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Euforia, ódio, êxtase, depressão e tristeza. Tudo no volume máximo. O que há em um estádio capaz de mexer tão profundamente conosco?

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h10 - Publicado em 30 abr 2002, 22h00

Rodrigo Vergara / Adriano Sambugaro

Imagine uma final de campeonato vencida pelo seu time nos pênaltis. Repare no silêncio e na angústia à sua volta quando o juiz apita o final da partida, quando todo mundo – correligionários e adversários – percebe que o título será decidido em cinco chutes? A decepção e a tristeza no rosto dos torcedores quando uma cobrança é desperdiçada. E o seu alívio, seguido de alegria, quando a bola vai parar lá no fundo da rede adversária. De repente, em um chute, seu time vence. E você se entrega a um desvario. Grita até perder o ar dos pulmões, pula abraçado a estranhos, faz gestos obscenos e xinga os adversários. Gente que você nunca viu. Contra quem você não pode fazer qualquer reclamação lógica. Alegria, alegria. Fúria, fúria.

Alegria? Pelo quê? A vitória da equipe traz algum benefício real? Claro que não. Acrescenta alguma coisa à sua vida? Também não. E a fúria? De onde vem esse ódio tão sangüinolento quanto injustificável? Então por que sofremos, nos alegramos e nos enfurecemos por um time, uma coisa com a qual não temos nenhum vín-culo palpável? O que há em um estádio que causa tanta comoção?

A resposta a essas perguntas é a mais simples possível: o torcedor vai ao estádio em busca de emoção. Ele vai para sorrir e para chorar. Às vezes, sem preferência entre as duas coisas.

“A felicidade de ver meu time campeão é algo que não tem preço, como a paz mundial ou o fim da miséria, algo que não pode ser comprado nem por um milhão de libras”, diz o escritor inglês Nick Hornby, em seu livro Febre de Bola, sobre sua paixão pelo time do Arsenal.

Não é exagero. Ganhar é melhor que perder, sem dúvida. Mas note que, para Hornby, o que não tem preço não é o título em si, mas a felicidade que essa conquista traz. Ou seja, o propósito do entretenimento não é a vitória – que, no final das contas, não muda nada na vida do torcedor. É a emoção. A partida ideal é a mais emocionante possível, uma vitória de virada, no último minuto, de preferência jogando com um atleta a menos. Ou até mesmo uma derrota, desde que tenha sido heróica. “A regra do espectador é essa: ‘Quanto mais emoção, melhor’”, diz Odair Furtado, professor do departamento de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC).

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“O estádio é um dos espaços reservados pela sociedade para vivermos emoções que, fora dele, não são socialmente aceitas”, diz a antropóloga Márcia Regina da Costa, da PUC de São Paulo. Nessa terra do faz-de-conta, até ditados populares são suspensos. Fora das arquibancadas, por exemplo, “homem que é homem não chora”. No estádio, porém, marmanjos ostentam as lágrimas com orgulho. Na “vida real”, nenhum pai deixaria seu filho gritar palavrões na sua frente, ainda mais perante estranhos. Na torcida, ele sorri ao lado do jovem.

É como se revivêssemos e extravasássemos os desejos reprimidos no cotidiano: a vontade de esganar o sujeito que riscou seu carro, o desejo de xingar o chefe que descartou sua idéia brilhante. A vida em sociedade exige que guardemos essas vontades conosco. “A sociedade se desenvolveu em torno de rotinas, como o trabalho e o cuidado com a família, impostas pela busca da racionalidade. Isso implica dominar as emoções. Quanto mais complexa a sociedade, mais contidas as emoções”, diz Furtado.

O esporte moderno nasceu logo depois do Renascimento, na Europa. Não por acaso, na mesma época e lugar em que surgia o que hoje chamamos de “comportamento civilizado”. O parlamento, por exemplo, no qual as diferenças passaram a ser resolvidas no verbo, e não no muque, é um dos legados daquele período. “Os conflitos deixaram de ser militares para serem políticos, e a etiqueta e o decoro passaram a fazer parte da vida aristocrática”, diz o antropólogo José Sérgio Leite Lopes, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A competição esportiva serviu de válvula de escape a essa vida absolutamente regrada. Só que, antes de ser adotada pela aristocracia e de ingressar no mundo civilizado, a prática foi disciplinada por regras e limites. As disputas populares que existiam até então não tinham duração determinada, nem regras ou juízes. Nem sequer havia uma quadra ou um campo.

