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Johann Sebastian Bach: Alegria dos Homens

Ele não inventou novas formas musicais. Mas sua síntese magistral de todas elas alcançou uma perfeição até hoje incomparável.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h08 - Publicado em 30 jun 1989, 22h00

Lauro Machado Coelho

Ser um Bach significava ter a música no sangue. Dos 33 membros da família de que se tem notícia desde o século XVI, antes do nascimento do grande Bach, 27 tinham sido músicos. E quatro dos filhos de Bach foram compositores tão importantes que, por si sós, já teriam bastado para garantir a imortalidade desse nome. Ser um Bach significava também ter aquela fervorosa religiosidade herdada da tradição luterana, que associou o nome de muitos deles ao serviço da Igreja. E aquela exigente concepção de disciplina profissional, que fazia deles requisitados músicos da Corte ou das escolas de música da municipalidade. Era esse o caso de Johann Ambrosius, compositor oficial de Eisenach, na Turíngia – hoje, centro da Alemanha Ocidental -, onde a 21 de março de 1685 nasceu o seu terceiro filho, batizado com o nome de Johann Sebastian.

Ao contrário de Mozart, que, aos 30 anos, já era dono de um conjunto de obra impressionante, Bach não foi um menino prodígio. Suas composições realmente geniais só começariam a despontar sistematicamente lá pelos 35 anos. Como instrumentista, isto sim, desde muito cedo ele foi excepcional. Já em seus primeiros empregos – em Arnstadt e Mühlhausen (entre 1703 e 1708) e depois na devota corte luterana de Weimar (de 1708 a 1717) – ele se impôs como um dos maiores organistas de seu tempo. E depois, no período que passou na corte de Köthen (1717-1723), cujos hábitos religiosos mais moderados permitiram-lhe dedicar-se mais intensamente à música instrumental profana, ele se revelou também um extraordinário cravista.

Ao órgão, além de uma incrível agilidade nos pedais, suas mãos enormes cobriam doze teclas, com que pôde desenvolver uma revolucionária técnica de dedilhado. Bach foi o primeiro a usar o polegar, e não apenas os quatro dedos, como os organistas anteriores a ele. E conseguia tocar a melodia básica com o polegar e o mínimo, enquanto improvisava ornamentos com os três dedos do meio. Era ainda capaz de cruzar o terceiro dedo sobre o quarto e o segundo sobre o terceiro – procedimento que seu próprio filho Carl Philip Emanuel, ao elaborar a moderna técnica do dedilhado ao teclado, eliminaria por considerá-lo muito difícil.Seu virtuosismo era fruto da observação dos grandes mestres da época. Entre eles, Dietrich Buxtehude, a cujos concertos na igreja de Santa Maria ele assistiu durante os quatro meses que passou em Lübeck, em 1706. Sua dedicação e talento fizeram com que Buxtehude o convidasse para ser seu substituto, quando estava para aposentar-se. Mas Bach recusou, pois para isso teria de aceitar também casar-se com Anna Margarete, a filha solteirona, de 30 anos, do velho organista. E não só porque, a essa altura, ele já estava apaixonado por sua prima Maria Bárbara – com quem viria a casar-se em 1707 – mas também porque Fräulein Buxtehude era totalmente desprovida de encantos. Tanto assim que Haendel, Telemann e Matheson, músicos também, declinaram da oferta pelo mesmo motivo.

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De todos os gêneros musicais existem em seu tempo, a ópera foi o único que Bach não praticou, embora não lhe faltasse senso dramático. Não foi o inventor de novas formas ou novos gêneros. Mas, como Mozart e Beethoven depois dele, tomou todas as formas que lhe tinham sido legadas por seus predecessores e de tal modo as ampliou, tanto na estrutura quanto nos recursos expressivos, que as levou a um grau de perfeição antes desconhecido. “Se tentássemos caracterizar a arte de Bach com uma só palavra”, escreveu seu biógrafo Karl Geirenger, “esta teria de ser unificação. Os mais heterogêneos elementos foram fundidos por ele numa entidade de caráter completamente novo e coerente.”

De fato, a obra de Bach oferece uma síntese magistral de todas as formas musicais existentes em seu tempo. Das influências externas, do que havia de mais moderno na música italiana ou francesa da época; mas também de formas musicais originárias das mais diversas regiões germânicas. Nessa época, a Alemanha ainda não existia como país unificado; fragmentava-se em principados, ducados e eleitorados com sistemas políticos, costumes religiosos e tradições culturais próprias. Ritmos de dança, melodias folclóricas, canções populares, hinos de igreja, tudo era amalgamado com um estilo muito pessoal e, recebendo uma roupagem harmônica nova, soava realmente como fruto exclusivo de sua inspiração.

