Desconto de até 39% OFF na assinatura digital
Continua após publicidade

Por que o Brasil virou o terror das montadoras

Nossa indústria automotiva vive uma tempestade perfeita: novos e velhos problemas afugentam marcas como Ford e Mercedes. Veja o que temos de consertar.

Por Zeca Chaves*
Atualizado em 28 abr 2021, 15h36 - Publicado em 18 fev 2021, 16h53

Você vai abrir uma loja de roupas e está em dúvida entre dois shoppings. No primeiro, os produtos pagam taxas maiores, as regras de uso variam de um ano para o outro, os acordos nem sempre são respeitados e o público consome um tipo de roupa que oferece pouca margem de lucro e tem um mercado em queda. No outro shopping, não tem nada disso. Qual você escolheria?

Hoje o Brasil é esse primeiro shopping. Pelo menos quando se fala em indústria automotiva. O setor vive por aqui uma tempestade perfeita, na qual tudo que podia dar errado de fato está dando errado. Além de décadas de problemas estruturais, as montadoras presenciam hoje a maior mudança na mobilidade humana desde a época em que trocamos os cavalos pelos automóveis.

O resultado é que alguns lojistas resolveram tentar a sorte em outro shopping, como fizeram Ford e Mercedes-Benz, que fecharam suas fábricas no Brasil no espaço de um mês. A Audi é outra que pode seguir o mesmo caminho – sua produção está parada sem prazo para voltar.

Para elas, pintar o Brasil como o grande vilão da história ajuda a camuflar um histórico de decisões erradas. Afinal, outros fabricantes prosperaram nas mesmas condições de mercado. Mas as que se foram e as que ficaram concordam em uma coisa: o Brasil é uma coleção de desafios.

Continua após a publicidade

Começa pelo custo Brasil. Ele é especialmente cruel num segmento que vende um produto que exige quatro anos da ideia à loja, e que é a segunda aquisição mais cara da vida do consumidor médio. Engana-se quem acha que custo Brasil é conversa fiada de empresários incompetentes. O próprio governo brasileiro fez o cálculo em 2019: ele custa às empresas R$ 1,5 trilhão por ano (22% do PIB).

O custo Brasil é tudo aquilo o que torna mais caro produzir aqui em relação a outros países. E no topo desse ranking estão os impostos: são caros, excessivos e complicados de calcular. Estima-se que 50% das empresas exportadoras poderiam pagar menos tributos se conhecessem todos os meandros da burocracia tributária. Os impostos diretos representam até 36% do preço de um carro feito no Brasil. Nos vizinhos Chile e Argentina, a média é de 20%. Na Europa, varia de 16% a 18%. Nos Estados Unidos, 6,8%.

A complexidade tributária é de enlouquecer qualquer empresa. Há tantas alíquotas, regulações e exceções que algumas montadoras têm uma equipe contábil maior do que o time de engenharia. Segundo um estudo do Banco Mundial, o Brasil é o país onde se gasta mais tempo para calcular impostos, 1.501 horas por ano – a Argentina precisa de 312 horas; o Chile, de 296. Evidentemente, tudo isso vai se refletir no preço final do veículo.

Continua após a publicidade

Já houve deputado querendo regular estepe e obrigar que cada modelo de carro ficasse dez anos à venda.

O imposto influencia até na engenharia dos carros. Como o ICMS é calculado pela cilindrada, um automóvel com motor de 1.000 cm³ (alíquota de 7%) custa bem menos em impostos do que um de 2.100 cm³ (até 25%), apesar de a construção dos dois motores ser muito similar. Portanto, a montadora pode ser levada a optar pela versão menos potente, apesar de inadequada à proposta do modelo.

Outras vezes, a decisão da engenharia é fruto de mero capricho pessoal. Foi assim em 1993, quando o então presidente Itamar Franco pressionou a Volkswagen para ressuscitar seu querido Fusca. Já que era uma esculhambação, o governo deu sua mãozinha: ao criar o IPI de 0,1% para motores 1.0, deixou uma exceção para o 1.6 refrigerado a ar. Adivinha qual era o único automóvel que se encaixava na regra? Mas o mercado é sempre soberano: o Fusca era tão defasado para a época que não durou três anos.

Continua após a publicidade

No fim de 2011, o custo Brasil meteu a mão de novo nas regras do jogo. Dessa vez, o propósito parecia nobre: evitar que a indústria fosse dizimada pelos automóveis chineses que estavam chegando. Bem, o discurso do governo brasileiro era esse. Na prática, os modelos da China representavam só 2% das vendas. Mas já era tarde. Todos os importados receberam um super-IPI de 30% adicionais. Resultado: os veículos chineses (e de outros países de fora do Mercosul) ficaram de fora da brincadeira, a concorrência foi reduzida e até importadores estabelecidos havia anos saíram feridos no fogo cruzado.

E governantes parecem não aprender. Neste ano, o Estado de São Paulo aumentou o ICMS dos veículos usados em 207%, mesmo em plena crise.

As surpresas da burocracia pipocam o tempo todo e as montadoras nunca sabem quando uma dessas jabuticabas arruinarão o bom senso mercadológico. É só dar uma espiada em projetos de lei que nasceram no Congresso. Já houve deputado querendo regular o tipo de estepe dos carros, acabar com as autoescolas e até obrigar que cada modelo ficasse à venda no mínimo por dez anos. Consegue imaginar alguma proposta dessas para a indústria de celulares?

Continua após a publicidade

Quando vingam, essas leis excêntricas distorcem a lógica dos negócios. Poucos sabem, por exemplo, que não podemos ter postos de combustível com autoatendimento, como no restante do mundo, só porque nossa legislação obriga a contratação de frentistas.

O custo Brasil vai além de impostos e insegurança jurídica. Os encargos dos salários são altos (é o dobro de média da OCDE, que reúne os países mais ricos), a qualificação da mão de obra é baixa (estamos em 80º no ranking mundial) e nossa logística é cara e dependente de rodovias malconservadas.

Continua após a publicidade

Não bastassem tantas adversidades, existe outra tão ou mais devastadora. E nesta o Brasil não tem culpa nenhuma. O tsunâmi mundial que está tirando o sono da indústria automotiva é a mudança de paradigma do mercado.

Em 2018, a Ford já havia decidido sua estratégia: sair dos automóveis comuns (demanda em queda, lucros menores) e investir nas picapes e SUVs (demanda em alta, lucros maiores) e nos elétricos (mercado do futuro). Foi aí que o Brasil dançou: as fábricas nacionais da Ford só produziam veículos pequenos, que dão uma margem de lucro baixa.

Quer dizer que o país está destinado a ver outras marcas seguirem os passos de Ford e Mercedes? Se abrir mão de desenvolver uma política racional para o setor, certamente. Foi o que aconteceu com a Austrália. Nos anos 1970, ela fabricava meio milhão de veículos por ano (exportando até para cá). E hoje o país é um simples importador de automóveis. O futuro das montadoras por aqui, em suma, só depende de um fator: o Brasil decidir que tipo de shopping quer ser.

*Zeca Chaves é jornalista especializado no setor automotivo, colunista de diversas publicações do segmento e coordenador do Observatório Nacional de Segurança Viária.

 

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 6,00/mês

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 14,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.