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Ayurveda

A medicina indiana, uma das mais antigas do mundo, prega que boa saúde é resultado direto de viver em harmonia com o Universo. Entenda de onde vem essa idéia, como ela nasceu e como ela chegou aos nossos dias

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h39 - Publicado em 31 jul 2004, 22h00

Rodrigo Rezende

“Doutor, minha cabeça está latejando, minha garganta está horrível e minhas costas não param de doer.” Depois de meia hora folheando revistas ao som de uma música que parece vir de algum elevador, é essa a primeira frase que você diz ao pisar na sala do médico. Você não vê a hora de terminarem as perguntas e os exames de rotina para poder entregar ao balconista da farmácia a receita com os garranchos característicos. Ufa… Como é bom saber que, em poucos minutos, a solução para todos os problemas estará em suas mãos.

Mas será mesmo? E se os remédios não funcionarem? E se houver um problema mais grave? E se você tiver de passar por um neurologista, um otorrinolaringologista, um reumatologista? Imagine encarar mais três consultas… É aí que a pergunta vem à mente: não existe outro jeito de lidar com as doenças?

Só o modo como formulamos essa questão já revela o quanto é difícil para nós pensar a medicina a partir de um ponto de vista exterior à mentalidade ocidental – claro, nossa sociedade está toda imersa nela. A moderna medicina ocidental é mesmo quase sempre o jeito mais eficaz de curar doenças – isso não se discute. Mas, se tivéssemos uma concepção de mundo e um paradigma cultural mais próximos dos valores do Oriente, a pergunta a ser feita poderia ser outra: o que fazer para equilibrar a saúde? É essa a principal preocupação do ayurveda (do sânscrito ayus, “vida”, e veda, “conhecimento”), sistema de medicina indiano criado há aproximadamente 5 mil anos – um dos mais antigos do mundo.

Se a consulta descrita acima fosse feita com um médico ayurvédico, você teria de esquecer a pressa habitual e relaxar, pois o diagnóstico só viria depois de uma longa conversa que vai bem além da mera exposição dos sintomas físicos. A medicina ayurvédica não vai resolver seus problemas só com remédios nem é dividida em especialidades médicas que multiplicam o número de consultas. Mas como funciona esse sistema de nome esquisito e qual a razão de todas essas diferenças? Se você quer mesmo saber a resposta, é melhor começar a relaxar desde agora e tentar se desprender ao máximo de seus valores. Para começar a compreender o ayurveda, é imprescindível um mergulho profundo na história e na filosofia desse modelo, para entender um jeito de pensar que certamente é muito diferente do seu.

ERA UMA VEZ

Vale do Rio Indo, Índia, 3000 a.C. O berço da que pode ter sido a primeira grande civilização do mundo. Foi lá que floresceu Mohenjo Daro, cidade que assombrou os arqueólogos em 1922, quando foi descoberta. O mais surpreendente nela, além de ter sido uma das maiores do mundo em sua época, era seu aspecto “moderno”.

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As ruas formavam quadras geometricamente exatas e as casas eram funcionais, bem distantes do estilo de construção monumental do antigo Oriente. Mas o que deixava suas contemporâneas no chinelo eram as instalações sanitárias. Diferentemente da Mesopotâmia, de Creta e do Egito, outros “berços da civilização”, onde só havia banheiro nos palácios, em Mohenjo Daro instalações sanitárias e lugares adequados para lixo estavam em quase todas as casas.

A cidade contava com sistemas de água e esgoto tão avançados quanto os do Império Romano, que s�� surgiriam 2 500 anos depois. Ainda assim, Mohenjo Daro acabou. Foi lá por 2000 a.C., provavelmente por causa de invasões. Sabemos pouco sobre ela e sobre a civilização que a ergueu – sua escrita nem foi inteiramente decifrada. Mas o conhecimento de higiene gerado lá sobreviveu à destruição e teve grande influência sobre a medicina que começou a surgir na Índia.

