a Igreja precisava de um papa disposto a reinserir a Igreja nesse mundo novo. O colégio de cardeais olhou para fora da Europa e encontrou o argentino Jorge Mario Bergoglio. Não apenas vinha do continente com mais católicos do mundo (e que nunca tinha produzido um papa), como também era da Companhia de Jesus – a ordem religiosa notoriamente pragmática que espalhou a cruz pelas Américas, África e Ásia.

Eleito, Bergoglio escolheu o nome de São Francisco de Assis e passou a defender uma Igreja pobre e para os pobres. Existe uma razão espiritual para essa opção pelos marginalizados. Segundo o papa, “a imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à fé”, ao passo que as sociedades opulentas viveriam “anestesiadas pelo consumismo”. Mas há também uma razão estratégica. A maior parte do rebanho católico – existente e em potencial – está nas periferias do mundo.

Isso levou a uma guinada universalista da Igreja Católica. Francisco passou a manifestar posicionamentos políticos fortemente críticos ao estabishment ocidental, e favoráveis a países subdesenvolvidos. Para ganhar apelo junto a esse público, formado por tantas culturas diferentes, Francisco precisou adaptar sua pregação recorrendo à “consonância cognitiva”. Ou seja, enfatizando aquilo em que a Igreja e seu interlocutor concordam e deixando em segundo plano as discordâncias – uma tática que tem a ver com a objetividade dos jesuítas. “Para um líder ganhar influência, não basta que seu público considere suas opiniões positivas”, afirma Sohaela Amiri, coordenadora do centro da Universidade do Sul da Califórnia para Diplomacia Pública. “É necessário convencer que pensam de um jeito parecido.”

Por último, e não menos importante, Francisco defende uma Igreja política. “Um bom católico se envolve em política”, disse em missa celebrada em 2013. “A política é uma das formas mais elevadas de caridade, pois ela serve ao bem comum.”

O ativista

Em maio de 2015, uma multidão de 200 mil pessoas gritava vivas na cerimônia de beatificação do arcebispo salvadorenho Oscar Romero – morto em 1980 por um esquadrão da morte ligado ao regime militar de El Salvador, enquanto conduzia uma missa. Romero foi um defensor dos direitos humanos de indígenas e camponeses, e atuou como mediador entre governo e guerrilhas de esquerda. Sua morte fez dele um ícone para a Teologia da Libertação – corrente católica influente junto às esquerdas latino-americanas, sobretudo nos anos 1970 e 1980, antes de ser abafada por uma campanha anticomunista no Vaticano, liderada pelo cardeal alemão Joseph Aloisius Ratzinger, que mais tarde se tornaria Bento 16. “A concepção de Cristo como político, revolucionário, subversivo, não se compagina com a catequese da Igreja”, disse João Paulo 2º aos bispos latino-americanos no início de seu papado.

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A beatificação de Romero, agora, concretiza uma ponte que Francisco vem construindo com a esquerda latino-americana – e que vem dando resultados. O papa ofereceu seus ofícios para que EUA e Cuba reatassem suas relações diplomáticas, e para que o governo da Colômbia e as Farc assinassem um acordo de paz definitivo, após 51 anos de guerra civil. Além disso, tem mediado discretamente as controvérsias entre o venezuelano Nicolás Maduro e a oposição do país. Numa visita à Bolívia, pregou para uma plateia de movimentos sociais campesinos, indígenas e trabalhistas: “Quando a avidez pelo dinheiro tutela todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade, coloca povo contra povo”. Para arrematar, conclamou que “terra, teto e trabalho” são “direitos sagrados” pelos quais vale a pena lutar. “Que o clamor dos excluídos se escute na América Latina e em toda a Terra”.

Com uma contundência inédita, também pediu perdão aos indígenas “não só pelas ofensas da própria Igreja, mas também pelos crimes cometidos durante a chamada conquista da América”. E exortou que os bolivianos “cuidem da Mãe Terra” – numa ecumênica referência a Pachamama, deidade máxima andina.