Essa apropriação não se fazia apenas no nível do cancioneiro anônimo. No século XVIII, a noção de plágio ainda não existia como hoje. Os músicos, assalariados da Corte ou da Igreja, não precisavam preocupar-se com a defesa da propriedade intelectual para garantir o seu sustento. E Bach também – como todos os seus contemporâneos – não hesitava em reutilizar música alheia; mas, ao fazê-lo, reelaborava-a de modo a dar-lhe um tom inequivocamente pessoal. Ele transpôs, por exemplo, os concertos para violino de Vivaldi – por quem tinha grande admiração – para uma virtuosística combinação de quatro cravos.

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A experimentação, de resto, foi um traço fundamental da personalidade artística de Bach. Ele aplicava recursos técnicos do cravo ou do órgão ao escrever para as cordas. Tinha em alto grau aquele traço – típico do compositor barroco – que desconhecia a existência da diferença de tom entre a música sacra e a profana. Com a maior desenvoltura, passava trechos de uma obra para outra; reaproveitava numa peça para cravo uma melodia de igreja escrita para órgão muitos anos antes. Bach não rompeu com as formas fixas de seu tempo. Mas teve inesgotável imaginação para retrabalhar suas estruturas; não há duas fugas, invenções, tocatas, cânones ou prelúdios que sejam rigorosamente no mesmo molde de outro.

A visão arquitetônica, em sua composição, é um traço marcante: em todas as suas peças há uma simetria, um senso de ordem, um perfeito equilíbrio entre as diversas partes, que se contrastam e complementam, evidenciando a organização lógica, matemática, de sua mente criadora. É claro que esse gosto pela construção ao mesmo tempo contrastante e simétrica não é exclusivo de Bach; é uma característica comum aos compositores barrocos. Mas ninguém, como ele, levou-a a um tal grau de complexidade e perfeição. Comum a seus pares é também o gosto pelo descritivismo musical, ou seja, a evocação de fenômenos naturais através dos sons – o que leva Vivaldi a escrever suas famosas Quatro estações, ou enche as óperas de Jean-Baptiste Lully de sinfonias descritivas que são retratos sonoros de tempestades, naufrágios, alvoradas ou crepúsculos.

Bach também faz isso de forma graciosa na cantata de aniversário para seu patrão Wilhelm Ernst, de Leipzig. Nela ele sugere a ondulação das vagas no mar jogando com as aliterações dos versos “Schleicht spielende Welle/und murmelt gelinde!/nein! rauschet geschwinde!” (Deslizai, ondas brincalhonas, e murmurai docemente! não! bramai com toda a força!). Esse lado bem-humorado desmente uma imagem sisuda que uma certa tradição quis passar dele, de um homem fechado dentro de uma hermética espiritualidade, ou cuja música fosse apenas um jogo de armar racional e sem emoção.

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Mas o descritivismo musical nas mãos de Bach assume formas muito mais abstratas, quando ele o expressa, por exemplo, através do simbolismo numérico – pelo qual tinha uma atração quase supersticiosa. O “Crucifixus” da Missa em si menor constrói-se sobre uma série de treze variações, pois o 13 – número dos convivas que se sentaram à mesa na última Ceia – está tradicionalmente associado à idéia do infortúnio. Essa fixação fazia com que, muito freqüentemente, Bach usasse ritmos baseados na decomposição do número 14, pois este correspondia a seu próprio nome: como B é a segunda letra do alfabeto, A a primeira, C a terceira e H a oitava, Bach = 2 + 1 + 3 + 8 = 14.

Da mesma forma, valendo-se do sistema alemão de usar letras para nomear as notas da escala, ele converte seu nome em tema melódico: BACH = si bemol-lá-dó-si natural (e, nos séculos futuros, esse será um tema constantemente retomado por outros compositores, em homenagem a ele). Ou então ele usa o número 43 porque J é a décima letra do alfabeto, S, a décima nona e, assim, J.S. BACH = 10 + 19 + 14 = 43. A obsessão pela numerologia fez com que ele atrasasse a sua inscrição na Sociedade para a Promoção da Ciência Musical, fundada em 1738, só entrando para ela em junho de 1747, quando pôde fazê-lo como seu 14º membro.

Mas esse músico intelectualizado, perfeitamente em dia com o que se fazia de mais moderno na música de toda a Europa, nunca foi um homem trancado numa torre de marfim. Ao contrário: juntamente com suas duas mulheres – Maria Bárbara e Anna Magdalena, com quem se casou em segundas núpcias em dezembro de 1721 – , sempre cuidou dos menores detalhes das despesas domésticas. E sabia muito bem brigar com seus empregadores por melhores salários e condições de trabalho. Compleição maciça, nariz grande e o queixo um tanto proeminente que a iconografia mostra, Bach estava longe de ser um eremita: basta lembrar os 21 filhos – sete da primeira mulher e catorze da segunda – que gerou em seus casamentos.