No meio do segundo milênio a.C., outro povo entrou no subcontinente. Os arianos, vindos do centro da Ásia, ocuparam o vale do Indo e impuseram seus valores à civilização que vivia lá. Eles introduziram o sistema de divisão social em castas e a religião baseada nos Vedas. Os Vedas são tradições transmitidas oralmente por gerações, só depois compiladas em textos em sânscrito. Foram produzidos pelos brâmanes, a casta que detinha o conhecimento cultural e religioso dos arianos. Na Índia atual, esses textos têm valor comparável ao das Escrituras para a civilização ocidental. Mas nem só de religião tratam os Vedas. Eles também são a fonte do conhecimento médico que vai constituir a base do ayurveda.

Os três primeiros Vedas – Rig Veda, Yajur Veda e Samaveda –, são muito ligados ao misticismo bramânico ortodoxo e contêm descrições de práticas médicas que apelam para rituais mágicos e cultos a divindades. Mas o quarto Veda – Atharvaveda – é diferente. Ele foi composto por brâmanes dissidentes que se mudaram para as florestas, entraram em contato com a cultura autóctone da Índia e fundaram um movimento chamado aranyaka (de aranya, “floresta”). Esse Veda faz referência mais direta à fitoterapia e possui uma linguagem mais objetiva. “O Atharvaveda foi recusado pelos brâmanes tradicionais num primeiro momento, mas acabou sendo aceito”, diz o cirurgião e médico naturalista Antônio César Deveza, tradutor para o português do Caraka Samhita, texto clássico do ayurveda. “Tanto que os arianos começaram a procurar médicos aranyaka porque eles tinham uma medicina mais eficiente que a baseada só em preces e rituais.”

A transformação social gerada por invasões e guerras no século 5 a.C. fez com que a medicina se distanciasse cada vez mais da tradição ritualística. Nesse período, a influência dos brâmanes diminuiu, abrindo espaço para a assimilação de valores de outras culturas. Conceitos do budismo, um movimento muito influente na Índia daquele tempo, passaram a fazer parte do sistema. Os monges budistas tiveram um importante papel na disseminação da medicina ayurvédica e propiciaram o intercâmbio com a medicina chinesa – o outro grande sistema médico da época. “Há relatos de que a acupuntura era ensinada nos mosteiros budistas da Índia no início da era cristã”, afirma o médico especialista em medicina chinesa Aderson Moreira da Rocha, presidente da Associação Brasileira de Ayurveda.

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É desse caldeirão de influências que saem os tratados médicos Caraka Samhita e Sushruta Samhita, publicados entre os séculos 2 a.C. e 2 d. C. Neles são descritos os conhecimentos de anatomia, fisiologia, fitoterapia e cirurgia que formam o substrato do ayurveda. “Os procedimentos cirúrgicos dessa época eram tão avançados que uma técnica chamada retalho indiano é praticada por nós até hoje exatamente do mesmo modo que o Sushruta Samhita ensinava”, diz Deveza. O retalho indiano é uma cirurgia em que se usa um pedaço da testa do paciente ainda ligado aos vasos sanguíneos para reconstituir o nariz. Isso exige um conhecimento de anatomia muito grande, algo que só pôde ser alcançado porque os pioneiros do ayurveda dissecavam cadáveres, prática proibida na cultura ariana – e também na cristã por muitos séculos. “Nesse período, os indianos já conseguiam identificar vasos linfáticos, venosos e arteriais e fazer trepanações (cirurgias cranianas)”, diz Deveza.

E qual foi o destino desse conhecimento tão avançado? Mais uma vez, a destruição. A era de ouro do ayurveda acabou entre os séculos 10 e 12, quando o norte da Índia sofreu invasões de muçulmanos, que impuseram o sistema médico deles. Mas alguns textos foram preservados por monges que fugiram para o Tibete e o Nepal. E, quando o imperador mongol Akbar ordenou a compilação do conhecimento indiano no século 16, a tradição ayurvédica foi resgatada.

