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A dor que não passa nunca

Fui descer a escada de casa e caí. Quebrei um ossinho. Não parecia muito grave. Até que uma série de cirurgias transformou minha vida para sempre

Por Fernanda Ferrairo (edição: Bruno Garattoni)
Atualizado em 2 fev 2021, 13h24 - Publicado em 26 Maio 2015, 20h45

Faltavam só três dias para a minha formatura na faculdade de medicina. As aulas já tinham acabado, então acordei tarde naquele dia, o fatídico 8 de novembro de 2010. Eu tinha 23 anos. Meu único compromisso era ir cortar o cabelo. Descendo as escadas da minha casa rumo ao cabeleireiro, escorreguei, caí e fraturei o cóccix. Eu não sabia, mas ali começava uma nova fase da minha vida. Uma fase que seria dominada por uma única sensação: dor. Dor ininterrupta, constante, eterna, que me acompanha por todos os minutos de todos os dias. Uma dor que não passa nunca.

No começo, eu só sentia dor quando sentava. Já era o suficiente para interferir em várias tarefas diárias e me deprimir bastante. Os médicos resolveram fazer uma cirurgia de remoção do cóccix. Foi um grande erro. A dor só aumentava, e começou a se espalhar pelo meu corpo – alcançou a perna direita, a lombar, a pélvis. Na tentativa de corrigir o estrago, me submeti a mais uma operação. E outra, e outra, e mais outra. Em três anos, passei por cinco cirurgias na coluna. O plano de saúde não cobria, e minha família gastou mais de R$ 100 mil. Nenhuma operação deu certo. Mas a última… foi especial. Não apenas não resolveu o meu problema. O elevou à vigésima potência.

Os médicos me prometeram uma solução quase milagrosa. Seu nome: neuroestimulador medular. A essa altura da história, meu medo de cirurgias já era considerável, haja vista que as anteriores não tinham eliminado minha dor. Apenas me deixado com cicatrizes feias e tendo de tomar remédios fortes para funcionar no dia a dia. Mas o lero-lero médico novamente me convenceu de que dessa vez seria diferente. O neuroestimulador seria implantado por meio de um procedimento minimamente invasivo, rápido e com sedação mínima. O aparelhinho ficaria alojado no espaço epidural, dentro da minha coluna, e seria alimentado por uma bateria implantada na minha barriga. Não era pouca coisa. Mas eu aceitei, porque a promessa era boa. O neuroestimulador aplicaria pulsos elétricos sobre a minha medula. Isso bloquearia os sinais de dor, impedindo que chegassem ao cérebro. E eu não sentiria mais dor.

Sete meses depois do procedimento, a dor veio com tudo. Tinha uma força que não consigo descrever. De zero a dez, era um gritante dez.

Antes de prosseguir com a história, preciso fazer um parêntese importante. Um paciente de dor crônica que um dia foi saudável, ao ouvir as palavras “livre de dor”, “vida normal novamente”, “retorno às atividades”, “alívio significativo”, “risco pequeno” e qualquer coisa que indique o fim, ou pelo menos a atenuação de uma vida de sofrimento físico, se agarra a isso com todas as forças que tem. Se enche de vida. Começa a sonhar acordado. Ele tentará qualquer coisa que lhe oferecerem. Eu, se um dia acordar sem sentir dor, provavelmente serei mais feliz do que todas as pessoas que conheço – somadas. É um clichê, mas os clichês existem por uma razão: não se dá valor à saúde até que ela seja perdida. Saúde significa liberdade. Se eu soubesse desde sempre o que só descobri há quatro anos, teria aproveitado cada milésimo de segundo dessa liberdade. Mas estou divagando. Ficar no terreno do “se” nunca levou ninguém a lugar algum.

