Fábio Sanchez
O que determina o sexo de uma pessoa? As características do corpo ou da mente? Até que ponto o que consideramos anomalia é apenas uma diferença que deveria ser respeitada em sua especificidade? Mergulhe em um dos debates mais quentes da ciência atual: o que são e quantos são os gêneros que compõem a espécie humana
A pergunta pode parecer fácil. O que determina o sexo de uma pessoa? Mas a resposta não é tão óbvia assim. Essa dúvida tem atormentado o meio médico, gerando debates acalorados e pilhas de estudos em alguns dos maiores centros de pesquisa do mundo. O senso comum diz que o sexo masculino acontece quando a pessoa tem um pênis e um par de testículos. E o feminino, quando há vagina e ovários. E não se fala mais nisso, certo? Errado. Há pessoas que têm absoluta certeza de que pertencem ao sexo oposto àquele que seus genitais indicam.
Talvez então a resposta esteja nos hormônios sexuais (havendo o grupo daqueles que causam voz grossa, no caso dos hormônios masculinos, e o grupo dos que fazem crescer as mamas, no caso dos femininos). Errado de novo. Esse é um critério ruim porque os endocrinologistas já se cansaram de ver mulheres que têm maioria de hormônios masculinos no corpo e vice-versa. Então a resposta só pode ser a análise genética, já que todos sabem que se os genes se unem em cromossomos no formato XX a pessoa é mulher e se for XY a pessoa é homem. Outro erro, pois ocorre várias vezes o que os especialistas chamam de “mosaicos”, misturas na formação cromossômica que podem desacreditar qualquer conclusão taxativa nesse campo. E é melhor nem pensar que o que distingue o gênero masculino do feminino é o comportamento, porque as várias preferências sexuais que as pessoas adotam reduzem a cinzas qualquer conceito radical de gênero.
Essa dúvida sobre o que realmente define o sexo de um indivíduo está criando um drama ético crescente por causa de pessoas para quem nenhum desses critérios oferece uma resposta satisfatória. São indivíduos que nascem com partes de genitais dos dois sexos: testículos, ovário, pênis e vagina combinados das mais diversas formas ou em dimensões incomuns, formando nove tipos diferentes de alterações anatômicas. Em relação a eles, fica impossível ao médico dar a famosa resposta aos pais, na maternidade, sobre qual é o sexo do recém-nascido. Engana-se quem pensa que se trata de um drama raro, uma obra exótica da natureza fadada a virar uma atração de circo. Os cálculos mais conservadores admitem que um em cada 3 mil bebês nasce com essa morfologia, em suas várias formas (no Brasil, isso significaria uma população de mais de 56 mil pessoas).
Pesquisadores como Anne Fausto-Sterling, professora de Biologia Molecular da Universidade de Brown, no estado americano de Rhode Island, e especialista no tema, garante que o número é o dobro: um bebê em cada 1, 5 mil. Há muito mais pessoas com “genitália ambígua” do que albinos, por exemplo, que nascem à razão de uma pessoa em cada 17 mil. O número sugerido por Anne se aproxima da taxa de incidência de pessoas com esclerose múltipla ou cálculo urinário (cerca de uma pessoa em cada mil adultos). É provável que você até já tenha conhecido alguém assim. São tantos que os manuais médicos mais modernos aceitam um termo que, pelo menos gramaticalmente, cria para eles uma terceira categoria de classificação sexual. Nem homens nem mulheres, eles são os portadores de “intersexo” – uma espécie de terceiro sexo entre os humanos.
Na década passada, o intersexo começou a abandonar o silêncio das clínicas médicas para ganhar espaço em estudos cada vez mais numerosos sobre sexualidade. Muitos desses estudos consideram que, devido a pessoas como essas, três sexos ainda são pouco para definir a raça humana. A própria Anne Fausto-Sterling defendeu, em dois artigos publicados na revista americana The Sciences, a existência de cinco sexos, sendo eles o masculino, o feminino, o “herm” (de hermafroditas, pessoas que possuem formações de testículos e de ovários ao mesmo tempo), o “ferm” (pessoas com ovários e alguma expressão da genitália masculina) e o “merm” (indivíduos com testículos e algo da genitália feminina). Segundo o psiquiatra Ronaldo Pamplona da Costa, autor de Os Onze Sexos, cinco tipos sexuais também são pouco. Para ele haveria na verdade 11 sexos, sendo dez as versões masculina e feminina de heterossexuais, homossexuais, transexuais, gays e bissexuais. Por fim, tornando o número ímpar, viriam os hermafroditas.
