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Lugar de louco é no hospício ou em casa?

Profissionais e usuários dos sistema de saúde mental lutam por um outro impeachment e reacendem um debate histórico.

Por Tarso Araújo, editado por Tiago Jokura
Atualizado em 21 ago 2018, 01h46 - Publicado em 4 Maio 2016, 20h15

Era uma vez um hospital de loucos. De fora, parecia uma prisão. Por dentro, também. Cercado por muros e vigias, chegou a ter 3 mil pacientes. Eles dormiam em colchões velhos, infestados de percevejos. Muitos dormitórios não tinham janelas e eram fechados com grades de ferro. Os internos tinham a cabeça raspada e vagavam descalços, maltrapilhos ou nus. Às vezes, passavam meses sem carne. Todos acordavam às 5 da manhã para tomar banho frio. Quem não levantasse, apanhava. A violência era serventia da casa. Pacientes batiam uns nos outros, e quem participava das brigas apanhava dos funcionários. No inverno, muitos morriam de frio. O local era apelidado de “máquina de fazer loucos”. Não, não era um asilo medieval, mas a Casa de Saúde Doutor Eiras, em Paracambi, zona rural do Rio de Janeiro, que funcionou até 2012. “Vi muita gente sair pior do que entrou. E muita gente não saiu, né?”, diz Paulo Sérgio, que passou 20 dos seus 72 anos internado lá. “Vi muita covardia lá dentro, muita coisa triste.”

Em dezembro de 2015, um ex-diretor desse hospital psiquiátrico, o psiquiatra Valencius Wurch Duarte Filho, foi nomeado coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Foi uma loucura. Uma parte ruidosa dos profissionais e usuários do sistema de saúde mental – os ditos loucos – não está convencida de que Duarte Filho seja contra os manicômios, como tem declarado desde que assumiu. Os manifestantes temem retrocessos na política nacional para a área, que desde os anos 1990 tem fechado hospitais psiquiátricos para investir em tratar os pacientes sem confinamento. Essa abordagem é uma conquista da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, movimentos sociais que têm como lema “Nenhum passo atrás, manicômios nunca mais”. A crise em torno do novo coodenador é o mais novo capítulo de um debate que acompanha a medicina há séculos sobre a melhor forma de lidar com a loucura. Ao menos publicamente, ninguém defende locais como o Doutor Eiras, mas a ideia de manter doentes mentais em hospícios ainda é defendida por muitos médicos.

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Coisa do diabo

A vida dos loucos nunca foi fácil. Desde a Antiguidade, atribui-se a loucura a eventos sobrenaturais, como possessões demoníacas, fúria dos deuses e bruxarias. Há registros de 5 mil a.C. sobre um tratamento chamado trepanação: com uma lâmina cilíndrica, fazia-se um furo na cabeça dos doentes mentais para que os maus espíritos escapassem. O procedimento persistiu na Europa até o século 15. Por mais que hoje a ciência entenda a loucura de outra forma, o preconceito contra os doentes mentais ainda é influenciado por essa associação com o diabo e outros misticismos.

Entre os séculos 15 e 18, diversas instituições foram criadas na Europa para abrigar esses “desviados”. A função dos asilos não era tratá-los, mas livrar as famílias do fardo e as comunidades de eventuais distúrbios. Se não dava para “exorcizar” os loucos, ao menos era possível livrar a cidade deles. Essa condição desumana foi bem documentada no asilo de La Bicetre, o maior de Paris no século 17. Os pacientes viviam presos à parede em celas lotadas. As correntes eram curtas demais para que eles pudessem dormir deitados e suas necessidades eram feitas ali mesmo. Como as celas nunca eram lavadas, eles viviam sobre o próprio excremento.

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O primeiro fôlego de mudança surgiria na Revolução Francesa. Com a queda da Bastilha, houve um grande debate sobre o que fazer com o contingente de loucos detidos. O médico Philippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, propôs algo tão revolucionário quanto cortar a cabeça da rainha: tratar bem os loucos. Designado para administrar La Bicetre, Pinel parou de tratar os pacientes como animais, e os resultados foram positivos. Sua abordagem fortaleceu a chamada terapia moral, que influenciaria outras instituições e o desenvolvimento da psiquiatria no século 19. Mas a moda nunca pegou. O que se popularizou foram asilos públicos, com um bando de loucos confinados em condições sub-humanas. Apesar de todo o avanço da medicina e dos direitos humanos, o mundo ainda está cheio de “La Bicetres”. No Brasil, há cerca de 25 mil pacientes em pouco mais de 160 hospitais psiquiátricos.

Em Paracambi, a maioria dos pacientes que saiu do Doutor Eiras foi para outro manicômio na cidade, que não passava de mais uma casa de horrores. “As pessoas ficavam a maior parte do tempo sem atividades, com roupas puídas e banheiros insalubres. Eram amarradas às camas e jogadas em solitárias”, diz Luis Carlos Felício, que coordenou o fechamento da instituição. “À noite, tudo que comiam era uma sopa de casca de legumes”. E isso acontecia em 2014. Depois de uma auditoria, o hospital também foi fechado.

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Bicho de sete cabeças

No Brasil, a luta para acabar com os manicômios começou no fim dos anos 1970. Médicos e enfermeiros passaram a denunciar maus-tratos, más condições de trabalho e a criticar publicamente a “mercantilização da loucura”. O grosso do atendimento a pacientes psiquiátricos era feito por clínicas privadas, que recebiam verba federal proporcional ao total de internações. Quanto mais pacientes mantidos por mais tempo, e quanto menores os cuidados (e custos) clínicos, maiores eram os lucros.

