O outro lado do Ozempic
Criado para tratar a diabetes, ele virou moda para outra coisa: emagrecer. As vendas dispararam. Mas a euforia esconde dois pontos críticos: ele precisa ser tomado pelo resto da vida (ou a pessoa engorda de novo), e os medicamentos desse tipo têm uma questão mal resolvida envolvendo o risco de câncer.
Texto Bruno Garattoni e Tiago Cordeiro
Ilustração Felipe Del Rio
Design Natalia Sayuri Lara
T“Todo mundo está tão bonito. Eu olho esta sala, e não posso deixar de me perguntar: o Ozempic é certo para mim?”, disse o comediante e apresentador Jimmy Kimmel no monólogo de abertura do Oscar 2023.
Foi uma piadinha: ele usou uma frase tradicional nas propagandas da indústria farmacêutica nos EUA (“pergunte ao seu médico se o remédio tal é certo para você”). O Ozempic virou mania em Hollywood, e Kimmel quis cutucar os artistas presentes – vários dos quais talvez usem o medicamento.
Nos últimos meses, celebridades de diversos naipes, do empresário Elon Musk à cantora Jojo Todynho, admitiram recorrer ao Ozempic, desenvolvido contra a diabetes tipo 2, para perseguir outro objetivo: perder peso (um efeito secundário da droga).
Em 2022, a farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk faturou US$ 8,5 bilhões com o Ozempic, que mesmo custando caro (por volta de R$ 1.000 mensais) ficou em falta nas farmácias dos EUA e do Brasil.
O TikTok está cheio de vídeos de pessoas mostrando o corpo antes e depois do remédio, que já rendeu até o primeiro meme nas redes sociais – o chamado “rosto de Ozempic”, em que as pessoas ficam com a cara chupada devido ao rápido emagrecimento.
Em junho de 2021, o fabricante obteve aprovação da FDA para lançar outro produto, o Wegovy, com o mesmo princípio ativo do Ozempic, a semaglutida – a diferença é que ele tem doses mais altas, e é especificamente indicado para combater obesidade ou sobrepeso. Já está no mercado americano, e deve chegar ao Brasil no segundo semestre (foi autorizado pela Anvisa em janeiro de 2023).
As ações da Novo Nordisk dobraram de valor nos últimos dois anos, e agora os concorrentes tentam pegar carona nessa onda: Pfizer e Novartis estão desenvolvendo drogas do tipo, e a Eli Lilly pretende começar a vender o Mounjaro (tirzepatida), seu produto antidiabetes, como emagrecedor.
Até o final da década, as novas drogas antiobesidade devem alcançar US$ 54 bilhões de faturamento anual, segundo estimativa do banco americano Morgan Stanley. Elas são a resposta da indústria farmacêutica para o engordamento do mundo, que já alcançou proporções alarmantes: nos EUA, 42% dos adultos são obesos e 30% estão acima do peso (no Brasil, 20% são obesos e 57% têm sobrepeso).
Mas a euforia em torno do Ozempic esconde dois pontos críticos. Geralmente as reportagens sobre o remédio informam que ele pode causar diarreia e enjoo, e não deve ser usado sem orientação médica, mas param por aí.
Só que há questões mais importantes. A pessoa tem que tomar a semaglutida pelo resto da vida, ou engordará de novo. E essa droga, assim como outras de ação similar, tem uma relação mal resolvida com o perigo de câncer – tanto que sua bula traz uma advertência sobre o risco do surgimento de tumores na tireoide.
5 mil vezes mais tempo
Os hormônios estão entre as coisas mais fascinantes do corpo humano: mesmo presentes em concentrações ínfimas, da ordem dos picogramas (trilionésimos de grama), eles controlam várias funções do organismo. E o GLP-1, ou “peptídeo semelhante ao glucagon-1”, é um dos mais incríveis.