Há quem diga que, em países como o Brasil, onde a aplicação das leis (ou seja, a regra) varia de acordo com a posição social de cada um, a universalidade das regras do esporte é que conquista a torcida. Seria uma das raras ocasiões em que todos os brasileiros poderiam entrar em uma disputa em igualdade de condições. Há pistas reforçando esse raciocínio. O esporte é, de fato, uma das poucas atividades por aqui em que um sujeito pode ascender por seus próprios méritos, sem indicação de ninguém. “Ninguém pode ser eleito astro do futebol pelo sobrenome que tem ou por decreto”, diz o antropólogo Roberto da Matta, um dos primeiros a estudar o futebol no Brasil. Mais do que um astro milionário, o jogador passa a ser um ídolo, com quem muitos jovens vão se identificar, atraindo mais espectadores para o esporte.

As regras não tiraram o caráter de válvula de escape da competição esportiva. Afinal, ninguém se comporta no trabalho, em casa ou no cinema, como no estádio. Mas sem dúvida a experiência ficou mais polida. O que pode ser mais civilizado do que emoções com hora e local marcados? Compramos nosso ingresso, reservamos uma tarde de domingo, sentamo-nos entre amigos e, pronto, lá vem a emoção, como esperávamos. Em antropologia, um evento assim é chamado de ritual. E os rituais, diz o antropólogo Roberto da Matta, são encenações sobre nós mesmos. “O ritual é onde uma população conta uma história de si mesma para si própria.” As vaias para o juiz, por exemplo, não se dirigem à pessoa do juiz, que, na verdade, é um comerciante ou um gerente de banco que ninguém conhece pessoalmente. O caso é que ele, ali, representa o poder, as autoridades, que invariavelmente desfrutam de pouco prestígio entre o gentio. Fora do estádio, são poucos os que se atrevem a xingar uma autoridade.

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Na vida real, isso é mais que um comportamento anti-social. É crime de desacato, previsto no Código Penal.

A vantagem do ritual é que ele consegue representar tudo isso e, no entanto, ser só uma brincadeira. As pessoas fingem que a disputa é crucial, mas, na verdade, a vida segue a mesma. “O ritual possui um tempo e um espaço próprios. Ali, a gente experimenta uma dimensão diferente daquela em que vivemos todo o tempo. É um espaço-tempo sagrado”, diz o antropólogo Luiz Henrique de Toledo, autor de um livro sobre torcidas organizadas.

Não é só o juiz que tem um papel definido. No rito, cada um tem sua função. Até o estádio, que, como palco do drama, deve facilitar a emoção. Para Nelson Rodrigues, a emoção era maior em estádios pequenos. “No campo pequeno todos os caminhos estão abertos para a emoção direta e integral”, escreveu o dramaturgo.

Isso é levado em conta quando se constrói um estádio. A capacidade de público, por exemplo, é um dos parâmetros que vão influenciar a emoção do torcedor. “É importante dimensionar o estádio para o público que ele vai ter, para evitar espaços vazios. É melhor que falte lugar de vez em quando do que haver vagas sobrando sempre”, diz Eduardo de Castro Mello, arquiteto e representante no Brasil da IAKS (sigla em alemão para Associação Internacional de Construções Esportivas e Recreativas). O ideal é que ele pareça sempre cheio. Há outros truques. Estádios construídos em anéis fechados, por exemplo, garantem uma atmosfera mais carregada. “A ola, por exemplo, (uma coreografia, inventada pela torcida mexicana, que imita uma onda) só se completa se o estádio for em anel”, diz ele. E uma cobertura como a do Maracanã aprisiona o som da torcida, devolvendo sua vibração para a arena e aumentando a dramaticidade do jogo.

Mas o papel mais importante, claro, cabe à torcida, que é a razão de ser do espetáculo (mais que os jogadores). “A atmosfera criada pelos torcedores é um dos ingredientes cruciais da experiência futebolística. As torcidas são vitais para os clubes não só porque dão a eles dinheiro e incentivam o time, mas porque sem as torcidas ninguém se daria o trabalho de ir ao jogo”, diz o escritor Nick Hornby. Não é à-toa que a TV, quando exibe os gols da rodada, insere um som de torcida, mesmo quando é óbvio que não há público. A emoção da torcida é indispensável para o espetáculo.

