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Enxaqueca: o sofrimento inútil

O sistema nervoso pode se tornar um masoquista e provocar sensações de dor e mal-estar por qualquer motivo. Esta é a mais recente teoria para explicar o martírio dos cerca de 400 milhões de enxaquecosos ao redor do planeta.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h39 - Publicado em 31 mar 1993, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira, com Gillian Borges

Toda dor, a princípio, tem a sua razão de ser. Trata-se de uma sirene, disparada em casos de agressão. E o organismo pode se sentir agredido de muitas formas, por justa causa — com a pressão de um beliscão na pele, com o calor brutal de uma chama, com a multiplicação desenfreada de micróbios em um órgão infeccionado, por exemplo. Espalham–se pelo corpo milhões de receptores nervosos, sempre alertas. Por mera precaução, eles enviam mensagens dolorosas diante de tudo aquilo que possa ser uma ameaça. Exageram, muitas vezes. O simples roçar da roupa no corpo seria interpretado como um arranhão, se o aviso exacerbador desses receptores não fosse calado, antes de alcançar a superfície cerebral. Mas, para aflição dos enxaquecosos, no seu caso essa interrupção em boa hora nem sempre ocorre. Seu cérebro passa a dar atenção a alarmes falsos, como os do tecido sobre a pele. Então, o leve pulsar das artérias se transforma na desagradável impressão de latejamento. Os movimentos do aparelho digestivo, por sua vez, podem ser notados como terríveis cólicas abdominais.

A dor da enxaqueca é uma dor sem sentido. Afinal, não há nada de errado com o organismo. Mas, por causa dela, há um telefone na cidade de São Paulo, que toca quase 1 500 vezes por mês. A linha tão requisitada é a do S Enxaqueca, um serviço criado há seis meses, para orientar e responder a eventuais dúvidas das vítimas dessa doença crônica. Só no Brasil, há mais de 15 milhões de pessoas com o problema e, conforme estimativas baseadas nos questionários distribuídos a quem consulta o S paulistano, a maioria delas já fez de tudo, antes de se descobrir uma legítima representante dos enxaquecosos. Algumas correram ao dentista para tratar os dentes e, muitas vezes, saíram de lá usando aparelhos ortodônticos. Outras se deitaram na mesa de cirurgia para corrigir defeitos no nariz, como desvio de septo. Sem contar aquelas que experimentaram massagens e fisioterapia para aliviar o peso nas costas. Tudo isso pode até ter resolvido a questão dos dentes, das narinas e da coluna vertebral dessas pessoas. Mas, vira-e-volta, a velha dor latejante explodia novamente. Porque sua causa estava no cérebro.

“Durante a enxaqueca, necessariamente não dói só a cabeça, daí a confusão na hora do diagnóstico”, observa um dos criadores do S, o clínico geral Alexandre Feldmann. “Alguns enxaquecosos sentem dor nas gengivas, na nuca e nos ombros. Na maioria das vezes, essa sensação dolorosa é acompanhada de náuseas, foto e fonofobia, isto é, os sons e a luminosidade se tornam insuportáveis.” Essas são apenas algumas das reações do organismo nas crises de enxaqueca, que é considerada uma síndrome, ou seja, um conjunto dos mais va-riados sintomas. De acordo com a definição clássica estampada nos livros de Medicina, esse calvário dura entre 4 e 72 horas. “Na prática, porém, já vi crises que se prolongaram por mais de duas semanas”, diz Feldmann, que começou a se interessar pelo problema quando saiu da faculdade, há sete anos. Em 1988, ele arrumou as malas, embarcou para a Noruega e, depois, para os Estados Unidos. A temporada nesses países foi consumida em estágios em importantes centros de pesquisas sobre cefaléias, como os especialistas preferem chamar as dores de cabeça. Por ironia, até hoje Feldmann conta nos dedos as ocasiões em que recorreu, ele próprio, a comprimidos de analgésicos. “Raramente eu tenho uma cefaléia.”