Quando você come alguma coisa, os pedaços da comida vão descendo até cair no intestino. Assim que isso acontece, o corpo começa a liberar GLP-1, que atua sobre vários órgãos (ele tem esse nome porque sua molécula é parecida com a de outro hormônio, o glucagon, embora sua função seja diferente).
O GLP-1 manda o pâncreas aumentar a produção de insulina – porque você acabou de comer, e o nível de glicose no seu sangue vai aumentar. Diz para o estômago segurar um pouco os alimentos que ainda estiverem dentro dele, pois isso gera a sensação de saciedade.
Também penetra no cérebro e vai até o hipotálamo, onde se conecta a receptores específicos e desliga os sinais de fome. Resumindo: esse hormônio ajusta o corpo para a digestão, e faz você parar de comer.
O corpo produz duas ondas dele, 15 e 30 minutos após a refeição. Mas o GLP-1 dura pouco. Sua “meia-vida” é de apenas 120 segundos, ou seja, dois minutos depois que ele é liberado, metade já se decompôs (o processo continua até que, em 30 minutos, 99% já sumiu).
Isso acontece porque, logo depois de soltar o GLP-1, o organismo também libera a arqui-inimiga dele: a dipeptidil peptidase-4, uma enzima que quebra as moléculas desse hormônio. O Ozempic e similares são versões artificiais do GLP-1, com uma diferença: suas moléculas foram alteradas em laboratório, e por isso resistem à ação da enzima destruidora.
Ao contrário do GLP-1 natural, a versão sintética dura muito: a “meia-vida” da semaglutida (princípio ativo do Ozempic) é de sete dias (1). Ou seja, ela age no organismo 5 mil vezes mais tempo que o hormônio natural.
A semaglutida não foi o primeiro GLP-1 artificial a chegar ao mercado: antes vieram dois outros, a exenatida e a liraglutida [veja quadro abaixo]. A diferença é que a semaglutida é a primeira droga de longa duração, que só precisa ser aplicada uma vez por semana.
Essa classe de remédios (conhecidos como “análogos” ou “agonistas” de GLP-1) é útil contra a diabetes porque eles aumentam consistentemente a produção de insulina no organismo.
O emagrecimento é só um efeito secundário. Costuma ser intenso. Estudos com o Wegovy – a versão “mais forte” do Ozempic, indicada para obesidade – mostraram uma redução média de 14,9% no peso corporal após um ano e meio de uso do remédio (contra 2,4% das pessoas que tomaram placebo).
É bastante coisa: numa pessoa de 70 kg, por exemplo, dá 10,5 kg a menos na balança. Os testes clínicos do Mounjaro (tirzepatida), do laboratório Lilly, apontaram um efeito similar, com perda de 14,7% do peso corporal em um ano e meio (isso em pessoas que têm diabetes; o laboratório também realizou outro estudo, em indivíduos que não têm diabetes, e neles o remédio reduziu ainda mais o peso corporal, 20,9% em média).
Esse é o efeito máximo de cada remédio; o peso se estabiliza nesse patamar, e não cai mais. Aí você pode parar de tomar o medicamento, e só dar uma maneirada na alimentação para manter o novo corpinho, certo? Errado.
Um estudo publicado por cientistas dos EUA, do Japão e de vários países europeus acompanhou 327 adultos que haviam usado a semaglutida durante um ano e meio (2). Enquanto eles estavam tomando o remédio, perderam em média 17,3% do peso. Até mais que o esperado.
Mas, assim que pararam, voltaram a engordar: após um ano sem a semaglutida, já tinham recuperado 11,6% da massa corporal. Dois terços do que tinham emagrecido.
E as pessoas só foram monitoradas nos primeiros 12 meses sem o remédio. Se o acompanhamento tivesse continuado por mais tempo, o ganho de peso teria sido maior (na reta final do estudo, os voluntários seguiam engordando, ainda que não no ritmo explosivo dos primeiros meses).
O Ozempic e seus similares são remédios de uso contínuo. Isso não é necessariamente um problema – muitos medicamentos, como os que tratam hipertensão e colesterol, também precisam ser tomados “para sempre”. Ocorre que, ao contrário deles, os análogos de GLP-1 têm um risco relevante.