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A união entre os torcedores de um mesmo time tem raízes na evolução da espécie humana. O homem só conseguiu sobreviver e ocupar o mundo porque aprendeu a viver socialmente. Fazer parte de um grupo, portanto, é desde sempre condição de sobrevivência. “A necessidade de pertencer a um grupo e ser fiel a ele tornaram-se características do homem”, afirma o biólogo Edward O. Wilson, professor da Universidade de Harvard, especialista no estudo das origens biológicas do com-portamento humano. “Sabe aquela união que sentimos quando estamos torcendo pela Seleção na Copa do Mundo? Ela surgiu aí.”

Mas, espere aí. Vivemos em sociedade há milhares de anos, mas as torcidas só surgiram no final do século XIX. É verdade. As torcidas numerosas e anônimas de hoje são um fenômeno moderno, nascido com a industrialização e as grandes cidades, quando as pessoas foram forçadas a deixar os grupos tradicionais, como a família e a pequena comunidade. “Nas cidades surgidas da industrialização, ninguém tinha raízes ou tradições, todos vinham de diferentes partes do mundo”, afirma o professor de História Nicolau Sevcenko, da USP. “Ao buscar novos traços de identidade e solidariedade, essas pessoas se vêem atraídas para a paixão futebolística, que irmana estranhos, para substituir as comunidades e os laços de parentesco que cada um deixou ao emigrar.”

E o que leva alguém a se identificar com um time e não com outro? Há muitos fatores. No Brasil, um país de imigrantes, a ancestralidade era uma delas. Descendentes de italianos torciam para o Palestra Itália. Filhos e netos de portugueses preferiam o Vasco da Gama. Mas, depois dos anos 70, com as transmissões de TV, o desempenho dos times e o carisma dos craques ganharam importância, diz o psicólogo Luiz Amadeu Bragante, de São Paulo. O Flamengo de Zico, o Inter de Falcão, o Palmeiras de Adhemir da Guia e o São Paulo de Raí multiplicaram as respectivas torcidas. Mas a tradição familiar não desapareceu. “As maternidades estão sempre repletas de camisetinhas e sapatinhos com os escudos de clubes”, diz Zartú Giglio Cavalcanti, doutorando em Psicologia Social da PUC.

Essa identificação, no entanto, tem menos a ver com o esporte em si do que costumamos imaginar. Em uma pesquisa do Gallup realizada na década de 90, em São Paulo, 45% dos entrevistados disseram não se interessar por futebol. Mas só 35% não tinham times preferidos. Ou seja, 10% dos entrevistados não gostam de futebol, mas têm um time do coração. Para quê? Para poder dizer “sou corintiano”, ou “sou gremista”. É uma marca indelével da identidade do sujeito, reforçada pela vivência repetida de emoções em grupo, a cada jogo.

É por isso que trocar de time é algo inimaginável, pelo menos para a maioria. “A fidelidade a um time não é uma escolha moral, como a bravura ou a bondade: é mais como uma verruga ou uma corcunda, uma coisa que você tem que aturar”, escreveu Nick Hornby. Para o psicólogo social Odair Furtado, não se pode trocar de time porque não trocamos de paixão e de identidade o tempo todo. “A escolha de um time é marcada por uma carga de cumplicidade e crença muito grande. E crenças não podem ser mudadas o tempo todo”, diz Furtado.

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Para completar a união, ainda há uma torcida adversária, que deixa mais clara a diferença deste grupo com o outro, muito embora os cantos e as danças sejam parecidos. “O torcedor adversário, ao encarnar o inimigo comum, faz com que os indivíduos se unam ainda mais em seus grupos. Hitler uniu o povo alemão arrumando um inimigo único, os judeus”, diz o psicólogo Luiz Amadeu Bragante.