A última ameaça de extinção do ayurveda aconteceu com a ocupação da Índia no século 19 pelos ingleses, que reconheciam como legítimas só as práticas médicas ocidentais. Mas a busca pelas raízes do ayurveda foi estimulada por Mahatma Gandhi durante o movimento nacionalista indiano, em meados do século 20. Ocorreu então um renascimento. Hoje há 400 mil médicos ayurvédicos atendendo na Índia. Surgiu inclusive a Universidade de Ayurveda Gujarat, a única instituição universitária ayurvédica do mundo. O passo seguinte foi a chegada dessa tradição ao Ocidente – graças a divulgadores como Vasant Lad, primeiro, e Deepak Chopra, depois.

Hoje em dia, há um grande esforço acadêmico para compreender a medicina ayurvédica. Esse é o intuito de iniciativas como a 8ª Conferência Internacional de Ayurveda, realizada no mês passado na Universidade de Cambridge, Inglaterra, com o objetivo de promover o estudo do ayurveda “a partir das perspectivas histórica, literária, antropológica, sociopolítica, econômica, biomédica e farmacológica”.

O emprego de tantas áreas do conhecimento para explicar um sistema médico se justifica porque, diferentemente da medicina ocidental, que pode ser compreendida por meio da visão analítica característica do pensamento científico, o ayurveda se baseia em uma concepção holística do mundo, na qual o todo não se resume à soma das partes. É por isso que, para o ayurveda, a frase que abre esta reportagem não tem a mesma importância que na medicina moderna ocidental. Um médico ayurvédico não vai tratar apenas sua cabeça, sua garganta ou suas costas. Para ele, as dores que você sente são sinais de um desequilíbrio que afeta todo o corpo.

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Se você ainda não faz idéia do que termos tão abstratos quanto desequilíbrio e holismo têm a ver com a mulher melada de óleo na capa da Super, não se inquiete. É aqui que terminamos nosso mergulho histórico e iniciamos a jornada pelo universo de conceitos médicos do ayurveda.

SEU UNIVER

“A vida tem quatro componentes: corpo, sentidos, mente e alma. Quando essas coisas estão equilibradas, a pessoa está saudável.” Simples assim. Pelo menos segundo o único médico com doutorado em ayurveda em atividade no Brasil: o indiano Bokulla Ramachandra Reddy. A serenidade de suas frases curtas e de seu sotaque evocam uma sensação semelhante à da contemplação do infográfico da página 55 – a de que tudo é imensamente simples e, ao mesmo tempo, impossível de ser entendido em sua plenitude. Isso não é coincidência. Para captar o sentido da frase de Bokulla e o do infográfico é necessário antes compreender a Samkhya, doutrina que está na base metafísica de toda a medicina ayurvédica.

O conceito de equilíbrio mencionado por Bokulla é uma idéia central para o ayurveda. Ele se expressa não só nos princípios que regem a prática médica, mas também no ser humano e no Universo. Segundo a medicina ayurvédica, existe uma relação entre o microcosmo do interior do homem e o macrocosmo do mundo material. Um é o espelho do outro. Tudo isso é purusha. Quer dizer: tanto nós quanto o Universo somos constituídos da mesma substância. Daí a importância de se viver em harmonia com a natureza e a ênfase no cuidado constante com a saúde. “O ayurveda é um sistema mais preventivo que curativo e preconiza que, se o ser humano viver integrado com os ritmos da natureza, ele terá saúde”, afirma a consultora de ayurveda Márcia De Luca, representante de Deepak Chopra no Brasil. “E saúde não é somente a ausência de doença, mas um estado de bem-estar maior, no qual a pessoa se sente bem só por ser.”

Tem mais: tudo o que existe é formado por cinco elementos: fogo, terra, água, ar e espaço. Esse fundamento do ayurveda tem grande semelhança com a filosofia grega pré-socrática do século 5 a.C., que preconizava quatro elementos e deixava de fora o último, o “espaço”. Essa pequena diferença entre a visão grega e a indiana diz muito sobre a diferença entre o modo ocidental e o oriental de pensar. “Os indianos são mais espiritualistas e, por isso, concluíram que, antes de existir qualquer coisa, deveria haver um princípio de não-existência, o espaço”, afirma Deveza. Essa idéia também contribuiu para o conceito do número zero, fundamental para a matemática. O zero surgiu antes na Índia que no Ocidente.