Na bula americana do Ozempic, do Wegovy e do Mounjaro, a primeira coisa que aparece, logo abaixo do nome do remédio, é a chamada “black box warning”: um retângulo preto com advertências em negrito dentro, exigido pela FDA em medicamentos que envolvam risco de morte.
Nos três casos, o texto é praticamente idêntico: afirma que a substância “causa câncer das células C da tireoide em ratos”, e que “a relevância [disso] em humanos não foi determinada”. Finaliza dizendo que a droga é contraindicada em pessoas com histórico familiar de câncer de tireoide ou “neoplasia endócrina primária tipo 2” (uma mutação genética que predispõe a esse tipo de tumor).
Essas advertências constam da bula profissional, destinada a médicos. Nos EUA, as bulas para os pacientes são ainda mais diretas – a do Ozempic, por exemplo, orienta a pessoa a falar com o médico se aparecer “um calombo ou inchaço no pescoço, voz arranhada, dificuldade em engolir ou falta de fôlego”, pois “podem ser sintomas de câncer na tireoide”.
Em seguida, traz uma frase que chama a atenção pelo tom indefinido: “Não é sabido se Ozempic irá causar tumores de tireoide, ou um tipo de câncer chamado carcinoma medular de tireoide (MTC) em humanos”.
Você deve estar pensando: como assim “não é sabido” se causa câncer ou não? Como o remédio foi aprovado mesmo com essa incerteza? Por que o problema é na tireoide? E qual é o real nível de risco? Vamos lá.
Ratos, macacos e gente
O GLP-1 atua sobre o pâncreas, o fígado e o cérebro, mas não só: outros órgãos também têm receptores desse hormônio. Ele age na língua, onde parece regular a sensibilidade a sabores doces (3), e na tireoide – mais precisamente nas células parafoliculares, ou células C (que têm esse nome porque sua função é produzir calcitonina, um hormônio que controla a quantidade de cálcio no sangue).
Lembra que o GLP-1 sintético fica um tempão agindo no organismo, muito mais do que o natural? Então: se você injetá-lo em ratos, as células da tireoide deles serão extremamente estimuladas. Isso acaba gerando mutações, e tumores.
Esse mecanismo foi demonstrado (4) pela primeira vez com a liraglutida, em 2010, e também acontece com os outros “análogos de GLP-1” – é por isso que eles trazem as advertências na bula.
Mas o mesmo estudo que descobriu o efeito em ratos testou a liraglutida em macacos, que receberam doses altíssimas da droga (60 vezes mais que a usada em humanos) durante 20 meses. E os primatas não desenvolveram câncer.
O estudo também observou os níveis de calcitonina em pacientes que usavam o remédio – se eles estivessem aumentados, seria um sinal de problemas na tireoide. Mas não estavam.
Nos anos seguintes, outros trabalhos científicos acompanharam pessoas que usaram medicamentos do tipo. E não detectaram aumento na incidência de tumores (5).
“Os seres humanos têm muito menos células C do que os ratos, e as células C humanas têm uma expressão muito baixa do receptor GLP-1”, explica a médica Rachel Pessah-Pollack, pesquisadora da Universidade de Nova York e especialista em tireoide, em um artigo sobre o tema (6).
Em pessoas, os remédios análogos de GLP-1 aparentemente não têm o poder de sobrecarregar a tireoide. “Os tumores em roedores são causados por um mecanismo específico, e não podem ser extrapolados para humanos”, afirma a médica Cynthia Valério, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).
“Nos estudos com a semaglutida, em cerca de 25 mil pacientes, não tivemos correlação, nem aumento de incidência, de câncer de pâncreas ou tireoide”, diz Erika de Souza, gerente médica de obesidade da Novo Nordisk.