Mas, se é aceito plenamente e investigado por um número cada vez maior de pesquisadores como uma alternativa ao conceito que divide os seres humanos em apenas homem e mulher, o intersexo não tem a mesma tolerância na prática médica. Nos hospitais ele é estudado e discutido apenas com o objetivo de ser “normalizado”. É a norma hoje no meio médico em quase todo o mundo que essas pessoas com genitália ambígua devem ser tratadas o mais cedo possível, de preferência ao nascerem, e transformadas cirurgicamente em homens ou mulheres. Os manuais oficiais ditam regras como a seguinte: se o recém-nascido tiver um pênis de tamanho inferior a 0,9 centímetro (tecnicamente chamado de micropênis), deve ser operado. Entenda-se: deve ser transformado em mulher, com esse pênis já anatomicamente constituído se transformando em um clitóris. Após a cirurgia, os manuais recomendam iniciar um tratamento medicamentoso com a ingestão de hormônios sexuais.
Centros de saúde mais cautelosos preferem, antes de optar por uma cirurgia, recorrer a uma junta médica multidisciplinar, exames genéticos e hormonais – mas esta não costuma ser a regra geral e, na maioria dos serviços, mesmo quando se consulta uma junta, o objetivo é que ela não demore muito tempo para decidir o sexo que terá o bebê. A questão é: os médicos – ou mesmo os pais – têm o direito de tomar essa decisão em nome do paciente?
As cirurgias para determinar o sexo de bebês são aceitas desde a década de 60, o que reduz as possibilidades de estudos de longo prazo que confirmem ou neguem virtudes para essa intervenção na natureza dos recém-nascidos e principalmente seus efeitos na vida adulta do indivíduo. Enquanto a questão era tratada em segredo apenas por médicos e parentes na discrição dos consultórios, estava tudo bem.
O problema para os médicos é que essa legião de pessoas com intersexo, operadas ou não, começou a se organizar em entidades e pedir o fim das cirurgias. “Operar um bebê sem saber qual será ao certo o sexo e sem que ele possa participar do processo dizendo claramente qual é seu desejo é um ato extremamente arbitrário e danoso”, diz Cheryl Chase, presidente da Intersex Society of North America (Isna), a organização não-governamental norte-americana que reúne portadores de intersexo e é respeitada no meio acadêmico como a mais organizada defensora de uma “moratória” geral nas cirurgias de bebês. A Isna tem uma vasta lista de pessoas operadas quando crianças ou ao nascer que, depois de adultas, optam pelo sexo oposto àquele que foi decidido nos hospitais. A maioria deles tornou-se homens barbados com vagina, já que cirurgicamente é mais fácil transformar os bebês em meninas (fazendo de um pequeno pênis um clitóris, por exemplo) do que em meninos, o que necessitaria de um tipo de reconstrução do tecido peniano.
Do outro lado desse debate, na posição de vidraça, os médicos argumentam que não há outra saída para a inclusão de crianças na sociedade. O intersexo jogaria a pessoa num tipo de limbo que ela só deixaria depois de se adaptar ao padrão homem-mulher. “Filosoficamente, faz muito sentido a queixa de que um paciente precisa opinar sobre o que vai ser feito dele”, afirma o endocrinologista pediátrico e professor livre-docente da Universidade de São Paulo (USP) Durval Damiani, para avaliar em seguida que na prática isso seria algo impossível. “Para pessoas normais essa pergunta parece idiota, mas não é: na escolinha, essa criança iria utilizar o banheiro dos meninos ou das meninas? Que nome ela vai ter?”, diz Damiani, que trabalha no Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo, centro que criou um serviço multidisciplinar para tratar da questão e que já atendeu mais de 400 casos de crianças com intersexo.