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Marido fiel e devotado, ficou completamente desarvorado quando Maria Bárbara morreu de repente, em julho de 1720. E, embora fosse costume da época – e em especial da família Bach – um viúvo voltar a casar-se imediatamente, ele hesitou um ano antes de escolher Anna Magdalena. Bach gostava de comer bem, especialmente arenque ao molho de vinho bem apimentado, com cerveja ou vinho branco, seguido de muitas xícaras de café e uma longa cachimbada. Era econômico, de hábitos moderados, mas fazia questão de ter a casa sempre cheia de flores, de preferência cravos, que eram suas favoritas. E não sabia resistir à tentação de gastar suas economias na compra de instrumentos novos – cravos, espinetas, clavicórdios, violinos – que colecionou em grande quantidade a vida inteira.

Era professor extremamente paciente quando os alunos tinham talento, mas irascível com os medíocres. Contam que uma vez quando diretor da escola de música da igreja de Santo Tomás, em Leipzig, ele arrancou a peruca e atirou-a em um discípulo, gritando: “Por que é que você não vai ser sapateiro?” Gostava muito de transmitir seus conhecimentos aos outros, haja vista os muitos manuais didáticos que escreveu: o Pequeno livro de cravo, para ensinar a seu filho Wilhelm Friedemann; o Livro de Anna Magdalena, que deu de presente à segunda mulher; ou o maior de todos, os dois volumes do Cravo bem temperado, com 48 prelúdios e fugas em todas as tonalidades maiores e menores, que consolidaram o sistema tonal usado até hoje.

É impressionante a liberdade que o Bach professor deu a cada um dos filhos de desenvolver a sua própria personalidade musical. Dos 21 filhos, apenas nove sobreviveram; e, dos cinco homens, Gottfried Heinrich, do segundo casamento, era débil mental, o que foi fonte de grande sofrimento para ele e a mulher. Mas os outros quatro cresceram e se tornaram compositores com idioma próprio, em nada dependentes do estilo do pai. Wilhelm Friedemann (1710-1784), de personalidade instável e dominado pelo alcoolismo, morreu na miséria. Foi o mais visionário deles, antecipando o desenvolvimento da sonata.

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Carl Philip Emanuel (1714-1788), o “Bach de Berlim”, foi o pioneiro do concerto para piano. Johann Christoph Friederich ( 1732-1795) foi autor de oratórios e um dos precursores da sinfonia. E Johann Christian (1735-1782), o “Bach de Londres”, foi o único da família a tornar-se um prestigioso autor de óperas. Essa independência que soube dar aos filhos é fruto típico do individualismo de Johann Sebastian, o que o destacava dos músicos de seu tempo. Naquela época, um emprego de músico de igreja ou da Corte era para toda a vida. Mas ele não hesitava em trocar de posto, toda vez que sentia ter esgotado as possibilidades que lhe ofereciam. Esse individualismo fez com que fosse admirado por Frederico, o Grande, rei da Prússia, a quem visitou em Potsdam, em 1747.

Contam que quando Bach acabou de improvisar, ao cravo, sobre um tema que lhe fora sugerido pelo soberano – que, além de razoável compositor, transformou a Prússia na principal potência militar européia e Berlim num dos grandes centros culturais da época – , este comentou: “Pena que variações tão lindas sejam apenas um improviso e se percam para sempre”. Bach, cuja memória era prodigiosa, teria se sentado de novo ao cravo e repetido integralmente o que tocara antes. Foi ainda o individualismo que fez com que, no fim da vida, ao perceber que se acentuava a distância entre seu estilo e o gosto das novas gerações, preferisse renunciar à tentativa de ser aceito pelo público.

Continuou a dedicar-se a obras pessoais, como a grandiosa Missa em si menor ou ao seu testamento inacabado: a Arte da Fuga, obra única na história da música não concebida para algum instrumento em especial. Bach sempre fora robusto e gozara de boa saúde. Mas a vista era seu ponto fraco: míope desde criança, o esforço de escrever à luz de vela, ou de gravar ele mesmo as chapas de cobre para impressão de suas partituras, levou-o gradualmente à cegueira. Em março ou abril de 1750, submeteu-se a duas operações como o cirurgião John Taylor, que visitava Leipzig. Mas ambas fracassaram. Em 18 de junho de 1750, subitamente, ele recuperou a visão; mas, algumas horas depois, sofreu um ataque de apoplexia (lesão vascular cerebral) seguido de febre altíssima. Morreu dez dias depois.

Coincidentemente, a morte de Bach assinala o final de uma época, em que o Barroco que ele representava estava sendo substituído pelo Classicismo, pontuado por grandes mudanças tanto estéticas quanto ideológicas. Abria-se caminho, a partir das idéias dos filósofos iluministas, publicadas na Enciclopédia desde 1751, para a ascensão dos ideais revolucionários de oposição aos regimes absolutistas, que culminaram na Revolução Francesa. Durante muito tempo, as partituras desse extraordinário músico – das quais muitas se perderam – ficaram restritas a fechados círculos de especialistas. Só a partir de 1829, quando se fez a execução pública da Paixão segundo São Mateus, regida por Felix Mendelssohn, é que a obra de Bach passou a ser conhecida por um público mais amplo.

Para saber mais:

Mozart, a flauta mágica

(SUPER número 6, ano 5)

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