“Nos programas clínicos de fase 3 da semaglutida, com exposições de até dois anos, nenhum caso de carcinoma medular da tireoide foi observado em mais de 7.800 participantes. Portanto […] a relevância dos tumores de células C de roedores em seres humanos é considerada baixa”, afirma o parecer técnico da Anvisa sobre o Wegovy (7).
Se é assim, por que as bulas têm as advertências que têm? É que, paralelamente a todos esses estudos, também há outros – que apontaram, sim, relação entre as drogas GLP-1 e maior incidência de câncer em pessoas.
O primeiro foi publicado em 2011 por cientistas da Universidade da Califórnia (8), e mostrou risco aumentado de tumores de pâncreas e tireoide. Isso não foi confirmado por outros estudos, realizados nos anos seguintes.
Até que, em outubro de 2022, a dúvida voltou. Um grupo de cientistas chineses mergulhou no Adverse Event Report System, banco de dados em que a FDA registra problemas causados por medicamentos.
Eles olharam os registros entre 2004 e 2021, e chegaram a duas conclusões meio conflitantes (9): os medicamentos “não provocaram um aumento desproporcional nos casos de tumor”, mas, ao mesmo tempo, “sinais significativos foram encontrados entre os agonistas de GLP-1 e certos tumores, incluindo cânceres de tireoide e pâncreas”.
Por essa aparente contradição (e por ter saído no Frontiers in Pharmacology, um periódico pouco importante), o trabalho não repercutiu. Mas aí, em fevereiro deste ano, veio outro estudo – com muito mais força.
Ele saiu na Diabetes Care, a revista científica da Associação Americana de Diabetes, e foi elaborado por pesquisadores de duas universidades francesas (10). Eles analisaram os dados de 47 mil pacientes, que tomaram exenatida ou liraglutida por algum período entre 2006 e 2018.
Conclusão: “o uso dos agonistas de GLP-1 por um a três anos foi associado ao aumento de risco de todos os tipos de câncer de tireoide”. A incidência desses tumores foi 58% maior; considerando apenas o câncer medular de tireoide (um subtipo causado pelas células C, aquelas mesmas que são afetadas pelos remédios emagrecedores), 78% maior.
Então quer dizer que esses medicamentos devem ser evitados a todo custo, então? Também não. Porque o estudo francês tem um porém. Em vez de montar dois grupos com a mesma quantidade de indivíduos (um tomando os remédios e o outro não) e acompanhá-los ao longo do tempo, os cientistas fizeram algo diferente.
Pegaram 2.500 pessoas que usavam os medicamentos GLP-1 e tiveram câncer de tireoide, e compararam com outras 45 mil (em faixas etárias e condições de saúde similares) que não desenvolveram esse tipo de tumor. Esse tipo de estudo, que se chama “caso-controle”, serve para medir a diferença entre dois grupos – mas não permite calcular o risco absoluto, ou seja, real.
Qual é o risco real? Em média, há 3 casos de câncer da tireoide a cada 100 mil homens, e 10 a cada 100 mil mulheres (11). Então um aumento desse número, mesmo se for percentualmente alto (como os 58% do estudo francês), pode acabar tendo um efeito pequeno na sociedade como um todo.
Mas o risco individual não é desprezível: entre as mulheres, que são mais afetadas pelo câncer de tireoide, ele é o sexto tipo mais comum de tumor (12), respondendo por 3,9% dos casos (quase empatado com o câncer de pulmão, 4%).
Por outro lado, a obesidade em si também eleva o risco de vários tipos de câncer e outras doenças. Ela mata, por causas diretas ou indiretas, 4 milhões de pessoas por ano no mundo, segundo estimativa da OMS.
Logo, os medicamentos antiobesidade podem salvar vidas. Os autores do estudo francês não recomendam abandonar os remédios GLP-1 – só dizem que os médicos “devem estar cientes do risco potencial”, e “monitorar cuidadosamente os pacientes”.
Conclusão: não dá para afirmar que o Ozempic e similares sejam perigosos, mas também não é possível cravar que não há o menor problema.