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Acontece que a forma pela qual esses cinco elementos se expressam no nosso corpo é bem complexa. Para compreender a manifestação dos elementos no homem, é preciso antes entrar em contato com o principal conceito médico do ayurveda: o dosha.

VATTA, PITTA, KAPHA

O corpo é composto de três doshas: vatta, pitta e kapha. Vatta é feito de ar e espaço. Pitta, de fogo e água. E kapha, de água e terra. Os doshas são as três forças energéticas fundamentais que representam todos os princípios psicofisiológicos do corpo. Descobrir a composição dos doshas de cada paciente é o intuito central do diagnóstico do médico ayurvédico. É a partir disso que o tratamento será desenvolvido. Cada pessoa possui uma proporção única dos três no corpo, que é determinada na data do nascimento. A essa proporção imutável, uma espécie de DNA dóshico, dá-se o nome de prakriti. É de acordo com o prakriti que todas as características físicas, psíquicas e espirituais do indivíduo se manifestam.

Então existem só três tipos de pessoa? Não é tão simples (lembre-se que tudo nesta reportagem – e na cultura indiana – é absurdamente complexo por trás de uma aparente simplicidade). Cada indíviduo pode ter a predominância de um, dois ou até de todos os três doshas no corpo. Isso faz com que cada paciente seja tratado de uma forma única. Afinal, cada pessoa possui um prakriti exclusivo. Lembre-se disso antes de cair na tentação de se encaixar em uma das classificações da tabela à esquerda. Ela apresenta só as linhas gerais dessa vasta teoria.

Além disso, de acordo com sua rotina, sua alimentação e até sua profissão, a constituição dóshica pode se distanciar do equilíbrio do prakriti e adquirir uma configuração instantânea diferente. A ela se dá o nome de vikriti. No ayurveda, a saúde só é alcançada quando o prakriti, a constituição natural, coincide com o vikriti, a configuração instantânea. É o que se chama de equilíbrio.

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E como se acha essa “constituição natural”? Por meio de um longo diagnóstico, que acontece em quatro etapas. Primeiro o médico observa as caraterísticas físicas do sujeito. Depois faz minuciosos exames, que avaliam, entre outras coisas, a língua e a urina. Aí vem um questionário para descobrir o perfil psicológico. E, finalmente, o peculiar exame de pulso. Com três dedos no meu pulso esquerdo, o doutor Bokulla me explica: “O indicador mede o pulso de vata, que é rápido como o deslizar da serpente. O dedo médio avalia pitta, que parece os pulos da rã. E o anular, a pulsação de kapha, que é lenta e estável, como um cisne nadando. Você é vata-pitta”.

ENFIM, A PRÁTICA

Agora que já sei o meu prakriti, é só identificar as características físicas e psicológicas que me afastam da minha constituição natural e usar os tratamentos do ayurveda para restabelecer o equilíbrio do corpo. Muitos desses tratamentos têm um caráter preventivo, como a prescrição de exercícios físicos que estejam de acordo com os doshas. As pessoas que tem vata são agitadas. Elas devem fazer exercícios que levam para dentro, para acalmar vata, como ioga, dança, alongamento e caminhada. Da mesma forma, os com pitta têm fogo em excesso e precisam de jogging ou natação. E, para kapha, gente calma por natureza, o ideal são exercícios aeróbios, como corrida, musculação e artes marciais.

Outro tratamento importante é a definição de uma dieta que equilibre os doshas. Na medicina ayurvédica, os rasa (sabores) exercem papel significativo na regulação dos doshas. Comidas doces, ácidas ou salgadas equilibram vata. Os sabores adstringente, amargo e doce são bons para pitta. E alimentos amargos, adstringentes e picantes são indicados para kapha. De acordo com o ayurveda, a comida não deve ser nem muito cozida nem muito crua. E tem de ser ingerida morna, pois tudo que é gelado apaga agni, o “fogo” digestivo. O ayurveda é contra produtos enlatados, fermentados, refinados e quaisquer restos. A comida tem de ser feita na hora, de preferência sem agrotóxico – alimentos industrializados não possuem prana (energia).