As dúvidas quanto ao que fazer se multiplicaram nos últimos dois anos, após o lançamento de um livro que incendiou esse debate no meio médico e tornou clara a diferença entre dois pontos de vista que são obrigados a conviver lado a lado: uma corrente majoritária que pretende adaptar todos os portadores de intersexo ao mundo das pessoas que são estritamente homens ou mulheres, e outra que prefere esperar até que o paciente possa decidir por ele mesmo. O livro é Sexo Trocado, de John Colapinto. Conta a história de David Reimer, que nasceu em 1965 com um irmão gêmeo idêntico e sofreu um acidente cirúrgico aos 8 meses de idade em seu pênis (um erro médico durante uma circuncisão). Sua família, orientada por John Money, especialista da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, e hoje um dos sexólogos mais ouvidos em seu país, decidiu criá-lo então como uma menina. Reimer foi submetido a tratamento hormonal e psicológico para que se comportasse como uma mulher.
Seu caso tornou-se nas décadas seguintes um exemplo citado em diversos estudos acadêmicos e em congressos médicos de como fatores sociais podem determinar o sexo de uma pessoa, e virou uma referência favorável às cirurgias em recém-nascidos. Mas o livro relata como Reimer contrariou as expectativas médicas e tudo que se escreveu sobre ele em inúmeros livros e teses: ele se tornou homem por vontade própria e claro que se insurgiu contra o que foi feito dele.
Nem os pesquisadores da própria Johns Hopkins, que estudam a intervenção cirúrgica em bebês com intersexo há mais de 50 anos e são pioneiros nessa técnica, estão totalmente seguros de que esse é o melhor procedimento. O último estudo feito ali, coordenado pelo endocrinologista pediátrico Claude Migeon e publicado em setembro passado na revista americana Pediatrics, está, como quase tudo que se refere ao assunto, marcado pela polêmica. O estudo avaliou 39 pessoas com mais de 21 anos que geneticamente são homens (têm cromossomos XY) mas possuíam micropênis e a uretra aberta no local dos testículos, onde geralmente se localiza a uretra em mulheres. Todos eles, quando bebês ou crianças, passaram por tratamento para a fixação de um sexo, inclusive cirurgias (21 foram criados como homens e 18 como mulheres). Verificou-se que 76% dos homens e 78% das mulheres estavam satisfeitos com o sexo escolhido por médicos e pelos pais.
A conclusão do estudo é que a cirurgia precoce pode trazer bons resultados para portadores de intersexo e que por isso deve ser mantida. Mas a mesma pesquisa conclui que cerca de um quarto dos participantes (cinco homens e quatro mulheres) estava insatisfeito com o sexo escolhido para eles, o que também é um número alto de pessoas prejudicadas. “Se um laboratório médico lançasse um remédio que causasse prejuízos em um a cada quatro usuários, ele seria imediatamente proibido”, afirma Martha Freitas, mestre em sexologia pela Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro, e diretora da Gendercare, única entidade brasileira que prega a moratória de cirurgias em portadores de intersexo, e membro da Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association, que estuda problemas de identidade e gênero (disforia).
Até mesmo na Johns Hopkins há médicos que pregam a desobediência à regra geral e esperam que a criança decida, como William Reiner, que dirige uma clínica de desordens psicossexuais no hospital daquela universidade. Outros especialistas, como Mel Grumbach, endocrinologista da Universidade da Califórnia em São Francisco, que passou toda sua carreira promovendo cirurgias reparatórias em recém-nascidos, fez um mea culpa em declaração recente a uma revista especializada: “Meu Deus, como fomos fazer isso?”, afirmou.
A situação dos médicos é mesmo difícil. São eles que precisam dar a notícia aos pais dos recém-nascidos e, pior do que isso, arcam com a responsabilidade de tomar decisões sempre da maneira mais rápida e discreta possível. “Você acaba bancando Deus, pois se vê na posição de ter que decidir o sexo que a pessoa terá pelo resto da vida. A responsabilidade é imensa”, afirma Angela Spinola e Castro, que dirige uma equipe de médicos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que já tratou de cerca de 150 crianças com intersexo. Para ela, a prioridade em casos assim, depois de feitos os exames genéticos e hormonais e se a dúvida persistir, é “ter uma mãe em condições de criar essa criança”, o que significa tomar a decisão sobre que cirurgia fazer em conjunto com a família do bebê, considerando a situação social, psicológica e religiosa dos pais. Detalhe: segundo Ângela, as famílias mais abonadas são as menos tolerantes com o problema, querendo resolvê-lo o mais breve possível.