O político

Os EUA têm a maior população católica entre os países desenvolvidos – 82 milhões de pessoas, ou um quarto da população. Esse grupo vive uma profunda transformação. Americanos católicos são, em sua maioria, descendentes de europeus, como irlandeses, italianos e poloneses. Esse grupo vive há algumas gerações no país, já profundamente integrado. O problema é que ele tem se distanciado da Igreja. Enquanto isso, outro grupo católico cresce rapidamente: o dos imigrantes latino-americanos, que continuam chegando aos milhares nos EUA. São as cartas para uma Igreja Católica numerosa e influente no país mais poderoso do mundo. E, por isso, são uma prioridade para Francisco.

É aí que o Vaticano entra em choque com setores conservadores dos EUA. Para uma ala influente de políticos e pensadores, os imigrantes latinos são a maior ameaça ao “sonho americano”. Segundo Samuel Huntington, ideólogo do neoconservadorismo americano, o fluxo vindo do Sul ameaça dividir os EUA em dois povos e duas línguas diferentes. Um sintoma desse pensamento surge na figura do pré-candidato republicano Donald Trump, que chegou a dizer que imigrantes mexicanos são “criminosos”, “traficantes” e “estupradores”, que devem ser detidos por uma muralha ao longo dos mais de 3 mil quilômetros de fronteira meridional. A conta de erguer o muro, estimada em US$ 8 bilhões, ficaria para o México.

Quando visitou os EUA, em setembro de 2015, Francisco adotou, então, um refrão: “sou filho de imigrantes”. Insistiu que o Congresso, a Suprema Corte e a Casa Branca vissem os imigrantes “como pessoas, olhando para seus rostos e ouvindo suas histórias”. Aos bispos americanos – em geral mais próximos ao conservadorismo de Bento 16 do que do pragmatismo de Francisco -, urgiu que sejam “promotores da cultura do encontro” e que a Igreja se volte às margens da sociedade, onde possa defender os pobres e os marginalizados.

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Ao voltar de uma visita ao México, onde fez uma missa para 230 mil pessoas a apenas 90 metros da fronteira com os EUA, disse que “quem só pensa em construir muros, não pontes, não é cristão” – referindo-se a Donald Trump. Depois do rechaço papal, Trump baixou a bola. “Não gosto de brigar com o papa.”

Francisco aproxima os EUA de Cuba, ao mesmo tempo em que afaga a Rússia. Poucas vezes se viu um papa com tamanha habilidade política

Um dos momentos mais críticos da diplomacia de Francisco, no entanto, não foi em suas relações com políticos, mas com a Igreja Ortodoxa russa, que tem cerca de 150 milhões de fiéis, sobretudo na Rússia. As duas Igrejas não se bicavam desde 1596, quando um grupo de ortodoxos ucranianos viraram a casaca e fundaram a Igreja Greco-Católica Ucraniana, fiel a Roma. As rusgas duraram até o início deste ano, quando Francisco e o patriarca de Moscou, Cirilo, se reuniram em Cuba para uma reconciliação histórica.

O problema é que Washington vê em Cirilo uma extensão de Putin. E faz sentido. Diferentemente da Católica, a Igreja Ortodoxa é dividida em outras 15 Igrejas (entre elas a russa), cada uma com seu respectivo território e chefe, chamado “patriarca”. O fato de esses territórios tenderem a coincidir com as fronteiras de Estados dá às Igrejas ortodoxas um caráter nacional e aos patriarcas uma grande relevância política.

Esse é certamente o caso da Rússia, onde a Igreja substituiu o marxismo-leninismo como ideologia unificadora nacional com a queda da URSS. Depois de ter templos convertidos em piscinas públicas e museus pelos comunistas, o patriarcado de Moscou se tornou aliado de primeira ordem do Kremlin, e essa aliança ganhou força sob o governo nacionalista de Putin. A preocupação americana é que a simbiose Putin-Cirilo vai muito além das fronteiras da Rússia. Nos tempos dos czares, a Rússia considerava-se protetora dos cristãos nas regiões governadas pelos turco-otomanos. Putin retomou essas pretensões na Ucrânia, nos Bálcãs e no Oriente Médio – três das regiões mais explosivas do mundo. E, nas três, os interesses russos chocam-se com os dos EUA.