O arsenal terapêutico do ayurveda inclui ainda ioga, meditação, ervas e massagem. “Na massagem ayurvédica, a escolha do óleo é feita de acordo com o dosha”, diz Aderson. Para vata, usa-se óleo de gergelim. Para pitta, de coco e kapha, de mostarda. Sempre óleo vegetal, de sementes orgânicas prensadas a frio.

Mas não há só terapias leves e agradáveis. No panchakarma (veja à esquerda), um tratamento para purificar o corpo, ocorre indução de vômitos, ingestão de purgantes, administração de enemas, inalação de fumaça e prática de sangria. Na capa da Super você viu o shirodara, o ritual de relaxamento que precede essa incômoda purificação. Com essa imagem calmante, fechamos a jornada pelos conceitos do ayurveda. E partimos para um tema polêmico: a tentativa de explicação do ayurveda pela ciência ocidental.

CURA QUÂNTICA?

“O corpo mecânico quântico é a base fundamental de tudo o que somos: pensamentos, emoções, proteínas, células, órgãos”. A frase é do livro Saúde Perfeita, do ayurveda indiano Deepak Chopra, que busca fazer uma síntese entre o ayurveda e a física moderna. Não estranhe se você não tiver entendido o que ele quer dizer. Afinal, se fosse fácil, Richard Feynman, um dos físicos mais brilhantes que passaram pelo mundo, não teria escrito: “Posso dizer sem medo de errar que ninguém entende a mecânica quântica”.

Nem todo mundo simpatiza com a tentativa de Chopra de explicar um sistema milenar com ciência moderna. Na verdade, a maioria dos cientistas fica arrepiada só de ouvir falar nisso. “Não há razão para estabelecer qualquer relação entre conceitos da física de partículas e a medicina ayurvédica ou qualquer outro tipo de medicina”, diz o bioquímico e professor de medicina alternativa Thomas J. Wheeler, da Universidade de Louisville, Estados Unidos. “Os efeitos da mecânica quântica raramente têm importância em escalas maiores que a subatômica”, afirma.

Então por que misturar física quântica com ayurveda? Talvez seja pela busca da junção entre o raciocíonio analítico da nossa ciência e a concepção de mundo holística do Oriente. Para a nossa sociedade, a ciência é a autoridade máxima, que separa o que é verdade do que não é – sua sanção é essencial para qualquer teoria.

Se é assim, então, o que é que a ciência diz do ayurveda? Pouco. O Comitê de Ciência e Tecnologia do Parlamento Britânico, num amplo relatório sobre terapias médicas alternativas lançado em 2000, concluiu que a medicina tradicional indiana, assim como a chinesa, é um sistema tão complexo e fechado que dificilmente pode ser comprovado ou desmentido. Claro que é possível testar em laboratório tratamentos específicos do ayurveda, e compará-los com equivalentes ocidentais. Mas as diferenças entre as visões de mundo são tão grandes que bem poucos estudos sérios foram realizados até hoje e os que foram trouxeram resultados que nos deixam longe de uma conclusão.

O que poucos médicos negam é que o paradigma indiano tem algumas idéias interessantes: a tese de que cada paciente deve ser tratado de um jeito, por exemplo, soa muito moderna. E a de que devemos olhar as pessoas, e não só as doenças, também tem ganho uma crescente aceitação no Ocidente. Por outro lado, é difícil negar que uma medicina que conta com microscópios eletrônicos, aparelhos de ressonância magnética e décadas de acúmulo de dados estatísticos tem condições melhores de fazer diagnósticos e de buscar curas.