Conclui-se que, pelo menos no que se refere ao tratamento de casos de intersexo, os manuais médicos contam pouco e, na ausência de regras mais claras e de estudos de longo prazo, “o nível de subjetividade nas decisões é enorme”, diz Durval Damiani.
No Brasil praticamente não há debates sobre a questão. “A prática médica brasileira hoje exclui o paciente da decisão de operar ou não. A discussão a respeito disso ainda está por surgir aqui”, diz Moara de Medeiros Rocha Santos, psicóloga que realizou seu mestrado e faz seu doutorado pela Universidade de Brasília (UNB) estudando pessoas com intersexo. Ou seja: o intersexo é tratado por aqui como patologia, como doença a ser curada e ponto.
A exceção nesse silêncio brasileiro vem de fora do meio médico e está provocando a ira das entidades de classe em Brasília. O procurador de Justiça Diaulas Ribeiro, da Promotoria de Justiça Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde do Distrito Federal, determinou em 2001 que deve ser consultado antes que sejam decididas cirurgias de mudança de sexo em recém-nascidos. “Para os médicos talvez seja mais cômodo que tudo fique como está, mas a sociedade também vai ter que discutir isso, pois trata-se de um paradigma que está mudando no mundo todo”, afirma. Após protestarem contra a decisão do procurador, membros da Sociedade Brasileira de Pediatria e do Conselho Federal de Medicina decidiram, em dezembro do ano passado, formar uma comissão de alto nível no CFM para discutir os procedimentos com relação a portadores de intersexo.
Atitudes como a do procurador de Brasília são as que promoverão mudanças no comportamento médico, diz Iain Morland, filósofo da ciência da Universidade de Londres, na Inglaterra, e ele próprio um portador de intersexo que foi operado quando criança. Para ele, se a medicina por um lado assume o preconceito geral da sociedade contra o intersexo, por outro tende a tomar cada vez mais cuidados com relação aos seus procedimentos, não tanto por motivos científicos, mas por pressão dos movimentos organizados: “As leis no mundo todo são negligentes no que se refere a pessoas com intersexo e ainda há poucos estudos a respeito. Uma cirurgia pode facilmente ser acusada de negligente se houver outras alternativas de tratamento”, afirma.
Para Morland, o atual protocolo médico é conservador, pois acredita que deixar de adotar a visão de mundo com dois sexos causaria uma destruição da estrutura social, o que não seria necessariamente verdade. O argumento de que crianças com intersexo podem sofrer traumas psicológicos na escola, segundo Morland, volta-se contra si mesmo. Se as crianças são tão impressionáveis, por que não poderiam ser impressionadas positivamente a aceitar a criança diferente que estuda com elas?
“Dar à criança uma sociabilidade é um argumento razoável para justificar as cirurgias”, diz Marko Monteiro, antropólogo e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) especialista na relação entre genética e gênero. Mas para ele a verdadeira razão para a intolerância com pessoas assim seria outra. “Inserir em nosso sistema binário criado para homens e mulheres um terceiro sexo causaria de fato uma grande subversão da ordem e muito trabalho”, afirma. De fato, a mudança de paradigmas seria monumental e cobriria quase todos os campos da vida. “As regras para a divisão do poder em todos os níveis teriam que ser revistas, o que poderia deixar todos inseguros. Deixar tudo como está é melhor para a imensa maioria”, afirma Monteiro.
“A sociedade cristã, reprimida sexualmente, sente -se ameaçada e tem medo de tratar novidades sobre sua interpretação do sexo, por mais que se clame por alterações no padrão homem-mulher. Por isso, vai construindo tabus a respeito, como o que a medicina tem em relação ao intersexo”, afirma Ursula Kuhnle, pesquisadora do hospital infantil da Universidade de Munique, na Alemanha, que publicou artigo sobre a tolerância das diversas sociedades com relação a pessoas com genitália ambígua no último número da revista Perspectives in Biology and Medicine.
Ursula cita que, em alguns locais onde padrões genéticos tornaram portadores de intersexo mais numerosos, eles são bem aceitos e convivem normalmente com a população dita “normal”, ainda que como outsiders, como entre comunidades chamadas “hijaras” na Índia, ou em comunidades de bairros periféricos de Santo Domingo, capital da República Dominicana, onde pessoas com intersexo são chamadas de “pênis-aos-doze”, numa referência à idade com que grande parte deles assume por conta própria sua sexualidade.
