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As pessoas que não reconhecem rostos

Já pensou como seria viver sem reconhecer o rosto de ninguém, nem mesmo a sua própria cara? Seja bem-vindo ao mundo misterioso da prosopagnosia.

Por Tarso Araújo e Bruno Garattoni
Atualizado em 18 out 2018, 10h56 - Publicado em 30 nov 2008, 22h00

Minas Gerais, férias de verão. A produtora de moda Mônica, de 24 anos, está com um amigo numa lanchonete quando chega outro jovem. Ela o cumprimenta polidamente. Meio espantado, o amigo pergunta: “Mônica, você não se lembra do Marcelo?” Ela não consegue reconhecer o tal Marcelo, que dá um sorrisinho constrangido. Era seu ex-namorado. São Paulo, Hospital da Unifesp. O médico Rodrigo Schultz, de 25 anos, está trabalhando no setor de neurologia. Até que chega uma paciente se queixando de um estranho problema. Schultz mostra uma foto à paciente e pergunta: “Quem é esta mulher?” A paciente não sabe responder, mas a pessoa em questão era ela mesma. Nos dois casos, o diagnóstico foi o mesmo: prosopagnosia, uma estranha doença que torna o cérebro incapaz de identificar rostos.

A prosopagnosia foi descoberta no front de batalha. O ano é 1944, e estamos na 2a Guerra Mundial. Durante um bombardeio russo, um soldado nazista se fere – alguns estilhaços de bomba atingem sua cabeça, causando lesões cerebrais. Ele é tratado pelo neurologista alemão Joachim Bodamer, que faz uma operação para remover os estilhaços e depois aplica um teste para avaliar o estado do paciente. O médico pede que a esposa do soldado vista um uniforme de enfermeira e fique entre enfermeiras de verdade. Aí pergunta ao doente: “Percebe algo de diferente nessas mulheres?” O soldado diz que não. Ele simplesmente não reconhece mais a esposa. Bodamer faz mais testes e constata o que aconteceu: o paciente está normal, só que não consegue mais identificar rostos. Nenhum deles. Para batizar esse estranhíssimo sintoma, o médico cria o termo prosopagnosia: uma junção das palavras gregas prosopo (“rosto”) e agnosia (“sem conhecimento”).

O que Bodamer não sabia, e só recentemente a ciência descobriu, é que a prosopagnosia também pode ser genética e afetar pessoas comuns – que não levaram nenhuma pancada na cabeça. E ela é muito mais freqüente do que se pensa. Em 2006, num estudo com 689 voluntários selecionados de forma aleatória, o geneticista alemão Thomas Grüter diagnosticou nada menos que 17 casos de prosopagnosia – o que dá 2,5% da amostra. “Existem cerca de 2 milhões de pessoas com prosopagnosia na Alemanha. E, provavelmente, milhões delas no Brasil”, afirma Grüter (para ser mais preciso, até 4,7 milhões). Parece um exagero para você? O neurocientista Brad Duchaine, da Universidade de Londres, chegou a um resultado parecido: de 1 600 indivíduos testados, cerca de 2% tinham alguma dificuldade em reconhecer rostos.

Mas, se a doença é tão comum, por que as ruas não estão cheias de prosopagnósicos? É que, na maior parte das vezes, as pessoas nem se dão conta de que têm o problema. “A pessoa compensa isso, encontra outras formas de reconhecer rostos, e sua dificuldade não aparece”, afirma Duchaine. Pelo que já se sabe, a prosopagnosia afeta todos os tipos de gente. Você, inclusive, pode ter e não saber. Não é motivo para se jogar pela janela. Ela só atrapalha nos casos mais fortes, quando realmente destrói a capacidade de identificar rostos – e muda totalmente a vida das pessoas.

Se você perguntar a uma pessoa normal como ela reconhece um rosto, provavelmente vai ouvir algo simples, do tipo: “olhando para ele, oras”. Se for alguém com prosopagnosia, no entanto, a resposta será bem mais elaborada. “Eu vejo como a pessoa se mexe, reparo na voz, no cabelo, no sapato, procuro características marcantes”, diz a produtora de moda Mônica – aquela que, no começo desta reportagem, não identificou o ex-namorado. Ela jura que reconhece o atual namorado, apesar de o relacionamento ser recente. “Ele tem um cabelo encaracolado, e isso ajuda bastante.” Cabelo, aliás, é uma referência frágil. “Quando minhas clientes cortam ou mudam o penteado, é um problema. Às vezes coloco a culpa na miopia, para não dar vexame.”

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Mesmo com essas estratégias, ou justamente por causa delas, os prosopagnósicos costumam levar mais tempo que o normal para reconhecer alguém. “Quando encontro alguém na rua, levo alguns segundos montando um quebra-cabeça com diferentes pistas até descobrir quem é a pessoa”, diz Mônica. A mãe dela, Maria, também tem prosopagnosia e enfrenta ainda mais dificuldade – chega a levar vários minutos para reconhecer as pessoas. Como todos os prosopagnósicos, Mônica e Maria são consideradas esnobes pelas outras pessoas. E, por causa das dificuldades que enfrentam, desenvolveram uma personalidade tímida e reservada. “Nunca consigo reconhecer uma pessoa na segunda vez em que a vejo. Passei a caminhar na rua de cabeça baixa, para ter a desculpa de que não vi as pessoas caso elas me reconheçam e eu não.”