Além disso, alguns tratamentos do ayurveda são muito criticados. “O sistema inclui terapias de purificação e eliminação que a medicina rejeita e que podem ter efeitos efeitos perigosos”, diz Wheeler. Sem falar que se empregam remédios como sangue e urina, o que não tem nenhuma validação científica. “O ayurveda incorpora elementos religiosos, mágicos e supersticiosos da Antiguidade, o que é incompatível com a medicina científica”, afirma o bioquímico.

A verdade é que qualquer tentativa de entender o ayurveda com olhos ocidentais vai ser no mínimo incompleta. E que qualquer conclusão para esta reportagem é no mínimo simplista. O ayurveda não é “cientificamente comprovado”, não nos percamos nessa discussão. Ele é o fruto de um modo de pensar cuja origem se perde no tempo, e propõe um estilo de vida baseado nessa experiência acumulada. Ir a um terapeuta ayurvédico esperando “eficácia”, ou mesmo “cura” – conceitos bem ocidentais – é perda de tempo. Mas tratar-se desse modo é um mergulho quase arqueológico numa visão bem diferente do Universo – o que não deixa de ser fascinante.

Com você, o Universo

Se você entender a ilustração abaixo, entende todo o Cosmos.Trata-se do Samkhya (sam é”verdade”, khya é “conhecer”)

O pai

Purusha é a consciência pura, a verdade, o poder curativo, o estado transcendental do ser e existir. Ele é constituído de energia pura. Não tem forma nem cor e não exerce parte ativa na criação do Universo

A mãe

Prakriti é vontade e matéria primordial. É a mãe divina da criação. O Universo é formado da união de prakriti com purusha, que dá origem a toda a matéria do mundo físico

O filho

A primeira expressão da junção entre prakriti e purusha é mahad. Mahad é a inteligência suprema que antecede o surgimento do eu. Essa espécie de inteligência coletiva se manifesta em cada célula que constitui o nosso corpo

O eu

De mahad surge ahamkara, o princípio de individualidade que separa a nossa consciência da conexão com o mundo material. Ahamkara nos dá a capacidade de perceber o corpo como uma entidade distinta dos demais objetos

O resto

Com a formação do sentido do “eu” por ahamkara, torna-se possível identificar as três qualidades universais que constituem todas as coisas do Universo e influenciam o corpo e a mente: sattva, rajas e tamas. Sattva é a essência da luz, rajas é a transformação e tamas é inércia e escuridão

Para resumir

A tabela abaixo é um guia muitosimplificado. Mas ajuda a entender a base sobre a qual o ayurveda se apóia

Kapha

Características físicas – As pessoas com constituição kapha possuem tórax largo e boa massa muscular e óssea, porém com tendência a ganhar peso. A pele é macia, fria e pálida

Características psicológicas – Estabilidade, calma, paz, compaixão, paciência, suavidade, receptividade, perdão, alegria, lentidão, resistência, fé, apego, cobiça, materialismo, sentimentalismo, luxúria

Alimentação – A comida deve ser morna, leve e seca – e os sabores picantes, amargos e adstringentes. Há que se evitar doces, salgados e ácidos, que favorecem o acúmulo de gordura

Calendário – Kapha predomina do nascimento até os 20 anos. Ele deve deixar coisas importantes para os períodos entre as 6 e 10 e entre as 19 e 23 horas

Sonhos típicos – Nadar, achar dinheiro, comer doce, fazer uma mesma coisa várias vezes, chegar atrasado, ver-se morto, inverno, primavera

Elementos – Água e terra

Pitta

Características físicas – Os indivíduos do tipo pitta são de tamanho mediano, com musculatura moderada. O fogo faz com que tenham muita sede e apetite. O corpo é quente, a face vermelha

Características psicológicas – Percepção, inteligência, liderança, inventividade, lógica, coragem, ambição, irritabilidade, raiva, crítica, audácia, orgulho, vaidade, dominação, precipitação, rigidez, manipulação

Alimentação – Os sabores indicados são adstringente, amargo e doce; já o ácido, o salgado e o picante aumentam o fogo e devem ser evitados. Prefira comida crua e evite óleos e condimentos