Tanto que as bulas trazem as advertências, e o fabricante está fazendo mais dois estudos com a semaglutida: um sobre tumores de pâncreas, que ficará pronto em dezembro de 2024, e outro sobre câncer de tireoide, que vai até 2035. “Como se trata de eventos raros, precisamos de um grande número de casos e de longo período de acompanhamento em pacientes”, diz Souza, da Novo Nordisk.
A informação sobre risco de câncer, na bula do Ozempic, é um ponto delicado. Nos Estados Unidos, tanto a bula para médicos quanto a dos pacientes são bem claras quanto a esse risco. No Brasil, a coisa é um pouco diferente: a bula do paciente não informa que a semaglutida causa tumores em ratos.
Ela só diz, sem maiores detalhes, que você deve avisar o médico se já teve algum caso de câncer de tireoide na família. E essa instrução aparece no meio de outras orientações, sem nenhum destaque.
Por que a diferença? Questionada pela Super, a Anvisa respondeu o seguinte: “A bula para o paciente é um documento resumido, com termos mais acessíveis e diretos. Já a bula para o profissional de saúde é um documento mais completo, com conteúdo detalhado tecnicamente. Contudo, ambos os modelos estão disponíveis para consulta pública”. Em outros países, como Canadá e Reino Unido, a bula do paciente também não traz a informação sobre câncer em ratos.
No Reino Unido, aliás, a Novo Nordisk se envolveu em três polêmicas recentes. Em março, a associação da indústria farmacêutica britânica (ABPI) decidiu puni-la com dois anos de suspensão (13), alegando que ela violou o código de conduta do setor, praticando ações que podem “reduzir a confiança na indústria”.
Motivo: a Novo Nordisk estaria oferecendo cursos para farmacêuticos, no Linkedin, que na verdade eram propaganda disfarçada dos seus remédios antiobesidade. Após a revelação do caso, a associação britânica de clínicos-gerais (RCGP), que reúne 54 mil médicos, anunciou que iria encerrar sua “parceria” com o laboratório, e devolver as doações que recebera dele (14).
O jornal inglês Guardian descobriu que, entre 2019 e 2021, a Novo Nordisk forneceu 75% do orçamento da European Association for the Study of Obesity (EASO), grupo de médicos e pesquisadores que em tese é, ou deveria ser, independente (15). Esse tipo de conflito de interesses é comum na indústria farmacêutica – e pode afetar a imparcialidade dos médicos.
A obesidade não é, como se acreditou durante décadas, uma mera questão de “força de vontade”: ela também envolve fatores que independem do controle da pessoa (mais sobre eles daqui a pouco). Então os avanços farmacológicos são bem-vindos.
Mas é preciso tomar cuidado com eles. No começo dos anos 1990, a combinação de fenfluramina e fentermina, que ficou conhecida como fen-phen, passou a ser amplamente receitada para tratar a obesidade.
Esses remédios tiravam o apetite, e as pessoas emagreciam. Alguns anos depois, descobriu-se que a fenfluramina causava danos cardíacos graves – e em 1997 ela teve a produção encerrada pelo fabricante, o laboratório Wyeth (que teve de pagar indenizações bilionárias na Justiça dos EUA).
Isso não significa que vá acontecer algo similar com os análogos de GLP-1. Eles já estão no mercado há uma década, sem causar grandes problemas (embora tenham sido tomados por muito menos gente do que agora, com a popularização do uso para emagrecer).
Mas não são, ao contrário do que algumas manchetes apregoam, a “cura” da obesidade. Inclusive porque, ao mesmo tempo em que começa a conseguir tratá-la, a medicina está descobrindo que ela é bem mais complexa do que parece.
As variáveis e a conta
Se você consumir mais energia do que o seu corpo gasta, ela será armazenada na forma de gordura. E o único jeito de emagrecer é inverter essa equação. Fato. Mas também há outros elementos envolvidos na conta.
