O mal dos séculos, a tuberculose
A tuberculose ainda está viva. É a doença infecciosa que mais mata no mundo - quase tanto quanto a Aids e a malária juntas. Seu grande trunfo é imaginarmos que ela não existe mais
Ivonete D. Lucírio
O nome tuberculose está associado a uma doença do passado, que, entre o final do século XIX e meados do XX, dizimou grandes poetas românticos como Castro Alves e Álvares de Azevedo, no Brasil, e John Keats e Lord Byron, na Europa. Ela é vista como um mal debelado que, em determinado momento da história, obrigou centenas de pessoas a se exilar por anos em sanatórios ou em cidades de bom clima, para se tratar.
Mas, ao contrário do que possa parecer, a tuberculose não ficou para trás. Muito ao contrário. Hoje perdeu seu romantismo e deixou de ser cantada em versos por literatos tísicos. Só que ainda continua fazendo milhões de vítimas. Todos os anos cerca de 6,8 milhões de pessoas adoecem no mundo e 3 milhões morrem de tuberculose. É a doença infecciosa que mais mata, passando uma rasteira na Aids – que faz 2,6 milhões de vítimas – e na malária – que mata 1 milhão por ano –, que a acompanham bem de perto.
O Brasil é o 15º colocado no ranking, encabeçado por China e Índia, dos 22 países que respondem por 80% dos casos de tuberculose do mundo. Estima-se que surjam por aqui 116 000 casos por ano, dos quais apenas 79 000 são notificados ao Ministério da Saúde. “O número tem permanecido estável nos últimos 15 anos”, diz a pneumologista e pesquisadora clínica Margareth Dalcomo, do Centro de Referência Professor Hélio Fraga, no Rio de Janeiro. Enquanto a situação no Brasil estacionou – embora isso tenha acontecido num patamar perigosamente alto –, o problema no resto do mundo é assustador. Segundo as projeções da Organização Mundial de Saúde (OMS), até 2020 haverá cerca de 1 bilhão de novos infectados. Desses, 200 milhões vão adoecer. E 35 milhões – a população de um país como a Argentina – vão morrer.
Os números são mais que suficientes para provar que a doença continua viva e tão ativa quanto já esteve nos pulmões do século passado. Depois de décadas de queda – principalmente devido ao surgimento das primeiras drogas, como a estreptomicina, nos anos 40 e 50 – a quantidade de gente infectada voltou a subir rápido a partir do início dos anos 90. Em abril de 1993, a OMS decretou a tuberculose como uma “emergência global”.
Boa parte desse novo fôlego que a tuberculose ganhou foi culpa da epidemia de Aids que despontou nas últimas décadas. Apesar de um terço da população mundial carregar a bactéria causadora da tuberculose, apenas 20% desenvolve o mal. São principalmente aquelas pessoas que têm o sistema de defesa do organismo abalado, caso de boa parte dos portadores do vírus da Aids. Além dessas, são vítimas em potencial também os diabéticos, quem fez transplantes de órgãos e pessoas que vivem em condição de extrema pobreza ou subnutrição.
A transmissão da doença é a mais banal possível, por via aérea. Basta o doente tossir, bocejar, espirrar ou mesmo cantar para que o ar ao seu redor se encha da bactéria que causa a tuberculose, o Mycobacterium tuberculosis. Pior, o micróbio consegue viver até 24 horas suspenso no ar antes de entrar no pulmão de alguém. “Por isso a doença é predominantemente urbana, surge quando há aglomerados de gente”, diz a pneumologista Margareth Dalcomo. A regra vale para países pobres, onde se concentra a grande maioria dos casos, mas também para os mais desenvolvidos.
Em 1992, uma enorme epidemia atacou a ilha de Manhattan, em Nova York, Estados Unidos. Em meados do ano passado, foi a vez de um subúrbio londrino, Newham, que apresentou uma média de 108 casos por 100 000 habitantes, bem mais alta que na Índia (41 por 100 000 habitantes). As vítimas londrinas eram, e continuam sendo, os sem-teto, os usuários de drogas e, principalmente, refugiados africanos e indianos. Acredita-se que esses últimos tenham trazido a epidemia para o bairro. Sinal da globalização, em que até mesmo bactérias e vírus trocam de país e de continente em poucos dias.