Calendário – Os melhores horários são no meio do dia, entre as 10 e 14 horas, e no meio da noite, entre as 22 e 2. E a melhor fase é no meio da vida, entre os 20 e 60 anos

Sonhos típicos – Estudar, bombar na prova, atrasar, comer, fogo, matar alguém, estar vestido inapropriadamente, ficar nu em público, verão

Elementos – Fogo e água

Vata

Características físicas – As pessoas com predominância de vata são magras, têm pouca musculatura e dificuldade para ganhar peso; são mais friorentas e têm a pele fria e seca

Características psicológicas – Entusiasmo, flexibilidade, adaptabilidade, boa comunicação, criatividade, rapidez para aprender, facilidade para esquecer, ansiedade, inconstância, insegurança, indecisão

Alimentação – Alimentação – A comida pode ser pesada e condimentada. Sabores indicados: doce, ácido e salgado. Deve-se evitar o picante, o amargo e o adstringente. Prefira alimentos cozidos

Calendário – Os indivíduos de vata devem deixar decisões importantes para a tarde (entre as 15 e 19 horas). Esse dosha tende a se fortificar após os 60 anos

Sonhos típicos – Ser atacado ou perseguido, cair, sentir-se paralisado de medo, morte do amado, voar, cobras, outono

Elementos – Ar e espaço

Quem não se purifica…

Passo a passo, conheçao panchakarma, tratamento depurificação do ayurveda

O panchakarma busca equilibrar os doshas e livrar o corpo do acúmulo de ama, comida não digerida que permanece no organismo e é a raiz de muitas doenças. Depois de uma preparação, ele consiste no seguinte:

Vamana

O paciente é induzido ao vômito a partir da ingestão de ervas medicinais

Verichana

Mais ervas são administradas para gerar um efeito purgante

Basti

Óleo vegetal é introduzido no intestino grosso através do ânus

Nasya

Ocorre a aplicação de substâncias líquidas nas narinas e a aspiração de fumaça de ervas

Rakta moksha

É feita uma sangria por meio da aplicação de sanguessugas

Pilulas de sabedoria

Inspire-se com algumas dasmáximas do Caraka Samhita,texto clássico do ayurveda

1. “A condição de estar liberto das doenças é a melhor fonte de virtude, prosperidade, gratificação e emancipação. As doenças são destruidoras dessa fonte, do bem-estar e da própria vida.”

2. “O ayurveda é aquilo que trata do que é bom e do que é ruim, de uma vida de felicidade e de infelicidade, do que promove o desenvolvimento e do que não promove, da medida exata das coisas e da natureza.”

3. “Mente, noção de individualidade e corpo formam um tripé sobre o qual o mundo dos seres vivos se mantém.”

4. “O uso excessivo, o não uso e o mau uso do tempo, da inteligência e dos objetos dos sentidos é a tripla causa das doenças psíquicas e físicas.”

5. “O corpo e a mente são a sede das doenças e dos prazeres. O uso equilibrado é causa dos prazeres.”

6. “As doenças curáveis retrocedem pelas substâncias que têm propriedades energéticas opostas com a devida consideração quanto a dose, lugar e tempo.”

Para saber mais

Na livraria:

Textbook of Ayurveda, Vasant Lad, The Ayurvedic Press, EUA, 2002

History of Medicine, Volume 2 – Early Greek, Hindu and Persian Medicine, Henry E. Sigerist, Oxford University Press, EUA, 1987

Saúde Perfeita – Um Roteiro para Integrar Corpo e Mente com o Poder da Cura Quântica, Deepak Chopra, Best Seller, 1990

Na Internet:

https://www.divinity.cam.ac.uk/CARTS/dhiir/default.html – The Dharam Hinduja Institute of Indic Research, da Universidade de Cambridge

https://www.ayurveda.org.br – Associação Brasileira de Medicina Ayurvédica (Abra)

https://www.ayurveduniversity.com – Gujarat Ayurved University, a única universidade do ayurveda no mundo

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