Se você gastar mais calorias do que normalmente faz, o corpo pode reduzir a “taxa metabólica basal”, a quantidade de energia que ele queima para manter as funções essenciais do organismo (como a respiração, os batimentos cardíacos, a renovação celular etc.).
E esse fenômeno, que se chama compensação energética, pode chegar a 28% do total de calorias queimadas (16). Você andou um pouco mais do que o habitual, e queimou 100 calorias a mais num determinado dia? Na pior das hipóteses, terá se livrado de apenas 72 – porque o corpo tentará compensar isso, gastando 28 a menos para se manter.
Esse mecanismo também pode interferir no apetite. Isso é sabido desde 1988, quando a Universidade Johns Hopkins fez uma experiência com voluntários durante duas semanas (17).
Nos primeiros seis dias, eles podiam comer à vontade, em um bufê montado pelos cientistas. Mas aí, no sétimo dia, os pesquisadores fizeram uma alteração discreta: trocaram 30% dos itens, como os refrigerantes e as sobremesas, por versões diet, feitas com adoçante. E, eis o pulo do gato, não avisaram os voluntários disso.
Se as pessoas continuassem comendo como antes, estariam ingerindo 500 calorias a menos por dia, em média, a partir dali. Mas sabe o que aconteceu? Os voluntários mudaram sua alimentação de forma inconsciente, e passaram a ingerir mais dos outros itens para compensar aquelas 500 calorias perdidas. Eles não sabiam que 30% dos alimentos eram diet; mas o corpo sabia, e fez as pessoas comerem mais.
Se você tentar comer menos ou gastar mais energia, o organismo pode trabalhar contra. Hoje isso é inconveniente, mas já foi essencial para a sobrevivência (durante a maior parte da história humana, o principal perigo era morrer de fome, não engordar). “Os mecanismos envolvidos na regulação do peso atuam, de forma muito eficiente, para favorecer o armazenamento de energia, e defender o organismo contra a perda dela”, diz Valério, da SBEM.
É possível, inclusive, que cada indivíduo tenha um “peso natural”, para o qual o corpo sempre tenta voltar. Acredita-se que esse mecanismo, ainda não plenamente compreendido, seja controlado pela leptina (18): um hormônio que é liberado pelas células de gordura e atua no cérebro, dosando o apetite.
A maioria das pessoas vive em um ambiente “obesogênico”, com hábitos cada vez mais sedentários e grande oferta de alimentos hipercalóricos. Mas nem todo mundo desenvolve obesidade ou sobrepeso.
A explicação pode estar na genética (há mais de 600 genes envolvidos com a tendência a engordar) e na epigenética, ou seja, o ligar e desligar de genes durante a vida em resposta a fatores ambientais. Estudos em ratos mostraram que alterações na dieta têm o poder de ativar ou desativar certos genes (19), e isso pode intensificar o ganho de peso.
Além disso, comer mal talvez possa nos tornar incapazes de comer bem. Esse fenômeno foi demonstrado por cientistas da Pennsylvania State University, em experiências com camundongos (20).
Grupos de ratos submetidos a uma dieta rica em calorias e gordura apresentaram enfraquecimento dos astrócitos – tipo de célula localizada no complexo dorsal vagal, uma região cerebral que tem conexão direta ao intestino.
O efeito começou bem rápido, com apenas três dias de dieta ruim. Após duas semanas, os astrócitos já estavam bem comprometidos – e os animais apresentavam dificuldade em parar de comer.
A obesidade vai além da comida: também pode estar relacionada a outros elementos ambientais, como os microplásticos. Estima-se que cada pessoa acabe inalando e ingerindo até 20 gramas desses fragmentos, que contaminam a água e os alimentos, por mês (21).
Cientistas da Universidade Rutgers, nos EUA, criaram um modelo (22) que simula o funcionamento do sistema digestivo humano – e mostraram que microplásticos misturados à comida têm o poder de aumentar em até 145% a absorção de gorduras. Isso supostamente acontece porque esses fragmentos grudam nas moléculas lipídicas, que ficam maiores e mais fáceis de digerir.