Durante a partida, estamos todos lá, juntos, tentando fazer alguma diferença no resultado da partida. Alguns têm sua maneira própria de ajudar o time: usam sempre as mesmas peças de roupa, não admitem sentar na décima-terceira fileira de cadeiras ou penteiam o cabelo para o lado contrário, acreditando piamente que aquilo influirá no resultado. “Investimos horas em algo sobre o qual não temos controle algum”, diz Hornby em seu livro. “Não é de espantar que fiquemos reduzidos a liturgias engenhosas criadas para nos dar a ilusão de que somos poderosos, tal como fazem comunidades primitivas quando deparam com um mistério profundo e impenetrável.” A superstição, diz o antropólogo Luiz Henrique de Toledo, é isso mesmo: uma tentativa de organizar o mundo – mesmo que seja de um modo mágico –, para tentar explicá-lo.

Algumas pessoas, no entanto, levam o papel do torcedor para fora do estádio. É fácil identificar uma delas. Basta perguntar como vai a vida. “Vai bem, claro. Meu time ganhou de goleada neste fim de semana!” Pronto. Lá vai um fanático. “Quanto menos riqueza intelectual e emocional o torcedor tem, maior a fatia de sua identidade que será tomada por sua porção torcedor. Ou, em outros casos, pela religião, pelas drogas”, diz Bragante. Faz sentido. Se o sujeito é emocionalmente envolvido com o trabalho, com a família, as conquistas do time têm menos importância.

Esse tipo de torcedor, organizado, militante, precisa, de fato, da torcida. “Para ele, a torcida não se resume mais ao futebol, ela se torna um lugar de encontro das pessoas e aí começa a haver trabalhos sociais, participação política ou em eventos como o Carnaval”, diz Rosana Teixeira, antropóloga doutoranda na UFRJ, autora de uma dissertação sobre as “torcidas jovens” do Rio.

O problema é que o código de conduta do torcedor, forjado dentro do templo do estádio, com suas leis próprias, é inadequado para a vida em sociedade. É aí que o sujeito se esconde na massa. A torcida é numerosa. Dentro dela, as atitudes individuais tornam-se invisíveis.

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“O grupo dá proteção ao indivíduo”, diz o psicólogo social Odair Furtado. “Suficiente para o sujeito não ter que obedecer às regras que valem para alguém isolado.” Segundo o pai da psicanálise, Sigmund Freud, a cultura é uma forma de repressão dos desejos, por meio das regras. Quando o sujeito está imerso na massa, ocorreria o ‘retorno do reprimido’, em que se podem quebrar as regras. Em outras palavras, imerso na massa o torcedor, dentro ou fora do estádio, encontra uma licença de comportamento que não há em outro lugar.

O escritor e jornalista americano Bill Buford conviveu quatro anos com torcedores ingleses, conhecidos como hooligans, para tentar entender seu comportamento violento. Em certos momentos, sentiu como se fosse um deles. Seu relato: “A civilização é como uma barreira entre mim e algo que não conheço ou não compreendo. Sinto-me atraído pelos momentos em que isso desaparece, ainda que por um instante fugaz. Não conheço excitação maior. É ali, no limiar de uma experiência anti-social, incivilizada, que você encontra as experiências exaltadas que, por seu risco, sua intensidade, reduzem a autoconsciência a cinzas, bloqueiam o nosso sentido do pessoal. Essas experiências são escassas: êxtase religioso, dor, drogas e violência. Ou integrar uma multidão”.

O termo torcer vem justamente da idéia de que o sujeito torce e retorce o próprio corpo, como se estivesse sendo torturado, por seu time. É um suplício voluntário, portanto, a que nos entregamos com gosto, porque nos faz sentir vivos e, em certas ocasiões, nos permite morrer, para ressuscitarmos no próximo jogo.

Para saber mais

Na livraria: Entre os Vândalos, Bill Buford, Companhia das Letras, São Paulo, 1992.

Febre de Bola, Nick Hornby, Rocco, Rio de Janeiro, 2000.

A Pátria em Chuteiras, Nelson Rodrigues, Companhia das Letras, São Paulo, 1994.

Revista USP – Dossiê Futebol, Número 22 (junho, julho e agosto de 1994).

À Sombra das Chuteiras Imortais, Nelson Rodrigues, Companhia das Letras, São Paulo, 1993

Torcidas Organizadas de Futebol, Luiz Henrique de Toledo, Autores associados/Anpocs, Campinas, 1996.

Universo do Futebol, Roberto da Matta e outros, Pinakotheke, Rio de Janeiro, 1982.

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