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Aids: explosão no Terceiro Mundo

Sete a oito milhões de africanos são portadores do HIV, o vírus acusado pela derrota fatal do sistema imunológico nos aidéticos. A doença cresce vertiginosa nos países pobres.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h32 - Publicado em 31 ago 1992, 22h00

Sete a oito milhões de africanos são portadores do HIV, o vírus acusado pela derrota fatal do sistema imunológico nos aidéticos. A doença cresce vertiginosa nos países pobres.

Por Gisela Heymann, de Amsterdã, e Lúcia Helena de Oliveira

Pandemia. Uma epidemia generalizada, de acordo com o dicionário Aurélio. Quando as sessões da VIII Conferência Internacional sobre Aids foram abertas, em um domingo, ouviu-se pela primeira vez essa palavra, em caráter oficial, para definir o presente estado da doença. Entre os dias 19 e 24 de julho passado, cerca de 14 000 cientistas, entre eles 150 brasileiros, somaram- se aos 700 000 habitantes de Amsterdã, a capital holandesa. Hotéis lotados, muitas pessoas tiveram de se acomodar em cidades vizinhas. O evento foi algo gigantesco: 968 pesquisadores apresentaram trabalhos em 165 sessões; os resultados de outros 2 000 estudos apareceram fixados em posters, decorando as inúmeras salas do Centro de Convenções RAI, onde também se espalhavam stands de associações e laboratórios do mundo inteiro envolvidos com a Aids. Tudo funcionou perfeitamente, levando-se em conta que o evento foi transferido às pressas para a Holanda — estava programado para Boston, nos Estados Unidos mas, como os portadores do HIV não podem entrar no país, muitos inscritos no congresso seriam barrados na alfândega.Um estranho caso de preconceito. Se outros países adotassem a mesma lógica, o atleta Magic Johnson não teria participado da Olimpíada de Barcelona como integrante do fantástico Dream Team de basquete americano. Na mesma situação de Magic, calcula-se que existam entre 10 e 12 milhões de adultos e mais 1 milhão de crianças ao redor do planeta. Ou seja, uma em cada 400 pessoas está infectada pelo HIV, e essa proporção vem dobrando de três em três anos. Levando-se em conta que na África a proporção é mais alarmante — um doente para 100 habitantes — pode-se afirmar que a situação do resto do mundo é menos dramática — um doente para 1 000 habitantes. “O Terceiro Mundo representa 80% das infecções registradas este ano”, afirmou o médico holandês Joost Ruitemberg, vice-presidente da conferência.