Mais preocupante do que a situação do bairro londrino é a dos presídios russos. Lá, cerca de 100 000 prisioneiros, 10% de toda a população carcerária do país, desenvolveram a tuberculose. “As prisões são uma incubadora muito eficiente para infecções por causa da superpopulação, da pouca ventilação, da nutrição deficiente e do estresse”, afirma o infectologista Michael Kimerling, da Universidade de Alabama, Estados Unidos, que preparou para a Organização Mundial de Saúde (OMS) um manual sobre o controle da doença em presídios.
O surto naquela comunidade é tão grande que os membros dos Médicos sem Fronteiras, uma organização mundial sem fins lucrativos, contaram até com a ajuda da máfia que comanda os presídios russos para combater a doença. “Até o mais perigoso presidiário vê o combate à tuberculose como um benefício para as próprias famílias que estão fora do presídio. A doença é transmitida pelo ar e não há parede alta ou grossa o suficiente para manter a bactéria distante do resto da população”, diz Kimerling.
A estratégia usada para combater a tuberculose nos presídios russos é o chamado DOT (sigla em inglês para Terapia Diretamente Observada). Segundo a OMS, hoje 43% da população carcerária na Rússia tem acesso ao DOT. “Os esforços são para que pelo menos três quartos dos pacientes se beneficiem do programa”, diz o infectologista Peter Small, do Centro Médico da Universidade de Stanford, Estados Unidos. O DOT consiste basicamente em dar os medicamentos para o doente e vigiá-lo para ter certeza de que ele vai tomar do jeito certo. Isso pode ser feito por agentes que visitam o paciente todos os dias ou exigindo que ele vá até um hospital para receber, e tomar, os remédios.
Tarefa razoavelmente fácil de ser executada em regiões pouco populosas ou em locais isolados, como dentro de um presídio, mas bem mais complicada em grandes cidades. “No Rio de Janeiro há pacientes que moram a mais de 40 quilômetros do posto de saúde e fica impossível para eles irem todos os dias ao posto para receber a medicação”, diz Margareth Dalcomo.
A preocupação em vigiar os doentes é para evitar que abandonem o tratamento, hoje feito basicamente com três drogas – a pirazinamida, a isoniazida e a rifampicina – que brecam o desenvolvimento da Mycobacterium tuberculosis. Parece bobagem, mas a má administração dos remédios é uma das grandes causas da expansão das doenças. “O tratamento deve ser feito durante seis meses, sem interrupção, para garantir que a doença seja totalmente curada”, diz o pneumologista Carlos Carvalho, supervisor do serviço de pneumologia do Hospital das Clínicas de São Paulo. Nem todos chegam ao fim porque os sintomas da tuberculose desaparecem logo nas primeiras semanas e a pessoa acha que já ficou boa, apesar de grande parte das bactérias ainda estar viva dentro do organismo. Os efeitos colaterais dos remédios também não motivam muito o paciente a seguir o tratamento à risca. As drogas podem provocar o aparecimento de hepatite, gota e inflamação nas juntas.
É um tratamento incômodo: de acordo com o peso da pessoa, algumas das drogas são tomadas mais de uma vez por dia. Uma pessoa de 50 quilos tem que engolir duas cápsulas, três comprimidos e mais uma vitamina para ajudar o organismo a enfrentar o coquetel. Para um paciente de 70 quilos, o número sobe para oito medicamentos.
Quando o paciente interrompe essa terapia antes da hora não está apenas prejudicando sua saúde, mas dando a oportunidade às bactérias de desenvolver resistência aos medicamentos. “No início do tratamento, as drogas matam somente as bactérias mais sensíveis”, diz o pneumologista Carlos Carvalho. Os micróbios mais resistentes sobrevivem e reiniciam a doença. Só que, dessa vez, podem estar imunes a uma ou mais drogas. “Entre 1% e 3% dos casos de tuberculose no mundo são resistentes às três drogas”, explica o infectologista Marcos Espinal, da OMS, na Suíça. Apesar de a porcentagem parecer baixa, o número de casos de bactérias resistentes é grande: algo entre 68 000 e 204 000. E está aumentando em alguns países da Europa Ocidental. Nas próprias prisões russas já chega a 20% o número de pacientes infectados que não respondem ao tratamento convencional.
