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E se as vacinas nunca tivessem sido inventadas?

Mortalidade infantil, baixa expectativa de vida, crescimento demográfico estagnado e atrasos sociais e tecnológicos. Sem vacinas, faltaria um pilar da civilização contemporânea.

Por Fábio Marton
Atualizado em 14 fev 2021, 12h25 - Publicado em 14 fev 2021, 12h23
É

simples: o mundo tal qual a gente conhece não existiria. A história da imunização é antiga. Começa em 1796, com uma história bem conhecida: o médico britânico Edward Jenner percebeu que vacas infectadas com a versão bovina da varíola tinham pústulas nas tetas que infectavam os fazendeiros com a doença.

Mas era uma versão branda da varíola: a versão do vírus especialista em gado não pegava com força total em humanos. Causava apenas algumas feridas nas mãos, e tinha um efeito colateral inesperado: gerar memória imunológica contra a varíola humana, que mata para valer. Nascia assim a primeira vacina – do latim vaccinus, “que vem da vaca”.

Por quase um século, ninguém soube exatamente por que essa tática de imunização pioneira funcionava. Já se sabia da existência de micróbios – o primeiro a observar bactérias (e nossas próprias células) foi o holandês Anton van Leeuwenhoek, em 1670, com microscópios que ele própro fabricava. Mas ninguém pensava que aqueles minúsculos seres, pegando carona na água, nos alimentos e nos espirros, fossem responsáveis por doenças. A culpa era atribuída aos chamados miasmas: ares de cheiro pútrido.

Isso mudou com a aceitação universal da teoria dos germes, no final do século 19, pelo trabalho de figuras como John Snow, Louis Pasteur e Robert Koch. Koch, diga-se, foi o primeiro a estabelecer um vínculo causal entre uma doença e seu micróbio. No caso, o bacilo de Koch, responsável da tuberculose. Pasteur, por sua vez, não só criou o processo de pasteurização, usado até hoje para eliminar micro-organismos de laticínios, como criou a segunda vacina, 82 anos depois de Jenner: a da raiva, em 1880.

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Ao longo do século 20, uma mistura de imunização, saneamento básico, tratamento de esgoto, antibióticos e outras benesses sanitárias – todas decorrentes de uma compreensão inédita do mundo microscópico – fez a expectativa de vida crescer no mesmo ritmo em que a mortalidade infantil caiu.

Um mundo sem vacinas, portanto, seria acima de tudo mais vazio. A varíola disputa com a malária o posto de pior doença endêmica da história. Uma doença endêmica é aquela que afeta um local de maneira incessante por décadas ou séculos. Algo diferente da peste bubônica, por exemplo – que, embora seja mais letal, ocorre em surtos e desaparece. Em seu último século antes da erradicação, entre 1880 e 1980, a varíola tirou 500 milhões de vidas. 5 milhões por ano. Como a população atual é o dobro da de 1980, as mortes anuais por varíola, em uma conta rápida, equivaleriam a cinco pandemias de Covid-19. Eis o mundo apenas 40 anos atrás. Hoje, graças à vacina, essa talvez seja a única doença cujo verbete na Wikipedia começa no passado: “A varíola foi uma doença…”

A varíola maior (manifestação mais grave da enfermidade, em oposição à varíola menor) matava cerca de 30% dos infectados. Mais da metade deles eram crianças pequenas, e essa era só a ponta do iceberg de micróbios que vitimavam bebês. Na virada do século 18 para o 19, cerca de um terço das crianças morria em seu primeiro ano de vida, e metade antes de chegar aos 15 anos.

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Ou seja: no mundo anterior à imunização, perder um recém-nascido era um fato corriqueiro. Diziam que a criança “não vingou”. Estima-se que a gotinha contra a poliomielite tenha evitado paralisia em 16 milhões de pessoas. Os imunizantes contra difteria e tétano salvaram 60 milhões de vidas. Maurice Hilleman, criador de oito vacinas que hoje são parte do calendário infantil brasileiro, evitou 129 milhões de mortes.

Sarampo, caxumba, hepatite B, catapora, meningite… com esse elenco à solta, quão menor seria a população mundial? Podemos fazer uma conta com o crescimento demográfico anterior à revolução sanitária. Em 1500, a população mundial era de 461 milhões de pessoas. Em 1800, 989 milhões. Foram 300 anos para dobrar. Nesse ritmo, estaríamos com no máximo 2 bilhões de pessoas hoje – não 7,8 bilhões. Esse tanto de gente a menos teria um impacto positivo no meio ambiente. Não que isso seja um alívio. É que os padrões de consumo seriam bem mais humildes em um mundo com industrialização e desenvolvimento tecnológico menos acelerado. Menos gente = menos avanços.

Ao avaliar o impacto da imunização na história humana, é importante considerar não só o número bruto de mortes como também um conceito mais amplo, o burden of disease – “fardo da doença”. Essa é uma métrica que considera anos de vida saudável e produtiva perdidos porque ficamos doentes.

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Até um terço dos sobreviventes de varíola ficavam cegos. Vítimas graves de pólio com frequência passavam a vida em cilindros de pressão controlada, chamados “pulmões de aço”, para conseguir respirar – quando tinham acesso a tal maquinário. Um mundo assolado por doenças não é só um mundo com menos gente para ter boas ideias. É um mundo em que os adultos se preocupam mais em sobreviver do que em inovar.

O atraso também se aplica à esfera social. A pressão para ter filhos é muito maior quando boa parte deles não alcançará a maioridade. O que comprometeria os direitos das mulheres e sua entrada no mercado de trabalho. Se muitas famílias, hoje, têm 10 ou 15 tios-avós, é porque os pais dessas ninhadas fizeram planejamento familiar com a mentalidade do mundo pré-vacina – mas os bebês, felizmente, sobreviveram graças ao avanço da medicina no século 20.

Um mundo sem vacinas é um mundo com menos idosos – e menos males que se manifestam em idades avançadas. Por volta de 1900, o câncer era apenas a oitava maior causa de morte. A maioria das pessoas padecia por doenças infecciosas antes de ter problemas que se manifestam em longo prazo. Sem imunização, tumores e doenças degenerativas como Alzheimer não estariam no centro das pesquisas científicas voltadas à saúde. E suas vítimas sofreriam mais com elas do que já sofrem hoje.

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Por fim, a imunização também facilita viagens internacionais e é obrigatória em vários percursos. Sem ela, restaria deixar os passageiros de avião em casas de quarentena – o que mata o propósito das viagens por via aérea, que é justamente a velocidade.

Assim, um mundo sem vacinas não seria tão diferente de uma paisagem da época de D. Pedro 2º: mulheres olhando atrás de janelas pesadas, um navio a vapor à distância, ruas de terra. Uma carroça de burro puxa uma pilha de caixõezinhos de crianças, produto sempre em alta demanda. Em algum dia de março ou abril de 2020, jornais impressos trariam a notícia de uma epidemia misteriosa que está arrasando terras asiáticas, o que determinaria o fechamento dos portos.

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