Há dores de cabeça e dores de cabeça: a da enxaqueca é apenas um dos treze tipos existentes, os quais se subdividem mais de cem vezes, segundo os especialistas. O tormento específico dos enxaquecosos foi descrito pela primeira vez pelos antigos sumerianos, que viviam na Baixa Mesopotâmia (região do atual Kuwait, na Ásia), cerca de três milênios atrás. O texto gravado em tábuas não deixa dúvidas, ao descrever o latejamento e a sensação de pressão, em um único lado da cabeça. Pois essa unilateralidade, cujas razões biológicas ainda são misteriosas, é a grande característica da cefaléia dos enxaquecosos — daí a designação da doença. No século XII, ela era conhecida por hemicrânia, nome derivado do grego, que significa metade do crânio. Em inglês e no francês, a palavra migraine — comum às duas línguas — tem esse mesmo sentido. No século seguinte, contudo, os árabes invadiram a Península Ibérica, na Europa. Seus médicos traduziram hemicrânia ao pé da letra, resultando na denominação ax-xaqíqâ, que mais tarde, por influência deles, se transformaria na jaqueca, dos espanhóis, e na enxaqueca dos portugueses.

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Existem, no entanto, alguns casos raros de enxaqueca em que a pessoa tem, de tempos em tempos, toda espécie de mal-estar, menos a famosa dor de cabeça. “É quase impossível realizar estatísticas sobre a freqüência dos sintomas”, lamenta a neurologista Maria Regina Nothen, do Hospital São Paulo. Ela justifica parte dessa dificuldade pela situação do paciente: “Seria pedir demais a uma pessoa enxaquecosa, que não agüenta nem barulho nem luz, para sair de casa e se submeter a uma série de testes.” Maria Regina aponta ainda que o eletroencefalograma dos enxaquecosos, exame capaz de medir a atividade elétrica das células nervosas, não costuma apresentar alterações durante as crises. Apesar disso, os cientistas insistem: é na intimidade dessas células que estão as causas da enxaqueca.

No passado, chegou-se a acusar a dilatação dos vasos da cabeça pelo distúrbio. Mas, hoje se sabe, a enxaqueca tem a ver com a produção de neurotransmissores, substâncias que passam a ser liberadas em dosagens erradas pelos neurônios. A alteração, no caso, afeta diretamente as chamadas zonas moduladoras da dor, no sistema nervoso. O principal envolvido, nas acusações dos pesquisadores, é o neurotransmissor serotonina. Diversas pistas apontam para essa substância: “Suas taxas caem durante as crises”, nota o neurologista Edgard Raffaelli Júnior, presidente da Sociedade Brasileira de Cefaléia. “A serotonina também diminui justamente no período pré-menstrual, época em que os médicos observam maior incidência do problema, nas mulheres.” Provavelmente, quando as quantidades de neurotransmissores começam a se alterar, surgem os sintomas iniciais,dois ou três dias antes do auge da crise. “Há quem tenha formigamentos nos braços. Algumas pessoas sentem cheiros que, de fato, não existem”, exemplifica Raffaelli. Um em cada dez enxaquecosos passa a enxergar pontos luminosos ou pontos pretos; uma proporção igual de vítimas fica vendo o mundo pela metade, ou seja, objetos parecem nítidos só de um lado.

Em plena crise, os médicos costumam receitar o alívio dos analgésicos. Estes, aliás, podem ser um perigo, quando ingeridos por conta própria. Segundo estudos realizados por cientistas americanos, quem engole mais de 4 miligramas de analgésicos por dia (o equivalente a quatro comprimidos) corre o risco de transformar dores de cabeça ocasionais em episódios crônicos. Não é o remédio que cria a enxaqueca; o medicamento apenas ativa a predisposição genética. Há bons motivos para acreditar que já se nasce um enxaquecoso em potencial e, quase sempre, por culpa da mãe. As estatísticas revelam que 91% das pessoas com enxaqueca têm parentes com o mesmo problema; os filhos de mulheres com o distúrbio têm doze vezes mais chance de desenvolvê-lo do que os filhos de pai enxaquecoso.

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Nessas pessoas, a bomba da enxaqueca parece estar sempre pronta para explodir. Queijos e chocolates, por exemplo, são notórios estopins de uma crise, por- que contêm tiramina e feniletilamina, respectivamente, substâncias capazes de alterar a produção de neurotransmissores. Chá-preto e café acabam tendo o mesmo efeito, por causa da cafeína, um de seus componentes. O cardápio do enxaquecoso precavido também deveria excluir vinho, sementes em geral, picles, defumados, carnes vermelhas e até mesmo sorvetes, por causa da temperatura gelada que, ao contato com o céu da boca, costuma desencadear a dor.

O sono do enxaquecoso precisa ter medida exata: às vezes, quando se dorme a mais ou a menos, a produção dos neurotransmissores se desequilibra e, daí, já se sabe. A enxaqueca só não estraga o dia-a-dia de uma pessoa porque atualmente os médicos contam com um arsenal de medicamentos, para colocar a produção das substâncias cerebrais em ordem — ou, ao menos, compensar deficiências, como é o caso da droga Sumatriptan, desenvolvida pelo laboratório inglês Glaxo. O remédio imita as moléculas da serotonina, cujos níveis despencam nos enxaquecosos. Os especialistas também não abrem mão de indicar tratamentos alternativos, como a acupuntura e exercícios de relaxamento. “Se a pessoa sente uma dor, ela acaba ficando tensa. E os músculos tensos geram mais e mais dor. O problema cresce como uma bola de neve”, diz Raffaelli. Por isso, ele recomenda aos pacientes que aproveitem esses momentos difíceis de crise para um passeio a pé. A receita bizarra faz sentido: “Além de ajudar os músculos a relaxar”, explica o médico, “o exercício suave estimula o cérebro a liberar endorfinas, seu analgésico natural.”

Os pontos mais fracos

As estatísticas mostram que há quatro mulheres com enxaqueca para cada homem na mesma situação dolorosa. Nessas pessoas, as células nervosas perdem temporariamente o compasso, na fabricação de neurotransmissores. O desequilíbrio dessas substâncias pode ser percebido, com mais freqüência, em certas regiões do corpo:

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Cabeça: os vasos sangüíneos se dilatam, talvez devido a alterações bruscas na dosagem de um neurotransmissor conhecido como substância P. Isso produziria a sensação de latejamento. Os olhos, por sua vez, permitem a entrada de luz em excesso, daí a fotofobia, ou seja, a irritação com a luminosidade ambiente. Trata-se de uma decorrên- cia da diminuição do neurotransmissor noradrenalina disponível. A substância é fundamental para a íris — estrutura ocular comparável ao diafragma de máquina fotográfica — contrair–se e dilatar, ajustando assim a passagem dos feixes luminosos. Outra lente natural dos olhos, o cristalino, também tem dificuldade de contrair–se, para focar objetos, por isso alguns enxaquecosos não enxergam com nitidez. De seu lado, as células nervosas conectadas aos ouvidos deixam de distinguir bem a intensidade dos sons e agem feito amplificadores. Resultado: qualquer barulhinho soa como um estrondo.

Ombros: a falta de endorfinas, analgésicos naturais, leva à dor na altura da nuca e dos ombros.

Estômago: provavelmente, cai a taxa de dopamina nas áreas do sistema nervoso que controlam os movimentos do aparelho digestivo e isso provoca dores abdominais. O neurotransmissor serotonina pode, ainda, invadir uma região proibida do cérebro — a chamada zona do gatilho, próxima do hipotálamo —, disparando ânsias de vômitos.

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Ovários: as alterações nos níveis de neurotransmissores podem afetar o funcionamento da hipófise, glândula situada no cérebro, que comanda todas as outras, espalhadas pelo organismo. Isso explicaria, em parte, o mal-estar e as mudanças de humor de algumas mulheres enxaquecosas, nas vésperas do período menstrual, assim como certas disfunções ovarianas.

Pernas: elas podem formigar e, até mesmo, inchar durante as crises de enxaqueca. Ainda não se sabe por que isso acontece.

Coração: por falta de controle nervoso adequado , a pressão sangüínea pode se alterar, para alta ou para baixa, conforme a tendência do organismo.

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