Adeus, Papanicolau: como funciona o novo teste de HPV no SUS
Exame detecta vírus ligado ao câncer do colo do útero antes de surgirem lesões – e de forma bem menos desconfortável.

Se você é mulher e odeia fazer o Papanicolau, há boas notícias. O exame mais temido das consultas ginecológicas começa a ser substituído no Sistema Único de Saúde (SUS) por um teste de biologia molecular muito mais sensível, moderno e totalmente desenvolvido no Brasil.
Chamado de teste DNA-HPV, o método identifica o papilomavírus humano (HPV) – principal causa do câncer do colo do útero – antes mesmo de surgirem lesões.
A tecnologia detecta 14 genótipos do vírus, incluindo os tipos 16 e 18, responsáveis por cerca de 70% dos casos da doença. Produzido pelo Instituto de Biologia Molecular do Paraná, ligado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o exame já está disponível em unidades do SUS de diversos estados e será gradualmente ampliado para todo o país até 2026.
De acordo com o Ministério da Saúde, o câncer do colo do útero é o terceiro mais frequente entre as mulheres brasileiras, provocando cerca de 20 mortes por dia, especialmente entre aquelas com menor acesso a serviços de saúde.
O desenvolvimento da doença é lento e ocorre a partir de infecções persistentes pelo HPV, que são comuns: “Estima-se que 80% das mulheres sexualmente ativas tenham contato com o vírus ao longo da vida. Mas a maior parte dessas infecções é resolvida pelo próprio organismo. É a infecção persistente que causa danos celulares contínuos e pode evoluir para o câncer do colo do útero”, disse à Super a patologista clínica Annelise Wengerkievicz Lopes, diretora da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML).
Ou seja: a presença do HPV não significa que a mulher tenha câncer. No entanto, é necessário acompanhamento e exames adicionais. “Podemos diagnosticar muito antes do desenvolvimento da doença, permitindo um rastreio precoce e mais eficaz”, diz Annelise.
O que muda no diagnóstico
Durante décadas, o principal método de rastreamento foi o Papanicolau, criado em 1928 pelo médico grego George Papanicolaou. Ele se baseia na coleta de um raspado de células do colo do útero, que são colocadas numa lâmina e analisadas por um profissional treinado para visualizar alterações que possam ser sugestivas de transformação para o câncer.
“O objetivo é detectar essas alterações antes que elas se tornem um câncer, porque o tratamento é muito mais favorável quando a doença ainda não se desenvolveu. Mas, por depender da observação ao microscópio de um especialista, o método traz alguns desafios: é preciso ter profissionais experientes, e há variação entre observadores – muitas vezes os diagnósticos não são totalmente concordantes”, afirma a patologista.
Já o teste de DNA-HPV utiliza PCR (reação em cadeia da polimerase), técnica que amplifica pequenas quantidades de DNA do vírus, tornando possível detectá-lo com precisão. É o mesmo princípio usado nos testes de Covid-19 e permite analisar centenas de amostras ao mesmo tempo, identificando os tipos de maior risco.
A coleta é parecida com a do Papanicolau, envolvendo a secreção do colo do útero, mas o procedimento tende a ser mais rápido e menos desconfortável. Isso porque, ao contrário do exame tradicional, não é necessário raspar muitas células nem espalhá-las manualmente em uma lâmina.
A amostra vai diretamente para um tubo com líquido conservante e segue para análise laboratorial, onde se busca apenas o DNA do vírus, não alterações celulares. Quando o teste molecular indica infecção, o Papanicolau permanece como exame de segunda etapa, fundamental para identificar qualquer modificação celular precoce, garantindo que a paciente receba o acompanhamento adequado antes do desenvolvimento de lesões ou câncer.
Outra diferença é o intervalo entre os exames. “Com o Papanicolau, a recomendação era repetir o teste a cada dois ou três anos. Com o teste de HPV, esse intervalo passa a ser de cinco anos, porque ele tem um valor preditivo negativo muito bom – ou seja, se o resultado é negativo, a probabilidade de câncer é muito baixa”, explica Annelise.
Como vai funcionar no SUS
De acordo com o Ministério da Saúde, o teste será inicialmente ofertado em 14 cidades de 11 estados brasileiros, além de Brasília: Rio de Janeiro (RJ), Ribeirão Preto (SP), Uberaba (MG), Juiz de Fora (MG), Fortaleza (CE), Camaçari (BA), Palmares (PE), Recife (PE), Ilha de Combu (PA), Porto Velho (RO), Aparecida de Goiânia (GO), Pelotas (RS), Rio Branco do Sul (PR) e Curitiba (PR).
Para ter acesso ao exame, basta marcar uma consulta ginecológica regular nas Unidades Básicas de Saúde (UBS).
O governo também vai oferecer a autocoleta do material ginecológico, uma alternativa pensada para mulheres com dificuldade de acesso aos serviços de saúde ou resistência a exames ginecológicos. O procedimento será ensinado nas UBS: a paciente coleta a amostra em casa e entrega o material na unidade.
A estratégia, segundo a pasta, é importante para incluir populações que tradicionalmente ficam à margem dos programas de rastreamento, como “mulheres em situação de rua, privadas de liberdade, refugiadas, quilombolas ou com crenças que dificultam o exame podem se beneficiar da autocoleta”. Também é uma alternativa para homens trans, que muitas vezes evitam consultas ginecológicas por desconforto ou preconceito.
Annelise ressalta, porém, que o acompanhamento médico continua essencial. “Mesmo que a mulher faça a autocoleta, é importante manter consultas regulares com o ginecologista, que é o profissional responsável pela saúde da mulher como um todo. O câncer do colo do útero é apenas uma parte dessa atenção”, afirma.
A implementação do teste DNA-HPV faz parte do “Plano Nacional para o Enfrentamento do Câncer do Colo do Útero”, que prevê alcançar até 7 milhões de mulheres por ano, com idades entre 25 e 64 anos. O rastreamento será organizado – ou seja, o SUS convidará ativamente as mulheres dessa faixa etária a fazer o exame, com acompanhamento das equipes de saúde da família.
A nova diretriz segue recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que considera o teste molecular de HPV o padrão-ouro para a detecção precoce da doença. Países como Reino Unido, Espanha e Portugal já adotaram o método como principal ferramenta de rastreamento.
No Brasil, testes do tipo já existem na rede privada desde os anos 2000. R$ 150 e R$ 400, dependendo do laboratório e (e se o exame é capaz de detectar os tipos de alto risco da doença). Surgiu a partir de tecnologias de PCR já usadas em outros vírus.
O acompanhamento precoce, no entanto, é apenas uma das frentes da prevenção. A vacinação contra o HPV – oferecida gratuitamente pelo SUS para meninos e meninas de 9 a 14 anos – continua essencial.
“A vacinação protege contra os principais tipos de HPV que causam o câncer do colo do útero. Já o teste identifica mulheres que estão com uma infecção persistente e precisam de acompanhamento. São estratégias complementares”, explica Annelise. “Mesmo pessoas vacinadas precisam fazer o exame, porque a cobertura vacinal ainda não é suficiente para reduzir de forma sustentada as infecções pelo vírus.”
Para a patologista, melhorar a comunicação sobre o tema é tão importante quanto as novas tecnologias. “Ainda há muito desconhecimento sobre o HPV e sobre o câncer do colo do útero. A educação sexual desde a escola e o diálogo aberto com profissionais de saúde são fundamentais. Estamos falando de um tipo de câncer que é totalmente prevenível – e que pode ser eliminado se unirmos vacina e rastreamento eficaz”, conclui.