Na mesa de cirurgia

Antes de implantar o neuroestimulador, os médicos precisavam fazer um teste. Colocar um catéter com analgésicos (opioides, os mais fortes que existem) e metilprednisolona, um anti-inflamatório, no meu espaço epidural. Se isso aliviasse minha dor, significava que eu era boa candidata ao implante. O problema é que não aliviou. Aconteceu o contrário. Comecei a sentir uma dor excruciante, beirando o insuportável, no local de inserção do catéter. Ninguém conseguiu entender o porquê. Nem meus médicos e nem eu mesma, que, afinal, também já havia me formado médica. O catéter foi retirado, e a dor aguda foi cedendo. Mas deu lugar a uma dor intermitente, que piorava muito quando eu fazia esforço, na coluna dorsal (adjacente às costelas). Era ainda mais debilitante. A menor atividade física, como andar ou tomar banho, passou a me deixar de cama. Tive que sair do pilates, que me ajudava muito com as outras dores. Não tinha mais força nos membros. A explicação que os médicos me deram à época – e, veja bem, todos eram especialistas em dor crônica e trabalhavam num hospital privado conceituado e caro – foi que era apenas a dor crônica anterior seguindo seu curso natural e sensibilizando todo o meu sistema nervoso central.

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A explicação não me pareceu razoável. Afinal, antes da cirurgia essa nova dor não existia. Ela começou exatamente depois da operação.

Comecei a sentir muita dor, todos os dias, o tempo todo. A dor crônica é um emprego de 24 horas por dia e sete dias por semana. Eu nunca deixo de senti-la. Em algumas posições sinto mais; em outras, menos. Mas sempre. Ela também tem uma faceta muito cruel: é invisível. Como as pessoas não conseguem ver a sua dor, acham que é neurose, preguiça, fingimento. É complicado convencer alguém de que você sofre de algo que não aparece nos exames. Nós podemos estar morrendo por dentro, desabando, mas se estivermos com um sorriso no rosto, acharão que está tudo bem. E o comportamento em relação à dor é uma faca de dois gumes: se o doente sorri, é porque deve estar bem. Não tem dor. Se chora, reclama e se contorce a cada movimento doloroso, é porque é uma pessoa negativa, só sabe reclamar. É fraco.

Outros sintomas foram aparecendo. Dor na coluna dorsal, mudanças de sensibilidade na perna esquerda, zumbido constante nos ouvidos, visão turva, dificuldade para urinar, congestão nasal, febre constante, sudorese excessiva, espasmos musculares, inchaço em pés e mãos, dores articulares e perda progressiva de força nos membros inferiores. Numa determinada semana, cerca de sete meses após o tal teste e já com todos esses sintomas, a “nova” dor na coluna me quebrou. Ela veio com uma intensidade que eu não consigo descrever. Talvez seja melhor usar a escala de dor, de zero a dez, que os médicos usam com os pacientes. Minha dor era um gritante dez.

Dessa vez, eles tentaram parar de me dar explicações furadas e resolveram fazer todos os tipos possíveis de exame. Para meu desespero, todos vieram normais. Enquanto isso, eu não saía da internet. Pesquisava sintomas e síndromes raras. Numa dessas pesquisas, encontrei um artigo que descrevia com clareza matemática o que eu sentia. Era sobre uma doença chamada aracnoidite adesiva. Eu não cheguei a estudá-la na faculdade, apesar de ter visto as meningites mais comuns.

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A aracnoidite é um tipo de meningite. As meninges são as membranas que envolvem e protegem o sistema nervoso central. Elas são três: a dura-máter, a aracnoide e a pia-máter. A aracnoidite adesiva é uma doença na membrana intermediária, a aracnoide.

Me lembrei do relato de um homem, num dos fóruns sobre dor que eu acompanhava. Na tentativa de conter a dor no cóccix, ele fez infiltrações de corticoide no espaço epidural. E desenvolveu aracnoidite adesiva. Uma de suas principais causas é a injeção de corticoide epidural, como a que fizeram em mim. É que, dependendo da composição do corticoide, ele pode atravessar a barreira da meninge e ir parar dentro dela (o que também pode acontecer se o médico perfurar acidentalmente a membrana dura-máter). Isso irrita a membrana aracnoide, e consequentemente os nervos. Eles iniciam um processo inflamatório e, depois, um processo cicatricial, que faz com que a membrana fique repleta de adesões e os comprima. Os feixes nervosos grudam uns aos outros e às meninges. Isso provoca uma dor extremamente resistente a todo tipo de analgésicos e anti-inflamatórios.

Os médicos aventaram as mais diversas possibilidades para a minha dor – inclusive a de eu estar louca ou fingindo. Tentaram me colocar na psicoterapia. Não fui. Não por achar que seria inútil, mas porque a minha condição não estava “na cabeça”, como insinuaram. Psicoterapia poderia me ajudar a lidar com a dor, mas jamais tirá-la. E antes de aprender a lidar com ela, eu precisava provar que ela existia. Tentaram persuadir meus pais de que eu não tinha o que achava que tinha, duvidaram da intensidade da dor, me encaminharam para outras pessoas e sumiram. Pararam de atender minhas ligações. Não sei deles até hoje. Minha vida foi virada de cabeça para baixo e a deles continuou como sempre foi. Provavelmente nem lembram que existo.

Um ano após o início dos sintomas, minha aracnoidite finalmente foi diagnosticada. Ela apareceu nos exames de ressonância magnética. Não foi surpresa para mim. Foi o pior “eu já sabia” que amarguei na vida.

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A aracnoidite adesiva é uma das doenças mais subdiagnosticadas da atualidade. É por isso que ninguém ouviu falar dela, e não por ser “rara”, como a comunidade médica acredita e quer que acreditemos também. Um motivo importante para varrê-la para baixo do tapete é o fato de ser uma doença essencialmente iatrogênica – ou seja, causada por erro médico. Ela pode ter outras causas, como meningites infecciosas, mas em pequena parcela dos casos. Na maioria das vezes, ela é causada por intervenções cirúrgicas, que médicos recomendam ao menor sinal de problemas na coluna. Os pacientes acabam recebendo diagnósticos genéricos, como fibromialgia ou FBSS (failed back surgery syndrome – síndrome da cirurgia fracassada de coluna), e nunca descobrem o que realmente têm. Mesmo assim, nos EUA – país campeão em intervenções cirúrgicas na coluna – estima-se que 11% dos casos de FBSS sejam, na realidade, aracnoidite adesiva. Isso significa que, nas últimas cinco décadas, houve pelo menos 1 milhão de casos de aracnoidite naquele país.

Os médicos não acreditavam em mim. Achavam que eu estava louca ou fingindo. Tentaram me colocar na psicoterapia.

Lutarei contra a doença pelo resto da vida. Não consigo mais trabalhar, praticar atividades físicas ou fazer muita coisa que não seja estar deitada ou sentada em uma cadeira reclinável. Tomo diversos remédios para suportar a dor. Mas não perdi a esperança no surgimento de uma cura ou, ao menos, de um tratamento eficaz. A ciência não falhou comigo; as pessoas, sim.

Eu gostaria que alguém tivesse me pedido, naquele 8 de novembro de 2010, para que não descesse as escadas da minha casa. Sonho acordada com a minha vida antes da lesão o tempo todo. Vejo fotos antigas e fico desejando – como se, inconscientemente, achasse que o desejo possa se tornar realidade – voltar ao dia em que elas foram tiradas. Penso no passado o tempo inteiro. “Com o que eu me preocupava, e do que tanto reclamava, quando era saudável? O que podia ser tão ruim?” Nunca consigo encontrar respostas. Não me lembro de nenhum sofrimento que se compare ao que vivo hoje.

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Por outro lado, quando não estou desejando voltar à minha vida pré-lesão, consigo manter algum grau de otimismo. Aprendi a dar mais valor ao que tenho. Um dia com pouca dor é um dia feliz. Não preciso de mais do que isso para ficar de bom humor. Quando um problema é grande demais, os outros esmaecem. Hoje me preocupo pouco com coisas pequenas. E sei que não falo só por mim, mas por muitos doentes crônicos – sejam eles de dor ou de outra coisa. Nossa luta não é só contra a doença, mas também em busca de esperança, paciência e vontade de viver. E eu, mesmo com toda a dor, consegui encontrar as três.

Design: Flávio Pessoa Foto: Raoni Maddalena Modelo: Ana Hatori

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