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(panic_attack/iStock)

Os prosopagnósicos não têm nenhum tipo de problema de visão e, da mesma forma que observam e guardam outros detalhes das pessoas, são capazes de distinguir claramente se alguém está feliz ou triste. Mas o que eles vêem, então, quando olham para uma face? “Eu não consigo ‘montar’ o rosto inteiro. Se eu fechar os olhos, só lembro das partes, nunca do conjunto. E isso acontece inclusive com o meu próprio rosto: não consigo imaginá-lo mentalmente”, diz a estudante de arquitetura Patrícia, 30 anos.

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Se isso já parece um pouco assustador, veja a situação dos americanos Bill Choissier e Mordechai Housman, que estão entre os piores casos de prosopagnosia já documentados. Choissier, que é advogado, cresceu sem reconhecer os próprios pais. Isso afetou sua relação com a mãe e também prejudicou sua vida profissional – como não reconhecia os juízes com os quais trabalhava, acabou tachado de arrogante. Já o mestre-de-obras Housman não reconhece os 3 filhos. Ele sabe que são suas crianças, mas não diferencia uma da outra. Ou, então, a história da inglesa Zoe Hunn. Quando ela tinha 14 anos, suas amigas a inscreveram num concurso de beleza. Ela nunca tinha prestado muita atenção ao próprio rosto. Zoe ganhou, virou uma modelo bem-sucedida e capa de revista. Só que ela não se reconhecia nas fotos, caiu em depressão e teve de procurar acompanhamento psicológico. Zoe era linda, mas não sabia. E também não sabia quem era. Terrível, não? Mas o que acontece, afinal, no cérebro de uma pessoa que sofre de prosopagnosia?

Lembra de mim?

A doença tem dois grandes subtipos. O mais simples é a prosopagnosia adquirida. Examinando as pessoas que sofrem desse mal, a medicina fez uma descoberta revolucionária: existem regiões do cérebro especializadas em processar faces (antigamente, acreditava-se que os rostos eram processados pela mente como se fossem um objeto qualquer – uma árvore ou uma cadeira, por exemplo). São 3 estruturas: sulco temporal superior (STS), área occipital facial (AOF) e área fusiforme facial (AFF). A prosopagnosia adquirida surge quando, por causa de derrames ou ferimentos, essas áreas sofrem algum dano.

Já a prosopagnosia congênita – ou hereditária – é a mais comum, e a mais misteriosa. Até o momento, a ciência só sabe que ela tem origem genética. O especialista alemão Ingo Kne sugere que apenas um gene seja responsável pela condição. Mas ninguém tem pistas de qual seria esse gene. Exames de ressonância magnética, que analisam a atividade cerebral enquanto as pessoas realizam tarefas específicas, têm sido usados para investigar como o cérebro funciona na hora de reconhecer um rosto em pessoas com prosopagnosia congênita. Mas eles ainda não oferecem muitas conclusões. A falta de exames precisos limita a capacidade dos médicos de diagnosticarem a prosopagnosia. Até agora só existem métodos subjetivos, baseados em entrevistas e testes com os pacientes. “Perguntamos a eles sobre alguns sintomas que sempre aparecem em casos de prosopagnosia hereditária”, diz Thomas Grüter. “Mas tão poucos médicos conhecem a condição, ou mesmo o termo, que se você for a um consultório e disser que não reconhece faces o doutor provavelmente dirá que ‘é assim mesmo. Algumas pessoas são ruins com números, outras com nomes, e isso é normal’. Talvez ele recomende um oftalmologista.”

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A má notícia é que não existe tratamento nem esperança de cura para a prosopagnosia num futuro próximo. A boa é que, tirando os casos mais extremos, as pessoas com esse estranho problema levam vidas relativamente normais. Mas então para que toda essa conversa sobre a doença? “Encontrar o gene responsável pela prosopagnosia hereditária nos ajudará a entender a base genética do desenvolvimento do cérebro”, afirma Grüter. “E mais: a pesquisa pode nos levar a entender como funcionam as unidades cerebrais de reconhecimento facial.” Traduzindo em linguagem comum: entender a prosopagnosia pode ajudar a medicina a resolver doenças mais sérias, como Alzheimer (pois uma das conseqüências desse mal é, justamente, a prosopagnosia). Enquanto esse dia não chega, quem sabe as pesquisas sobre prosopagnosia consigam pelo menos aliviar as situações embaraçosas e saias-justas que tanto incomodam as pessoas que não reconhecem rostos. Como o dia em que a vendedora Maryanna Alba não reconheceu um cliente numa reunião, e seu chefe suspeitou de que ela nunca o visitara antes. Ajudar Patrícia a levantar a cabeça quando caminha pela rua, sem medo de que os conhecidos a confundam com uma antipática que não cumprimenta as pessoas direito. E, claro, melhorar a vida amorosa da esquecida Mônica.

Para saber mais

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Prosopagnosia Research Centers at Harvard University

https://www.faceblind.org

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