Os estudos mais recentes em sexualidade tendem a apontar cada vez mais a sociedade como agente capaz de esculpir (muitas vezes arbitrariamente) conceitos sobre sexo e gênero de acordo com seus interesses de momento e em detrimento da natureza humana. O livro Inventando o Sexo – Corpo e Gênero dos Gregos a Freud, do turco-americano Thomas Laqueur, professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles, avalia séculos de comportamento humano para chegar a uma conclusão surpreendente: pelo menos até o século 18, a ciência considerava formalmente a existência de apenas um sexo. Isso permite ver que a existência de dois sexos não é tão “natural” como costumeiramente imaginamos. O que permite intuir que a consideração de um terceiro sexo não seria “antinatural”.
Segundo Laqueur, os gregos achavam que as mulheres eram tecnicamente seres inferiores aos homens, um tipo de categoria animal distinta, e até a Revolução Francesa, em 1789, a medicina e a fisiologia viam homens e mulheres como graus diferentes de uma mesma espécie sexual. A única diferença seria a internalização dos testículos nas mulheres (que seriam os ovários), devido à idéia de que elas teriam menos calor corporal para protegê-los e, caso ficassem do lado de fora, não seriam funcionais. Por pelo menos 19 séculos, portanto, o paradigma científico dominante foi o de um sexo apenas. A partir da Revolução Francesa passou-se a aceitar nos meios científicos a sexualidade dupla e suas diferenciações, mas ainda assim por motivos pouco nobres. Laqueur explica que os ideais igualitários dos revolucionários não poderiam ser manchados pelo fato de que as mulheres evidentemente eram submissas aos homens naquela época.
Daí criar-se uma categoria inferior de ser humano, submissa de forma justificada pela biologia: o sexo feminino. Teria havido, portanto, um ajuste “interesseiro” da ciência à realidade social do momento.
Judith Butler, professora da Universidade da Califórnia em Berkeley, vai além de Laqueur na condenação das imagens sexuais utilitaristas formadas pela sociedade. Segundo ela, o gênero assumido por uma pessoa seria apenas um tipo de performance, um show promovido pelas pessoas para se locomoverem em suas relações com todos os demais. “É um pensamento que despreza a dualidade entre macho e fêmea, que seria uma obra puramente social, sem relação com a natureza física e corporal”, diz o antropólogo Marko Monteiro.
Mas se os casos de intersexo contribuem para os debates sobre variantes sexuais na sociedade, pode ser que por linhas tortas proporcione também as soluções para as polêmicas. Isso porque médicos e cientistas de todo o mundo, por mais paradoxal que pareça, estão deixando de olhar para os genitais ao estudar casos como os de intersexo. E começam a atentar para o cérebro de seus pacientes. Com a modernização de técnicas de diagnóstico por imagem, está sendo possível detectar diferenças mínimas entre pessoas de sexos e de preferências sexuais distintas.
“Todo o mundo está em busca de um marcador sexual, algum detalhe que possa definir a questão e dizer com certeza a que categoria sexual pertence uma pessoa. A maior promessa para se encontrar esse tal marcador é o cérebro”, afirma Durval Damiani. De fato, pesquisas recentes estão conseguindo detectar as mais diversas diferenças anatômicas e de atividade elétrica entre os cérebros de homens e mulheres, heterossexuais e transexuais etc.
É bem possível que, por meio desses estudos, mudando o foco dos genitais para o cérebro, a ciência consiga livrar-se do verdadeiro drama ético em que foi jogada pela natureza das pessoas que vêm ao mundo com sexo ambíguo. A busca por uma solução iria aplacar um drama que se repete todos os dias nas vidas de milhares de pessoas, e capaz de provocar depressão e cisões familiares.
Para saber mais
Na livraria:
Hermaphrodites and the Medical Invention of Sex
Alice Dreger, Harvard University Press, 2000
Sexo Trocado
John Colapinto, Ediouro, 2001
Inventando o Sexo – Corpo e Gênero dos Gregos a Freud
Thomas Laqueur, Relume Dumará, 2001
Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity
Judith Butler, Routledge, 1999
Os Onze Sexos
Ronaldo Pamplona da Costa, Gente, 1994
Na internet: