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Esse traiçoeiro objeto do desejo

Todo mundo sabe que as drogas fazem mal. Por que, mesmo assim, elas exercem tanto fascínio?

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h38 - Publicado em 31 ago 1998, 22h00

Claudio Angelo

Nunca, em nenhum período da História, existiu uma civilização livre de qualquer tipo de droga. Os antigos egípcios comiam ópio, os gregos se entupiam de vinho, os índios adoram plantas alucinógenas. As drogas permitidas na nossa época, como a bebida, são consumidas por bilhões de seres humanos – e as proibidas, como a maconha e a cocaína, conquistam um número crescente de adeptos.

Montanhas de dinheiro já foram gastas para reprimir o comércio das drogas ilegais, para esclarecer os curiosos sobre os seus efeitos nefastos e para recuperar os que caíram em tentação. Os males que elas causam são amplamente conhecidos. Por que, mesmo assim, as drogas continuam a exercer tamanha atração? A resposta – ou, ao menos, uma parte dela – está nas próximas páginas.

Religião, vício, prazer. Mil motivos para se intoxicar

Por que a humanidade se droga? “Os motivos são tantos quantas forem as cabeças humanas”, responde um dos brasileiros que mais entendem do assunto, o

psicofarmacologista Elisaldo de Araújo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo.

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Droga, num sentido amplo, é qualquer substância capaz de exercer um efeito sobre o organismo. Mas, quando você comprou esta edição especial da SUPER, provavelmente não estava pensando na aspirina, e sim nas drogas chamadas de psicotrópicas ou psicoativas – palavra originária do grego que pode ser traduzida como “aquilo que age sobre a mente”. As drogas alteram os sentidos, induzem à calma ou à excitação, potencializam as alegrias, as tristezas e a fantasia. Em alguns casos, induzem alucinações. Dão “barato”.

As sociedades primitivas recorriam a elas em busca de experiências transcendentais, para se aproximar de suas divindades. Hoje as drogas são mais procuradas como fonte de prazer. Existem outros motivos. Curiosidade. Desejo de conversar mais “à vontade” com os amigos. Alívio das dores e das aflições. Ou exatamente o oposto: a busca deliberada da autodestruição. Assim faziam os poetas românticos do século XIX, corroídos pelo ópio, e assim fazem, hoje, os junkies europeus, que exibem suas picadas como se fossem troféus.

Um namoro antigo

O rótulo de droga se aplica a substâncias tremendamente diversas entre si – e o ato de consumi-las é praticado em contextos os mais variados. A cocaína era vendida livremente nas farmácias até o início do século. Os brasileiros adeptos do Santo Daime ingerem – e vomitam – o chá alucinógeno ayahuasca sem serem incomodados pela lei.

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Os antropólogos acham que o fascínio pelas drogas começou por acaso, na Pré-História. Nossos ancestrais perceberam que algumas plantas e fungos tóxicos, quando não matavam, induziam a estados alterados de percepção. Gostaram da coisa. Essas plantas passaram a ser veneradas. Os antigos cretenses tinham uma deusa da papoula, a flor de onde se extrai o ópio. Os astecas idolatravam os cogumelos do delírio. Todas as culturas tiveram lá suas drogas. Até animais fazem uso delas, à sua maneira. Elefantes se embriagam com frutos fermentados, e gatos ficam alucinados quando mastigam menta.

Eu, Christiane F. A bela Vera Christiane Felscherinow chocou o mundo ao publicar, aos 16 anos, a autobiografia Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída. No livro, ela narra os horrores da vida dos heroinômanos alemães nos anos 80.

O que ontem era proibido hoje é permitido. E vice-versa

Na Alemanha medieval, os consumidores de uma certa bebida negra de efeitos estimulantes eram executados em praça pública. Achava-se que ela tinha relação com o demônio. Hoje, é difícil imaginar o mundo, em especial o Brasil, sem essa droga – o café.

“A atenção da sociedade sobre uma substância tem pouco a ver com o poder dela”, diz a socióloga Beatriz Carlini-Cotrim, do Departamento de Medicina Preventiva da USP. A proibição de uma droga geralmente tem motivos políticos, econômicos ou religiosos, sem que seu potencial destrutivo seja considerado. O proibido de hoje pode estar em farmácias ou supermercados amanhã, e vice-versa. Nos anos 20, por exemplo, a cocaína e a maconha eram comercializadas livremente por qualquer boticário nos Estados Unidos. Enquanto isso, o governo tentava combater, sem sucesso, uma droga tão perigosa quanto a coca: o álcool. Qualquer dono de bar era considerado um traficante.

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Pirados criativos?

As drogas costumam ser associadas à criatividade. Artistas como o poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), autor de Os Paraísos Artificiais (ao lado, em auto-retrato, fumando haxixe), buscaram e buscam inspiração em diversos tipos de substâncias psicoativas. Esses artistas acreditavam que as drogas possibilitam ter visões de pura beleza e enxergar além da realidade. Outros se drogavam para fazer um mergulho voluntário na “essência da alma humana”. Nos anos 60, a chamada arte psicodélica baseou suas obras nas visões alucinatórias produzidas pelo LSD. Na verdade, não existe nenhuma comprovação científica de que os psicotrópicos aumentam a criatividade. “O que acontece é que as pessoas perdem a autocrítica e se sentem mais livres para criar”, diz o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira Filho, da Universidade Federal de São Paulo. O que não garante a qualidade das obras.

As portas do êxtase divino viraram válvulas de escape

As drogas, assim como a religião, atendem a uma necessidade humana primordial, a de sair da própria consciência, transcender o cotidiano. Não é por acaso que muitas religiões utilizam substâncias que mexem com a cuca. Essa é a única semelhança entre o uso da droga dos indígenas da Guatemala e os executivos cocainômanos de Wall Street, por exemplo. Nos dois casos, o hábito funciona como um elemento de identificação da “tribo”, um código comum entre os usuários daquele tóxico específico. As culturas “primitivas”, no entanto, nunca tiveram problemas com suas drogas, ao passo que, na sociedade contemporânea, elas são uma epidemia devastadora. O que aconteceu?

Espíritos viciados

As religiões sempre souberam controlar o uso dos seus psicotrópicos. Os judeus, que usam vinho tinto em quase todas as suas festas, condenam severamente o alcoolismo como fraqueza de cará-ter. Os índios americanos, povos que mais deram drogas ao mundo, tinham substâncias que, de tão perigosas, eram de uso exclusivo dos xamãs. Como o tabaco. Algumas tribos o consideravam a única planta mágica capaz de criar dependência. Segundo o antropólogo Peter Furst, os pajés se aproveitavam disso para viciar seus própios deuses. A fumaça era “alimento dos espíritos”, que faziam de tudo para receber sua sagrada nicotina. “Como não dispunham da planta no além, eles ficavam sujeitos à manipulação dos sacerdotes”, afirmou Furst.

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Hoje, para estudiosos do assunto, as drogas perderam sua função de ponte com o divino. Passaram a ser consumidas sem o menor critério, o que facilita o abuso. Se antes elas eram sagradas – e, por isso, ninguém saía por aí abusando –, hoje indicam apenas a busca do prazer pelo prazer. O rito religioso, que concentrava todos os símbolos de uma sociedade, cedeu lugar à roda de viciados em heroína injetável, desafiando a morte pelo contágio do vírus da Aids num canto qualquer.

“As drogas foram dessacralizadas, assim como o almoço em família”, diz a psicóloga paulista Lidia Aratangy. As portas químicas para os êxtases divinos são abertas hoje para aliviar o estresse. O homem moderno se embriaga para esquecer, fuma para relaxar, toma cocaína para trabalhar, engole tranqüilizantes para a dor-de-cotovelo. Os deuses não devem estar gostando.

Até tu, lagarta?

O escritor inglês Lewis Carroll (1832-1898) descreve, no livro Alice no País das Maravilhas, o encontro da famosa personagem com uma grande lagarta azul que fumava “um grande cachimbo d´água, sem prestar atenção nem a ela, nem a nada.”

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A planta mágica que está fundando religiões no Brasil

Nem sempre as drogas destroem. Ao contrário. Podem integrar e estruturar, se usadas em rituais sagrados. É o caso do cipó alucinógeno ayahuasca (em quí-chua, “cipó das almas”), conhecido como mariri ou yajé. Usada há centenas de anos por nações indígenas da Amazônia, a ayahuasca ajudou a fundar duas religiões caboclas que têm atraído a classe média urbana: o Santo Daime e a União do Vegetal.

A UDV foi criada em Rondônia pelo seringueiro baiano José Gabriel da Costa. Ele aprendeu a preparar o chá (“vegetal”, para os fiéis) na fronteira boliviana. A ayahuasca contém dois alcalóides potentes: a harmalina, no cipó, e a dimetiltriptamina, que vem da chacrona, folha misturada ao chá para potencializar seus efeitos. Para o diretor da seita Almir Nahas, o chá é um veículo de concentração. O consumo é restrito aos cultos, que funcionam como uma espécie de terapia de grupo em que o “vegetal” ajuda a quebrar barreiras na consciência. Sob o efeito da bebida, a “borracheira”, os fiéis afirmam ter visões místicas, as “mirações”.

“A cada sessão eu descubro uma coisa nova sobre mim mesma”, disse à SUPER a antropóloga Lucia Gentil, adepta da seita. Mas a transcendência tem seu preço: às vezes, a experiência é quase insuportável (veja abaixo).

“Passei muito mal”

Algumas pessoas têm experiências espirituais transformadoras com a ayahuasca. Muitas “se encontram” no chá e acabam virando adeptas, o que, efetivamente, melhora sua vida. Mas, da primeira vez, não tem jeito: quase todo mundo passa mal. Foi o meu caso. Passei mal, e muito. Peguei “peia”, como dizem os huasqueiros.

Tomei ayahuasca na UDV, em São Paulo, para fazer esta reportagem para a SUPER. O chá tinha um gosto amargo. Mas o pior ainda estava por vir: a borracheira. Os fiéis viam a Luz, eu via estrelas. Era o meu estômago, avisando do vômito iminente. Saí do salão de culto e vomitei no primeiro balde que encontrei. Depois vieram calafrios e tremores intensos, que duraram quase 2 horas – uma eternidade para mim. Enquanto os demais se concentravam num plano superior, eu só conseguia me concentrar no meu combalido corpo físico. Depois do enjôo, tive uma cólica que durou o resto da sessão. Só consegui comer no dia seguinte. A borracheira me esborrachou. (C.A.)

“A firme convicção da realidade material do inferno nunca impediu os cristãos de fazer o que sugerissem sua ambição, luxúria ou cobiça.”

Aldous Huxley (1894-1963), escritor inglês

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