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Hoje, a Igreja Ortodoxa Russa apoia publicamente a campanha militar russa na Síria. Para o patriarca de Moscou, Putin protege cristãos. Mas os EUA têm uma leitura diferente e temem que, ao se aproximar de Cirilo neste momento, Francisco deixe implícita que aprova o apoio russo ao regime de Bashar al-Assad. Distante de tudo isso, na Ucrânia, fiéis da Igreja Greco-Católica Ucraniana sentem que o papa lhes deu as costas em favor dos rivais ortodoxos russos.

A esta altura, Francisco se lança nas profundezas da geopolítica. Antes de se encontrar com Cirilo, já tinha lamentado os resultados desastrosos da invasão americana ao Iraque; exigira do Ocidente “autocrítica” em relação a terem derrubado militarmente Kadafi na Líbia, o que levou o país à anarquia, e resumiu: “Há uma convergência de análise entre a Santa Sé e a Rússia, ao menos em parte”.

O conservador

A “Igreja pobre e para os pobres” de Francisco foca na África. Mas a estratégia política de Francisco para reerguer a Igreja por lá é um pouco diferente da adotada na América Latina. Seu carro- chefe africano é o “anti-imperialismo”, discurso predominante no pensamento político do continente desde a onda de independências na década de 1960.

“A África é um mártir da exploração”, disse quando voltava de sua visita ao continente. “Talvez pessoas que associem a África apenas com desastres e guerras não compreendam o mal feito à humanidade por certas formas de desenvolvimento. Amo a África, porque ela foi vítima de outras potências.”

Combater o “imperialismo” significa não interferir nos assuntos internos dos países – inclusive quando um governo faz coisas que se chocam com os valores ocidentais. É aí que a diplomacia papal ganha ares polêmicos.

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Ao visitar Uganda, em plena campanha presidencial, encontrou Yoweri Museveni – chefe de Estado que completa três décadas no governo. Francisco não fez nenhuma crítica, nem mesmo velada, à falta de alternância de poder no país. Tampouco se manifestou contra a lei anti gay que Museveni sancionara em 2014, prevendo prisão perpétua no caso de “homossexualidade agravada”. O silêncio foi ainda mais sentido pelo fato de, em outros contextos, Francisco ter dito que “a prisão perpétua é uma sentença de morte escondida” e que não pode julgar uma pessoa “que é gay, busca Deus e tem boa vontade”.

Na “Igreja pobre para os pobres” de Francisco não há lugar para a desigualdade. Mas também não tem para a camisinha

Francisco também se silenciou em relação à condenação da Igreja ao uso de preservativos – embora 7,2% dos ugandenses sejam soropositivos e o uso de camisinha tenha caído entre 2005 e 2011. Quando questionado se a Igreja deveria mudar de posição em relação ao preservativo, tergiversou: “Desnutrição, exploração, trabalho escravo, falta d¿água potável: esses são os problemas; quando eles deixarem de existir, poderemos perguntar se é permissível [usar camisinha]”.

Em seu discurso no aniversário de 70 anos da ONU, Francisco afirmou que devemos reconhecer a existência de “uma lei moral escrita na própria natureza humana”, e que essa lei “inclui a diferença natural entre homem e mulher e o respeito absoluto pela vida em todos seus estágios e dimensões”. Quando governos, segundo Francisco, agem contra essa “natureza” (legalizando o aborto, por exemplo), eles impõem “estilos de vida anômalos, estranhos à identidade de um povo”. Foi aplaudido efusivamente, como sempre.

O carisma e a habilidade política do papa são instrumentos valiosos para o planeta. Graças a essas características, Francisco ergue suas pontes, unindo opostos como Cuba e EUA ou Moscou e Vaticano. Mas também é fato: essas pontes, apesar de sólidas, são sustentadas por tradições que já eram antigas há 2 mil anos, quando a Igreja que Francisco hoje lidera surgiu na beira do Mar da Galileia – onde o apóstolo Pedro, primeiro papa do cristianismo, pescava tilápias e fiéis. E, apesar do ativismo e da popularidade toda, não é Francisco quem vai mudar esses alicerces.

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