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Elon Musk e a Cia. das Índias Orientais: um conto de duas oligarquias

Em 1750, uma empresa privada com PIB e exército dignos de um país invadiu e assumiu o controle de uma das civilizações mais antigas do mundo. Precisamos garantir que a exploração do espaço não ocorra nesses termos.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 jan 2025, 14h11 - Publicado em 31 jan 2025, 14h00

Era uma vez uma empresa muito rica, que investia na tecnologia mais avançada de seu tempo: naves que alcançam outros planetas.

Suas engenhocas ainda não eram das mais confiáveis – décadas de protótipos e fracassos ainda seriam necessárias para minimizar acidentes e baratear a operação.

Mas os acionistas sabiam que esses são percalços comuns do avanço tecnológico. A firma ainda era a vanguarda; um cavalo valioso na bolsa. 

Os dirigentes dessa empresa se aliaram a um político poderoso – que lhes deu carta branca para colonizar até Marte, se quisessem.

Era uma boa opção: o governo precisava de naves para alcançar as riquezas naturais de lugares distantes, mas concorrer com o setor privado nesse setor seria caríssimo e infrutífero. Se não pode vencê-los…

Esse parece um resumo da paquera entre Trump e Musk, CEO bilionário da SpaceX – e responsável pela logística de muitas missões atuais da Nasa, que não tem uma tecnologia própria de lançamento desde a aposentadoria dos ônibus espaciais em 2011.

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Mas essa história é outra, Porchat: a da Companhia das Índias Orientais, uma empresa de capital aberto (sim, já existiam ações nessa época) fundada em Londres no ano de 1600 sob os auspícios da Rainha Elizabeth original, aquela que foi contemporânea de Shakespeare.

Ela concedeu aos sócios fundadores o monopólio de exploração econômica de tudo que existisse além do Cabo da Boa Esperança. 

Buscar chá, especiarias e tecidos no Oriente era tão perigoso quanto chegar à Lua hoje. Especialmente se você não fosse de Portugal, que era o Vale do Silício da tecnologia náutica na época em que Cabral chegou aqui: dos estaleiros da terrinha saíam as melhores embarcações do mundo.

Quando a Holanda mandou sua primeira expedição para a Ásia para concorrer com os lusitanos, apenas 12 dos 22 navios voltaram.

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De 1600 em diante, a concorrência apertou e Portugal perdeu a dianteira econômica na Europa. Tanto holandeses como ingleses aprenderam a fazer bons navios. E a Companhia das Índias Orientais, aos poucos, foi obtendo poderes que nenhuma outra empresa havia tido na história da civilização.

O resto é História. Uma péssima história. Os dados que darei abaixo foram extraídos do brilhante livro Anarquia (2019), do historiador William Dalrymple.

Em seu auge, por volta de 1800, a EIC (sigla de East India Company) chegou a manter um exército particular com mais de 260 mil homens, o dobro do efetivo das forças armadas inglesas na época. Esse efetivo invadiu e colonizou todo o território que hoje corresponde à Índia, ao Paquistão e a Bangladesh entre 1750 e 1800.

Para os padrões da época, o feito equivalente à promessa da SpaceX de colonizar o Planeta Vermelho. Com a diferença de que na Índia havia marcianos: uma quebra-cabeça de etnias com tradições e costumes milenares e um PIB imenso, que foi submetida ao jugo violento dos acionistas ingleses. Uma das primeiras palavras indianas que acabou adotada na língua inglesa foi a gíria loot – “saquear”. 

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O escritório da empresa em Londres tinha apenas cinco janelas e 35 funcionários. Enquanto isso, Robert Clive – o chefão da EIC em Bengala – foi responsável pela morte de 10 milhões de indianos em uma única crise de fome em 1770.

A Batalha de Plassey, em 1757, seguida de uma pilhagem massiva, rendeu sozinha o equivalente a 23 milhões de libras para Clive e 250 milhões para a empresa, em valores atuais (não surpreende que ele tenha se suicidado aos 49 anos, em depressão). 

A empresa, claro, era grande e importante demais para quebrar. Controlava metade do comércio mundial das commodities valiosas na época: algodão, seda, corantes, açúcar, sal, chá, especiarias.

Muitos dos ricaços que detinham suas ações eram também congressistas em Londres ou tinham cargos públicos importantes, o que criou uma fronteira tênue entre Estado e setor privado: se algo era bom para a EIC, não havia dúvida de que o tal algo passaria pelo crivo do Parlamento.

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Quando expandiu suas operações para a China, viciou a população local em ópio, droga precursora da heroína e da morfina. Para forçar as autoridades chinesas a legalizar a substância e obter o monopólio do tráfico, a EIC entrou em guerra com as autoridades locais e venceu, o que lhes deu o território de Hong Kong.

O comércio de chá com os EUA desencadeou a Guerra de Independência na cidade de Boston, em partes porque os colonos aqui do continente americano não queriam ter o mesmo destino da Índia. 

Em 1772, quando a EIC ameaçou falir – em partes porque a já mencionada crise de fome na Índia em 1770 acabou com a mão de obra da empresa e gerou uma queda brutal em seus lucros –, houve um caos econômico equivalente ao da crise de 2008: 30 bancos importantes quebraram em sequência.

A Coroa Britânica não teve dúvida: injetou dinheiro na empresa para salvá-la, como os EUA fariam em Wall Street mais de dois séculos depois. 

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Conto essa história para tornar explícito o que Joe Biden falou com elegância em seu discurso de despedida do mandato, em 15 de janeiro: “Hoje, está tomando forma nos EUA uma oligarquia de extrema riqueza, poder e influência, que ameaça literalmente toda nossa democracia, nossos direitos e liberdades básicas e uma chance justa para todos prosperarem.” 

Oligarquia, na definição da Wikipedia, é “um pequeno grupo de interesse ou lobby que controla as políticas sociais e econômicas em benefício de interesses próprios”. Elon Musk já tem, efetivamente, um cargo no governo Trump. E Mark Zuckerberg mudou as diretrizes de moderação de conteúdo das redes sociais da Meta para agradar o novo presidente. 

O Google e a Microsoft doaram US$ 1 milhão cada um para o comitê de posse de Trump em 2025. Não parece grande coisa – o Google também doou para Biden e para a posse original de Trump, em 2017 – mas marca uma mudança notável de postura considerando que seu CEO Sundar Pichai, que ironicamente é indiano, já havia chamado a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de “antítese da democracia”.

Caso a humanidade consiga lidar razoavelmente bem com a ameaça das mudanças climáticas, a colonização de Marte será um objetivo realista para daqui um século, quando a tecnologia aeroespacial já terá avançado brutalmente.

Essa é a mesma a quantidade de tempo que separou a fundação da EIC de sua invasão da Índia. Ainda que o Planeta Vermelho seja caro demais para se tornar economicamente viável, ainda há outros ramos potencialmente lucrativos, como a mineração de asteroides.

O Ocidente precisa garantir que a exploração econômica e científica do espaço ocorra em prol de toda a humanidade e seja regulada por figuras minimamente idôneas.

Caso contrário, a SpaceX tem potencial para se tornar a Companhia das Índias do século 22: uma empresa privada indiscernível do poder público americano, que controla uma fatia importante da economia mundial e exerce poderes de Estado em lugares distantes dos olhos e do escrutínio da opinião pública. Você já sabe como isso acaba.

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