Nesses casos, alguns outros antibióticos, que não são específicos para combater a bactéria da tuberculose – como as quinolonas e as claritomicinas –, entram no tratamento. Só que eles são bem mais caros que as drogas convencionais e, por isso, nem sempre estão disponíveis em países pobres. Enquanto as drogas para um tratamento convencional de tuberculose saem por cerca de 10 dólares, uma terapia que envolva bactérias resistentes pode chegar a 15 000 dólares. “Estamos negociando a aprovação de um projeto que nos permitiria comprar os remédios mais novos e poderosos por menos de 5% do valor que elas têm no mercado, e assim poder usá-los em maior escala”, diz o cientista Rajesh Gupta, da OMS.
Mas o problema não termina aí. Nem esses medicamentos novos e caros dão garantia de acabar com a doença. O que preocupa os especialistas é que, a curto prazo, nenhuma droga deve aparecer. “Os laboratórios não investem nas pesquisas de medicamentos para doenças infecciosas que atingem países em desenvolvimento porque os lucros são muito baixos”, diz Gupta. “Não vejo a possibilidade de nenhum novo remédio para tuberculose estar disponível nos próximos cinco ou dez anos.”
Há cerca de dois anos foi criada a Aliança Global para Drogas, uma iniciativa de vários órgãos de saúde mundiais, como a própria OMS. O objetivo é conseguir verbas para financiar a pesquisa de novos remédios para a tuberculose. A Fundação Bill e Melinda Gates, que o dono da Microsoft mantém com a sua mulher, é uma das que mais promete contribuir: de 2000 até 2005 deve doar 25 milhões de dólares para novas pesquisas. Outra iniciativa foi, no final de janeiro, a criação do Fundo Mundial Para Combate à Aids, Malária e Tuberculose. A proposta do secretário geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Koffi Annan, é que o G-8, grupo que reúne os oito países mais ricos do mundo, banque estudos nessas áreas. Mas, até um mês depois da criação do fundo, nenhuma moeda havia sido colocada em seu cofre.
Além de novos medicamentos, é preciso ter gente que entenda da doença para tratá-la melhor. Formar esse pessoal é um dos objetivos da Rede TB (sigla usada mundialmente para se referir à tuberculose), criada no final de 2001 por grupos de pesquisadores de várias universidades brasileiras. “Nossa intenção é realizar pesquisas epidemiológicas, clínicas e formar recursos humanos para lidar com os doentes”, diz o infectologista Célio Lopes Silva, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, e coordenador da Rede TB.
A falta de informação sobre tuberculose é grande até entre os próprios médicos. A infectologista Valdelis Novis Okamoto, do ambulatório de pneumologia do Hospital das Clínicas de São Paulo, fez uma pesquisa sobre os procedimentos médicos no hospital. “Pela conduta correta, todo paciente que chega aqui com expectoração que já dura mais de três semanas deveria fazer um teste para verificar se tem a bactéria da tuberculose”, explica Valdelis. Só que, estudando a conduta dos médicos do pronto atendimento em fevereiro de 2000, ela constatou que isso só ocorreu em 16% dos casos. “Isso talvez aconteça porque o próprio profissional de saúde acredita que a tuberculose é uma doença do passado, que não é mais um problema”. Pior que é. E dos sérios.
Para saber mais
Na internet
https://www.who.int/gtb/publications
Frases
Até 2020, a tuberculose vai infectar 200 milhões e matar 35 milhões de pessoas
O abandono do tratamento é uma das grande causas da expansão da doença
Os campeões da bactéria
Número de pessoas infectadas por ano
PAÍS
1. Índia – 1,856 milhão
2. China – 1,365 milhão
3. Indonésia – 595 000
4. Nigéria – 347 000
5. Bangladesh – 332 000
6. Etiópia – 249 500
7. Filipinas – 249 400
15. Brasil – 116 000
Fonte: Estimativa da Organização Mundial de Saúde em 2000