Estima-se que até a virada do século mais de metade dos portadores do vírus serão mulheres. “Daí que ainda mais bebês nascerão com o HIV. Sem contar as crianças sadias, que ficarão órfãs”, sublinhou o americano Michael Merson, diretor do programa global contra a Aids, da Organização Mundial de Saúde. Um estudo realizado em Lusaca, capital de Zâmbia, mostra que, nesse país, um em cada dez jovens com menos de 20 anos já perdeu o pai ou a mãe (quando não perdeu ambos), por causa da Aids. Conter a expansão de qualquer doença no Terceiro Mundo é uma tarefa complicada: faltam condições de higiene, além de educação básica que proporcione à população a capacidade de compreender a importância das medidas preventivas. Mas que isso não sirva de desculpa: “Enquanto 65% dos soropositivos se concentram na África, chegaram a esse continente apenas 2,8% de 1,2 bilhão de dólares investidos no combate global à Aids, no ano passado”, acusou o epidemiologista Daniel Tarantola, da Faculdade de Saúde Pública de Harvard, nos Estados Unidos.Diversos estudos delineiam a suposta rota do HIV: o vírus teria aparecido na África, devido a mutações genéticas de espécies similares, possivelmente parasitas dos macacos; dali, ele migrou para outros continentes, em que terminou desencadeando a epidemia da Aids; esta, nos últimos anos, alcançou o Terceiro Mundo, incluindo o continente de origem do HIV, como uma onda de força avassaladora. O professor Gerald Myers, do Laboratório de Los Alamos, nos Estados Unidos, desconfia que, quanto mais o vírus viaja, mais ele se modifica. Os cientistas responsabilizam duas espécies de vírus pela Aids, o HIV 1 e o HIV 2, que diferem entre si em cerca de metade de seu patrimônio genético. O HIV 1 possuía cinco subtipos conhecidos até julho, quando se acrescentaram a essa perigosa família dois subtipos, recém-identificados na Tailândia.”O HIV é um alvo móvel, porque o conjunto de genes de cada um de seus subtipos muda em média 1% ao ano”, disse o professor Myers à platéia atenta. “Para complicar, os vírus parecem diferentes entre si, conforme o país em que se encontram. Nas primeiras comparações que fizemos entre subtipos africanos e americanos, notamos diferenças em 30% a 35% dos genes.” O cientista ainda suspeita que o vírus se altere de acordo com o vetor da infecção — o HIV 1 do sangue contaminado não seria idêntico ao HIV 1 transmitido por relações sexuais. Por enquanto, é apenas especulação. Teorias como essa, à medida que atestam a incrível capacidade de mutação do vírus sustentam a hipótese de existirem formas extraordinárias e ainda desconhecidas do insidioso HIV. Este é, aliás, o argumento mais freqüente apresentado pelos cientistas para justificar a existência de aidéticos aparentemente sem o vírus.O médico Jeffery Laurence, da Universidade Cornell, Estados Unidos, descreveu cinco pacientes nova-iorquinos com sintomas típicos de Aids — doenças oportunistas contagem baixa das CD4, as células infectadas pelo HIV, que vão morrendo à medida que a doença avança, causando o colapso do sistema de defesa humano. Os exames de sangue não encontraram anticorpos para o HIV 1, nem para o seu primo mais raro, o HIV 2. O médico, então, realizou testes mais precisos com o PCR— um método que, em vez de correr atrás de anticorpos produzidos numa reação ao agente invasor, caça rastros do material genético do próprio vírus procurado. Mais uma vez os resultados foram negativos. Laurence relatou sua experiência à revista americana Newsweek, que chegou às bancas na semana da conferência. O efeito foi o de uma bomba.Imediatamente, os maiores especialistas em Aids se reuniram a portas fechadas — entre outros o francês Jean-Luc Montaigner, do Instituto Pasteur, que isolou o HIV, e o próprio Jeffery Laurence. Embora nunca tivessem divulgado, todos conheciam doentes como os cinco nova-iorquinos. Seis casos chegaram a ser notificados oficialmente pelo Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos. Somando o que cada um deles guardava em segredo ou já tinha ouvido falar, os cientistas concluíram que há cerca de trinta pessoas no mundo inteiro com sintomas de Aids sem ter o HIV — ou, ao menos, o HIV nas variações que se conhecem. Entre eles, há um brasileiro internado no Hospital Emilio Ribas, em São Paulo (SUPERINTERESSANTE ano 6, número 7). Todos os casos são semelhantes: as pessoas estiveram expostas a situações ou comportamentos de risco, como grande número de parceiros sexuais e transfusões sangüíneas.Na Universidade da Califórnia, um cientista garante ter isolado uma nova espécie de retrovírus, que poderá justificar essas imunodepressões aberrativas. Sudhir Gupta, que não participou da conferência, tem uma paciente de 66 anos, obrigada em 1945 a fazer uma transfusão sangüínea, por causa de um aborto. Hoje, a mulher e sua filha, de 38 anos, apresentam uma série de doenças oportunistas associadas à Aids. Segundo o pesquisador, no organismo das duas pacientes há um vírus que nada tem a ver com o HIV 1 nem com o HIV 2. “Não sei se ele é transmissível e ainda não posso garantir que seja o responsável pela imunodepressão dessas mulheres”, declara Gupta. O francês Montaigner também demonstra dúvida: “Não acredito que possa haver uma espécie de HIV 3. Na minha opinião, esses casos atípicos são provocados por um HIV 1 defeituoso”. Embora não tenha realizado estudos conclusivos a esse respeito, Montaigner baseia sua teoria em dois casos ocorridos na França: os cientistas conseguiram detectar o HIV 1 na urina dos pacientes, mas não no sangue.O estudo do americano Anthony Fauci, do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, nos Estados Unidos, também chamou a atenção dos conferencistas na Holanda. Na opinião do cientista, considerado brilhante pelos colegas, é necessário reavaliar a chamada fase de latência do HIV— o período entre a infecção e o aparecimento dos primeiros sintomas da doença, que dura em média cinco anos. Antes, acreditava-se que, durante esse tempo, o vírus permanecia estável no organismo, como um monstro adormecido. Mas Fauci e sua equipe concluíram que, algumas semanas depois da infecção há um verdadeiro seqüestro do vírus para os chamados gânglios linfáticos, cuja função normalmente é servir de armadilha para os invasores do organismo. “Três a seis semanas após a contaminação, entre metade e 70% dos pacientes sentem febre, mal-estar, dores de cabeça. Os gânglios ficam inchados”, descreve Fauci. No entanto, um mês mais tarde o sistema imunológico recupera 90% do nível de células CD4, inicialmente abatidas. Daí, os sintomas desaparecem.”A trégua é ilusória: os vírus não param de se replicar dentro dos gânglios. A descoberta desse golpe, pregado pelo HIV, é uma novidade . “Durante anos, não vamos encontrar um número significante de vírus na corrente sangüíneas”, diz Fauci. “Mas entra em pane o sistema filtrante dentro dos gânglios, uma espécie de teia tecida por células chamadas dendríticas, que deveria segurar eventuais invasores.” Em determinado dia, a teia arrebenta, soltando um batalhão de HIVs no sangue. É então que o portador, assintomático, se transforma em doente aidético. Desvendar cada detalhe sobre o comportamento do vírus no organismo certamente ajuda na busca de tratamentos capazes de prolongar o período assintomático da doença. A vacina, por sua vez, não é para amanhã — e nisso todos parecem estar de acordo.Especialista em cálculos, o americano Daniel Hoth, colega de Fauci no Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, arrisca previsões: “Uma vacina recém-criada nunca é totalmente eficaz”, explica. “Daqui a seis anos, já teremos vacinas com 60% de eficácia. Só no ano 2003, porém, alcançaremos 90%.” Em sua palestra, Mauro Schechter, chefe do Laboratório de Pesquisa de Aids, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, divulgou urna técnica de diagnóstico, desenvolvida pelo médico Luis Lima, que permite avaliar a evolução do vírus em um paciente com um hemograma simples e um exame clínico ultra detalhado. “Nos países desenvolvidos, usa-se a contagem das células CD4 para saber o estágio da doença”, conta Lima. “O teste, porém, custa em torno de 40 dólares. No Brasil, não há condições de submeter todos os pacientes a esse exame.” Segundo Mauro Schechter, a margem de erro do novo método é de apenas 5%. “Os países africanos poderão adaptá-lo, de acordo com a incidência das infecções oportunistas.”

Para saber mais:

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Aids a 1% da cura

(SUPER número 10, ano 10)

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