Em suma: tudo conspira para que o mundo continue ganhando peso. A World Obesity Federation prevê que, em 2035, metade da população com mais de cinco anos de idade será obesa. “A obesidade é uma doença crônica, redicivante [que retorna com facilidade] e multifatorial. Suas causas são extremamente complexas e se relacionam de forma heterogênea. Portanto, a solução vai muito além de ‘comer menos e exercitar-se mais’”, diz Valério, da SBEM.
O corpo humano é biologicamente propenso a ganhar peso, e luta para impedir a perda dele. Esse mecanismo funcionou bem por milhares de anos, ajudando nossos antepassados a sobreviver a tempos de escassez, até sofrer um curto-circuito nas sociedades modernas. Nos tornamos capazes de produzir comida de sobra – e aí ela começou a nos fazer mal.
Os remédios antiobesidade podem ajudar a combater isso. Mas não devem ser encarados como uma saída mágica. Até porque novas soluções também podem criar novos problemas. Foi assim, afinal, que a humanidade engordou.
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Fontes (1) Semaglutide, a glucagon like peptide-1 receptor agonist with cardiovascular benefits for management of type 2 diabetes. M Mahapatra e outros, 2022.
(2) Weight regain and cardiometabolic effects after withdrawal of semaglutide: The STEP 1 trial extension. J Wilding e outros, 2022. (3) Glucagon-like peptide-1, a matter of taste? M Jensterle e outros, 2021. (4) Glucagon-Like Peptide-1 Receptor Agonists Activate Rodent Thyroid C-Cells Causing Calcitonin Release and C-Cell Proliferation. L Knudsen e outros, 2010. (5) A meta-analysis of serious adverse events reported with exenatide and liraglutide: Acute pancreatitis and cancer. C Alves e outros, 2012. (6) TikTok’s Fave Weight Loss Drugs: Link to Thyroid Cancer? R Pessah-Pollack, 2023.
(7) Parecer Público de Avaliação do Medicamento: Wegovy. Anvisa, 2023. (8) Pancreatitis, Pancreatic, and Thyroid Cancer With Glucagon-Like Peptide-1–Based Therapies. M Elashoff e outros, 2011. (9) GLP-1 receptor agonist-associated tumor adverse events: A real-world study from 2004 to 2021 based on FAERS. R Li e outros, 2022.
(10) GLP-1 Receptor Agonists and the Risk of Thyroid Cancer. J Bezin e outros, 2022. (11) The epidemiological landscape of thyroid cancer worldwide: GLOBOCAN estimates for incidence and mortality rates in 2020. M Pizzato e outros, 2022.
(12) Estimativa 2023: Incidência de câncer no Brasil. Instituto Nacional do Câncer (INCA), 2022.
(13) Novo Nordisk is suspended from ABPI membership. ABPI, 2023. (14) RCGP statement on partnership with Novo Nordisk. RCGP, 2023. (15) ‘Orchestrated PR campaign’: how skinny jab drug firm sought to shape obesity debate. The Guardian, 12/2/2023.
(16) Energy compensation and adiposity in humans. V Careau e outros, 2021. (17) Compensation for caloric dilution in humans given unrestricted access to food in a residential laboratory. RW Foltin e outros, 1988. (18) Recent advances in understanding body weight homeostasis in humans. MJ Muller e outros, 2018. (19) An Overview of Epigenetics in Obesity: The Role of Lifestyle and Therapeutic Interventions. A Mahmoud, 2022.
(20) Brainstem astrocytes control homeostatic regulation of caloric intake. KN Browning e outros, 2023. (21) Estimation of the mass of microplastics ingested – A pivotal first step towards human health risk assessment. K Senathirajah e outros, 2021.
(22) Incineration-Generated Polyethylene Micro-Nanoplastics Increase Triglyceride Lipolysis and Absorption in an In Vitro Small Intestinal Epithelium Model. P Demokritou e outros, 2022.