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A má-fé dos proprietários ainda se apoiava numa característica peculiar da psiquiatria entre as especialidades médicas: a falta de critérios objetivos para diagnósticos e internações. Potencialmente, qualquer um podia ser diagnosticado e mantido sob custódia. Durante a ditadura, muitos foram parar no Doutor Eiras por “delírios comunistas”, por exemplo. Em 2010, quando o Ministério Público iniciou intervenção para fechá-lo, a investigação constatou uma grave ausência de prontuários. Muitos estavam internados havia décadas sem justificativa técnica.

Nos anos 1980, o movimento antimanicomial cresceu com a adesão de pacientes e seus familiares. Surgiu nessa época o lema “por uma sociedade sem manicômios” e a demanda por um atendimento que não focasse na internação hospitalar. Os “loucos” se tornam “usuários do sistema de saúde mental” e tratam de exercer sua cidadania, reivindicando seus direitos. O termo manicômio, usado oficialmente para os hospícios criminais, foi escolhido para reforçar a convicção de que hospício é a mesma coisa que prisão.

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“No manicômio você usa uniforme, come no horário, acorda às 5 da manhã. Não existe respeito à singularidade. Isso anula a autonomia e a subjetividade do usuário”, diz a psiquiatra Miriam Abouyd, da Rede Nacional de Luta Antimanicomial. “A privação de liberdade não ajuda ninguém. A liberdade, sim, é terapêutica”, completa.

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Em 1989, as reivindicações do movimento viraram um projeto de lei. Quando a lei da Reforma Psiquiátrica entrou em vigor, em 2001, fechar hospitais psiquiátricos virou política de Estado. Desde então, o modelo tem sido substituído por um atendimento em liberdade, numa rede de atendimento psicossocial cujo objetivo é recuperar a cidadania do louco e reinseri-lo à sociedade.

Nesse modelo, os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) funcionam como pontos de acolhimento aos pacientes. Neles, acontece a triagem e a assistência médica, psicológica e social. Existem unidades gerais e outras especializadas em usuários de drogas ou crianças. Algumas funcionam 24 horas e têm leitos para pacientes em crise. Os usuários podem dormir nessas unidades, mas têm liberdade para sair de dia. A rede é complementada por residências e repúblicas terapêuticas, para quem perdeu vínculo familiar e não pode ficar desassistido. Pessoas que passaram mais de dois anos internadas também são candidatas ao programa “De Volta para Casa”, que garante a 4.400 pessoas uma ajuda mensal de R$ 420 para tocar a vida fora dos hospitais.

LEIA: Novo manual da loucura.

“A gente não quer apenas que o paciente esteja estável, quer que ele esteja incluído no mundo. Não adianta ele estar em casa e não ter amigos, não ter a chave de casa”, diz a terapeuta ocupacional Stellamaris Pinheiro, coordenadora de Saúde Mental de São Bernardo do Campo, cidade referência da atual política nacional. Desde março de 2013, a Secretaria Municipal de Saúde não interna ninguém em manicômio. Há três anos, a prefeitura finalizou o contrato com o último hospital psiquiátrico da cidade. “Mas todos que precisam de cuidados 24 horas estão assistidos. O fato de não usarmos leitos asilares só significa que efetivamos o cuidado em liberdade”, diz Pinheiro.

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Mas o modelo em rede previsto na lei da Reforma Psiquiátrica tem seus críticos. “A ideia era fechar os hospitais psiquiátricos e fazer um modelo extra-hospitalar. Mas isso não foi feito”, diz o médico Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. “O Ministério da Saúde diz há 5 anos que temos 40 milhões de doentes mentais. Não se pode atender essa população toda com 2 mil Caps.”

Outra crítica diz respeito ao fechamento dos hospitais psiquiátricos. “Temos paciente com deficiência mental que entra em agitação, bate, quebra as coisas. Coloca ele no hospital geral?”, argumenta da Silva. “Claro que tem que ter hospital psiquiátrico, como tem de ortopedia e de coração. Mas tem que ser qualificado, um lugar onde eu possa internar a minha mãe.”

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Para os defensores da luta antimanicomial, a qualidade do atendimento não importa: hospitais psiquiátricos serão sempre prisões. “Uma sala fechada permite que o ser humano dê o pior de si, qualquer um pode ser carrasco”, diz o psicólogo Aldo Zaiden, ex-coordenador de combate à tortura da Secretaria de Direitos Humanos. “Quanto mais fechada a instituição, mais  acontecem os crimes de tortura. A parede precisa ser transparente para que as leis funcionem.”

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Temendo retrocessos, os loucos fizeram plantão acampados no Ministério da Saúde exigindo o impeachment do coordenador. No Brasil todo, usuários temem pela interrupção na substituição dos manicômios, dificultando o destino de gente como Paulo Sérgio. Depois que saiu do Doutor Eiras, em 2009, terminou o Ensino Médio, fez Enem e casou-se. É vice-presidente da Associação Maluco Sonhador, de apoio a usuários da saúde mental, e quer cursar Sociologia. “Minha vida melhorou. Passei a ser tratado de forma mais amigável. A vontade de viver voltou”, diz o senhor que viveu num orfanato até os 16 anos e, ao sair, foi morar na rua. “Precisava de um suporte, porque não dava valor à vida. Mas não sei se deveria ter sido internado, porque nunca me considerei louco. Eu só era revoltado. Nada na minha vida dava certo.”

Em Brasília, o acampamento durou quase seis meses, mas não incomodou o alto escalão do governo. Diante da profunda crise política no País, a saúde mental é quase insignificante. Do gabinete, o coordenador Valencius diz que fica. A turma do sanatório geral quer assistir à evolução da liberdade e torce pelo “vai passar”.

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